feios, porcos e maus
27 de um lado, 27 do outro. Pontapés, cotoveladas, murros e cabeçadas. Testosterona, ódio, sangue e uma bola. Caro leitor, apresentamos-lhe o Calcio Fiorentino.
Lembra-se da característica forma de jogar de indivíduos como Paulinho Santos, Jorge Costa, Fernando Couto, Luís Vidigal ou Carlos Mozer? Só de pensar, já fica com nódoas negras no cérebro, não é? Mas, caro leitor, temos a dizer-lhe o seguinte: ao lado dos praticantes do Calcio Fiorentino, os jogadores que mencionámos são umas verdadeiras florzinhas de estufa. Uns autênticos anjinhos. Uns mariquinhas pés-de-salsa. Mesmo! Ora seja muito bem-vindo ao Calcio Storico (Futebol Clássico) Fiorentino, um histórico e brutal desporto que existe há mais de quinhentos anos. O jogo é, aliás, um dos antecessores do futebol moderno, a razão pela qual ainda hoje o futebol em Itália se entende como calcio. Só depois é que a ideia viajou para Inglaterra e serviu de base ao futebol que hoje admiramos. Este evento tem lugar todos os anos, no dia 24 de Junho – dia de São João Baptista, o santo padroeiro da cidade de Florença – na Praça de Santa Cruz. Nestes dias, a praça apresenta-se toda coberta por areia, para não aleijar os 27 meninos que, representando cada equipa, praticam esta viríl modalidade.
O objectivo é transportar a bola de uma ponta à outra do campo e atirá-la para as redes da equipa adversária, que se prolongam pela linha de fundo delimitada pela própria arena. Até aqui, nada de muito estranho. Tudo parecido com o futebol. No entanto, há dois pontos a ter em conta: a bola tanto pode ser jogada com os pés como com as mãos (característica que aproxima esta modalidade do râguebi – e de alguns jogos do nosso campeonato) e as agressões (murros, pontapés, cotoveladas, cabeçadas e afins…) não só são aceites, como também incentivadas (particularmente pelos milhares de fãs que enchem as bancadas improvisadas da Praça). As duas únicas regras que devem ser tidas em conta são as seguintes: não se pode dar pontapés na cabeça do adversário e não se pode agredir (ou matar – sim, leu bem, matar!) alguém que esteja inconsciente. Se, pelo contrário, esse alguém recuperar os sentidos, aí sim, já pode levar porrada da boa que é para aprender a não participar em jogos destes. Deus abençoe quem criou esta regra que, diga-se de passagem, não existia quando esta modalidade foi criada.
O jogo não tem intervalos, time-outs nem substituições. Uma vez no campo, todos os jogadores são obrigados a lutar até terminar o jogo. Tendo em conta todas estas condições, não é de todo surpreendente que sejam necessários oito árbitros para acompanhar o jogo e os jogadores.
Esses grandes, musculados, violentos, mal-cheirosos e mauzões jogadores que arriscam as suas vidas nestes jogos são geralmente irmãos e primos de sangue e os adversários são, realmente, seus verdadeiros inimigos. Todos eles são oriundos dos quatro principais bairros da cidade: Santa Croce, na parte oriental, Santa Maria Novella, na zona mais ocidental, Santo Spirito, a sul do rio Arno, e San Giovanni, no centro histórico. Cada bairro tem a sua cor (Santa Croce: azul; Santa Maria Novella: vermelha; Santo Spirito: branca; San Giovanni: verde) e disputa cada jogo como se fosse o derradeiro combate pela sua vida e honra fiorentina. E estes tipos têm muita vida e muita honra para defender!
As origens
Estes encontros, que começaram a disputar-se com regularidade em meados do século XV, eram bastante apreciados pelos Medici, a família que governava a cidade. Esta família, dotada de uma riqueza bastante considerável, assistia a todos os jogos de uma das bancadas principais, onde convivia habitualmente com os mais ilustres aristocratas locais e com os emissários que chegavam de todos os cantos da Europa. Este era, sem sombra de dúvidas, um evento reservado para as elites. Consta que, entre os mais ilustres espectadores, estariam figuras como os artistas Leonardo da Vinci ou Miguel Ângelo. Mas não só. Entre os jogadores, há relatos que confirmam Nicolau Maquiavel e Clemente VII (que viria a ser Papa em 1523).
Os jogos eram inicialmente realizados no período do Carnaval e tinham lugar num campo rectangular de 100 por 48 metros, com uma bola de dimensões semelhantes às actuais. Só por volta de 1580 é que as regras foram oficializadas e o jogo aberto a todos: nobres e populares. Porém, com o passar dos anos, a tradição foi-se perdendo e, durante os século XVIII e XIX, o Calcio Fiorentino foi banido da cidade de Florença.
Mas não foi desta que esta modalidade/carnificina foi abolida de vez. Foi necessária a interferência do ditador italiano Benito Mussolini, ansioso por recuperar as tradições da era dourada italiana, e de um dos seus homens de confiança, Alessandro Pavolini, para que a bola (e o sangue) pudesse voltar a percorrer as pedras cinzentas e gastas da Praça de Santa Cruz. Este “renascimento” do Calcio deu-se em inícios da década de 30 do século XX e mantém-se até aos dias de hoje. Sem Mussolini, felizmente.
Ao contrário do que acontecia quando esta modalidade surgiu, hoje em dia, o Calcio Fiorentino não é exclusivo de uma determinada classe social, mas sim de pessoas de todas as esferas da sociedade. Todas elas são convidadas a assistir e a participar.
Dia de jogo em Florença
O dia da final do Calcio Fiorentino é um dia histórico para esta cidade italiana. As pessoas acordam bastante cedo e deslocam-se até à Praça de Santa Cruz, embelezada pelas bancadas de ferro e pelas coloridas bandeiras de cada equipa. Pelo caminho, é muito provável que estas pessoas se cruzem com as marchas populares que cada bairro promove para apoiar a sua equipa e chamar às armas os habitantes dos quatro bairros da cidade. Durante todo o mês de Junho, disputam-se os jogos preliminares entre as quatro equipas da cidade para determinar os dois finalistas. Depois das inúmeras polémicas nos últimos anos, a organização do Calcio Fiorentino obrigou as equipas a jogarem com atletas que vivessem há mais de um ano no respectivo bairro. Porquê? Ora bem, é simples: porque, nos últimos anos, a ânsia de vencer levou a que várias equipas contratassem lutadores de wrestling e de luta livre, falseando a sua morada para disputar os bárbaros e intensos encontros. E atenção que nós não estamos a exagerar. Estas disputas são autênticas guerras dignas dos tempos dos gladiadores romanos. E as consequências são brutais e arrebatadoras. Aliás, a violência e as lesões que resultaram das finais de 2010 e de 2011 atingiram um nível tal que se ponderou mesmo cancelar a edição deste ano. Contudo, essa medida não avançou e tudo correu pelo melhor. Com a edição de 2012 já terminada, não há nenhum caso (de maior) a realçar.
Mas voltemos ao embate. A hora do jogo aproxima-se a olhos vistos e as pessoas procuram o melhor lugar possível. Como é natural, essa é uma tarefa que não se adivinha nada fácil. Na Praça de Santa Cruz, cabem cerca de 10 mil pessoas sentadas e cinco mil em pé. Como todas as praças da cidade, esta não é muito grande e está cercada por edifícios históricos seculares. As equipas entram em campo após longas horas de espera sob um sol abrasador. Mal pisam a areia que cobre toda a praça, já se começa a sentir o cheiro a carne viva e a sangue derramado, o cheiro a barbárie prestes a ser vivida. Durante os próximos 50 minutos, Florença recuará 500 anos na sua história.
Defender para atacar
Bem ao estilo do actual futebol italiano, as equipas do Calcio Fiorentino estão muito mais preocupadas em defender do que em marcar golos. Portanto, se for de propósito a Florença para assistir a grandes jogadas carregadinhas de gestos técnicos e de golos de belo efeito, esqueça. Nem sequer vale a pena sair de casa. Este desporto não é para si. Aqui, nem o Messi nem o Ronaldo teriam hipótese. Quando muito, ainda poderia dar jeito um Bruno Alves ou um Pepe. Aqui, joga-se forte e feio, sem qualquer piedade. No final da partida, o bairro vencedor entra em êxtase e prolonga as suas festas pela noite dentro com fogos de artifício e um troféu para mostrar pelas ruas coloridas da cidade. Com a testosterona a atingir níveis elevadíssimos, também é natural haver escaramuças que resultam em várias costelas partidas e muitas nódoas negras.
TEXTO André Pereira