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Setembro, 2017
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a minha tia carminda

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A minha tia Carminda foi a mulher triste mais alegre que eu conheci. Viu morrer-lhe pessoas que lhe nasceram, outras que a viram nascer, tantas que cresceram com ela, muitas que ela ajudou a crescer, todas de sangue próximo. Longe, nada. Tudo lhe aconteceu dentro, como as lágrimas que guardava só para ela – só podia guardar, nunca as vi na sua pele fim de tarde desde sempre, sendo o sempre só o pouco que eu recordo. Mas não se pode guardar tudo o que se tem por não se ter, por isso, ela só podia chorar sozinha, era a única forma que tinha de chorar sem mostrar. A tristeza não é fraca para ficar só no destruído quentinho do peito. Tem de cair dos olhos e mostrar aos outros que se sofre e que se é triste. Ela nunca mostrou nada disso, sentimentos demasiado imensos que ela tratava lá como bem entendia, com os ares do campo e com as fés do deus. Connosco, os que lhe dizem adeus e os que não conseguiram dizer, sempre sorriu e sempre brincou. E nós, pobres tristes afundados em depressões de emprego ou de amores passageiros, sorríamos e brincávamos. Fracas dores as nossas para a ternura e alegria que nasciam das dores dela. A minha tia Carminda foi a mulher triste mais alegre que eu conheci. Talvez por isso, agora, a tristeza seja mais triste um bocadinho.

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temos de falar sobre o papa

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“A ciência é muito clara sobre as alterações climáticas. Quem as nega, será julgado pela História.” Há duas conclusões a tirar desta declaração do Papa Francisco. A primeira: ele tem razão. A segunda: ele está na cadeira errada.

As alterações climáticas são reais e estão a deixar-nos à beirinha da extinção. É verdade. Mas também é verdade que ter o Papa do lado da ciência vai contra o livro de estilo da igreja católica. Não faz sentido o seu líder basear a sua opinião na ciência. É uma contradição, valha-me deus (tal como esta, vinda de um ateu praticante).

“A religião é o ópio do povo”, dizia Hegel, na introdução de uma das suas obras. Eu digo o mesmo, mesmo não sendo Hegel, mesmo sendo povo. Qualquer que seja a religião, é baseada em invenção, suposição, mentira. Os factos estão do lado da ciência.

No entanto, neste mundo dominado pela ciência, é um homem da religião que a vem defender. Não um homem qualquer, o líder. Enquanto o “líder do mundo livre” nega os factos, o “líder do mundo imaginário” alerta para eles. E não apenas factos científicos. Se o Papa condena o racismo, Trump incentiva-o; se o Papa recomenda que a igreja acolha os homossexuais sem os julgar, Trump repele o casamento gay. Nestes e noutros temas, tanto o Papa como Trump parecem defender o oposto do que as suas “pátrias” defendem (ficariam tão melhor se trocassem de cadeiras).

Não deixa de ser curiosa esta troca de papéis num mundo cada vez mais dominado pela ciência. É ela quem tem a bola, mas quem parece controlar o jogo é o irracionalismo, o medo, o preconceito, a ignorância. O líder do mundo tecnológico controla, cuspindo fogo; o líder do mundo fantástico joga de vez em quando, usando os neurónios.

O Papa Francisco deveria ser o vilão. Mas não é fácil odiá-lo (como devem ser odiados os vilões). É fácil odiar o Bin Laden, o Frankenstein e o Scar. É fácil odiar o Rei Claudius, o Kim Jong-Un e a Cersei Lannister. Até era fácil odiar o Papa Bento XVI — um líder perfeitamente representativo da igreja que liderava. Não é fácil, porém, odiar o Papa Francisco. Porque, mesmo representando o lado da religião, é um líder bom, simpático, ponderado, compreensivo, amável, tolerante e, essencialmente, humano.

Humanidade, venha ela de que lado vier, talvez seja o que nos esteja em falta. Não para que se encontre quem odiar, mas para que continue a haver História. Sem julgamentos. Mesmo com papéis trocados.

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ninguém morre de cancro

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“Há que dizer-se das coisas / o somenos que elas são. / Se for um copo é um copo / se for um cão é um cão”. Menos se for um cancro, Ary. Nesse caso, é uma doença prolongada.

Em Portugal, não se morre de cancro. Morre-se de “doença prolongada”. Porque dizer cancro é dizer realidade e a realidade aleija muito. E ninguém se quer aleijar.

“Morreu vítima de doença prolongada”, ouve-se e lê-se nos órgãos de comunicação social. João, Fátima, Henrique, o nome é irrelevante, a doença não. Mas parece ser, já que não se diz qual é. Talvez seja essa a ideia, não dizer “cancro” para que o cancro não nos possa ouvir e esquecer-se de nós, desaparecer e deixar-nos tranquilos – e vivos – na nossa vidinha.

Para isso, refugiamo-nos na “doença prolongada”. O eufemismo faz parte do vocabulário de uma língua e usamo-lo como mecanismo de suavizar uma palavra ou expressão que possa ser desagradável. “Se sentimos necessidade de usar eufemismos para falar da morte é porque, na cultura a que pertencemos, evitar a palavra é um sinal de respeito pela dor do nosso interlocutor dos falecidos”, diz o lexicólogo e professor João Paulo Silvestre. Certo. Mas defendo o contrário, e pela mesma razão.

Dizer “doença prolongada” não respeita, funciona como um cobertor de coisa vaga que relativiza a sua importância, que atenua a realidade e que coloca a vítima no biombo do indefinido.

Há pudor nos órgãos de comunicação social que não os deixa dizer que o João, a Fátima ou o Henrique morreram de cancro. E há ironia nesse pudor. Abre-se o telejornal com a vítima da doença prolongada e continua-se o telejornal com a imagem de uma criança lavada em sangue por um bombardeamento na Síria.

Parece uma história de crianças, esta que nos contam diariamente, ao apresentar- nos o cancro como uma espécie de Voldemort, “aquele cujo nome não deve ser pronunciado”. Mas negar o nome é como negar a doença. Não dizendo, não a faz desaparecer. Dizendo, não a multiplica. E, das duas, uma: escondemo-nos no eufemismo ou encaramos a realidade. E a realidade é que, na vida, não há magia.

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