a noite
A noite só é escura porque fechamos os olhos enquanto ela existe. Não respeitamos a noite. Aproveitamo-la para dormir. Para deixar de existir durante um bocado. Não faz sentido. O dia é o menino querido do universo. A noite é o parente pobre. A noite é dos loucos e dos gatos. O dia é das crianças e dos passarinhos. Não faz sentido. Há uma conspiração contra a noite. No cinema. Na música. No teatro. No trabalho. Na poesia. Na vida. Sou pela noite. Digo noite. Grito noite. Berro noite. Os loucos e os gatos também são vida. O meu já dorme. Eu para lá caminho.
natal
Até me dói continuar a dizer isto em pleno século XXI, mas Jesus foi um tipo normal que nasceu de uma foda entre duas pessoas: José e Maria, vamos supor que era assim que se chamavam.
Não houve anjo Gabriel, não houve estrela-guia, não houve reis-magos, não houve nada. Só existiu vaca se acharem que a Maria fodeu com o anjo. Só existiu burro se acharem que o José acreditou na história da mulher. Mas deus blá blá blá e o anjo blá blá blá e jesus blá blá blá é o messias blá blá blá. Bem, se têm inteligência para ler o que acabei de escrever, também têm para pensar (raciocínio demasiado lógico que até chega a ser ridículo).
Boas festas com quem gostam. Comida, bebida, amor e essas merdas. O resto que se foda (e bem, que é como se deve foder, sem inexistências pelo meio).
adormecer
Sempre tive medo de adormecer. Esperar pelo sono aterroriza-me. Num instante, estamos conscientemente acordados, no outro, estamos inconscientemente dormindo. E não damos conta disso. Não em consciência. É um clique que nos divide deste mundo do outro dentro deste. Se pensarmos todos nisto, todos vamos ter medo, ou receio ou respeito ou lá o que é, por esta repentina mudança para uma quase-morte. Por isso, deus deu-me uma doença. Toma, puto, só para não andares por aí a dizer que eu não existo. Chama-se narcolepsia (a doença, não deus). A narcolepsia não me faz ficar muito tempo à espera da escuridão da minha consciência. Fecho os olhos e adormeço. É assim tão simples. O horror é adiado para o dia em que ficar curado (espero que nunca). Ouviste, deus? Obrigado, deus. Vou dormir. Mas continuo com medo.
prolongamento
Nem cancro, nem sida, nem leucemia, nem nada. Hoje, toda a gente morre por doença prolongada. Não se diz o nome, tapa-se com o paninho quente e maciozinho da doença prolongada. É menos doloroso, é menos inquietante, é menos cru. Acontece que a morte é dolorosa, é inquietante, é crua. Morrer de cancro é morrer de cancro, morrer de sida é morrer de sida, morrer de leucemia é morrer de leucemia. Ninguém morre de nada. É doença prolongada que se diz agora, tal como se diz lol em vez de ahah ou tal como se diz ter relações em vez de foder. Todos morremos de tudo. E esse tudo é feito de partes com nome. É urgente chamarmos as coisas pelos nomes que elas têm. E que a única doença prolongada seja a vida.