no dia seguinte, morreu
Na noite de Natal, ninguém sofre de frio nem de saudade. Na noite de Natal, ninguém sofre de fome nem de solidão. Na noite de Natal, ninguém sofre nem morre. Aqui jaz quem não faz falta no dia seguinte.
Aqui jaz um sem-abrigo. Não se lhe sabe o nome nem se lhe conhece família. Na noite de Natal, abriram-lhe os portões para uma refeição quente e uma noite tranquila. Apareceu na televisão. Agora, aparece no chão. O seu corpo será velado por ninguém porque os portões fecharam depois da ceia e as casas de cartão não dão audiência.
Aqui jaz um animal. Ou o que resta dele, no que resta da berma da estrada. Na noite de Natal, recebeu o quente de quem o queria para aquecer os pés e o ego. Apareceu no Facebook e no Instagram. Agora, aparece na caixa aberta da carrinha da junta de freguesia. Questão de saúde pública. O seu corpo será velado apenas se for feito scroll.
Aqui jaz uma velha. Morreu como viveu desde que lhe foi o marido. Sozinha. Na noite de Natal, abriu a porta para a companhia de voluntárias que lhe aqueceram a casa e a solidão. Apareceu no jornal. Agora, nem no café aparece. Não sai de casa desde esse dia porque ninguém lhe toca à campainha para saber, sequer, se ela está lá. O seu corpo será velado quando o cheiro chegar à casa dos vizinhos.
o poeta
O poeta é um sofredor,
sofre tão completamente
que chega a sofrer de amor
escrevendo aquilo que sente.
E os que pensam não ser verdade
o que ele está a transmitir
desconhecem a dualidade
que há no escrever-sentir.
E, assim, a roçar a dor,
viaja de mão em mão
a caneta do escritor
e o papel do coração.
culpa de ninguém
Era tão boa culpa, pena ter morrido sozinha. Tancos, incêndios, legionella, Raríssimas. Em Portugal, morre a culpa, sempre a culpa, sempre só.
São estes os mais recentes casos em que a culpa foi de todos e vai acabar por ser de ninguém. Foi do Exército, do Governo, do clima, das populações, do SIRESP, do hospital, dos partidos, do ministro, da directora, dos associados, de nós todos. No fim, quando tudo acabar, a culpa, que ainda anda aos caídos presa àquele e presa àquela, acabará, como manda a nossa tradição, por morrer presa a nada.
Talvez seja o espelho da personalidade de um povo que, assim que descobre injustiça, cerra os dentes, cria petições, fecha os punhos, faz manifestações, sai à rua, grita, denuncia. No entanto, passada essa excitaçãozinha inicial, vem a realidade que nos é habitual, e a culpa lá se vai esquecendo e diluindo e apagando, até que morre. Só. De ninguém.