rip
Não me lembro de alguma vez em algum lugar ter morrido um filho da puta. Quem morre é sempre um génio, um homem de grande valor, uma grande mulher, uma personalidade ímpar, um ser humano fantástico, um ser dotado de uma inteligência brilhante, um jurista de grande gabarito, um cidadão do mundo, um nome cimeiro da cultura, uma mulher de convicções, uma voz livre da sociedade, um grande mestre da arte, um exemplo de vida, um amigo de coração gigante, qualquer coisa maravilhosa cuja morte se lamenta profundamente. Deixará saudades. O mundo fica mais pobre. E com mais filhos da puta. Se essa é condição para aqui ficar, gostaria de ser um. Não me parece muito proveitoso ser um génio na inexistência.
a minha geração
Sou da geração dos 1.000 euros, mas nunca ganhei mais de 800. Nunca estive nos quadros, estive perto, mandaram-me embora. Três contratos de seis meses, o clássico, és essencial, já não és, obrigado e bom dia. Fiz dezenas de formações e uma série de estágios, nunca tive – nem agora tenho – nem nunca terei – experiência suficiente para receber o que mereço receber. Mas trabalho, trabalho muito bem, trabalho melhor, não me baldo com baixas nem me levanto baixando-me. Tenho projectos do caralho, mas claro que não ganho nada com isso porque não são gourmet. Como sou da escrita, qualquer um pode fazer o meu trabalho, claro que pode, qualquer um escreve, mal, mas pouco importa. A verdade é que também ninguém lê. Lendo, saberia escrever e saberia entender o que se escreve. Vou a palco, mas óbvio que nunca lucrei com isso. Há dinheiro para o IGAC, dinheiro para a SPA, dinheiro para o Teatro, dinheiro para o produtor, dinheiro para o promotor, dinheiro para o fotógrafo, dinheiro para o técnico de som, dinheiro para o técnico de luz, dinheiro justo para quase todos, mas dinheiro injusto para mim. E o dinheiro dos bilhetes, que é pouco para mim, é sempre muito para quem quer assistir ao pobre artista no palco. Não arranjas uns bilhetes? Não arranjas uns textos? São só uns lugares. São só umas palavras. E eu não sou só isto. Mas cá me arranjo.
o meu gato
Há dias em que me apetece atirá-lo pela janela. Eu moro no sétimo andar. Há dias em que me apetece atirar-me pela janela. Ele mora no sétimo andar, comigo.
O meu gato faz muita merda. Adora cabos, sofás e cortinados. Morde-me as pernas e arranha-me os braços. Adora os atacadores das minhas sapatilhas e qualquer pedaço de tecido das minhas meias. Gosta de testar a gravidade com os meus livros. Envergonha-me no veterinário. É esquisito com a areia e com a água. Está, neste preciso momento, em cima do teclaijwodhreerioeoiore doftgddddjbhfgggt computadkhfdijjjj. Não me deixa fazer a cama em condições e larga pêlo em sítios cuja existência eu desconhecia. Fez-me ser sócio premium de todas as lavandarias de Lisboa. Pôs-me a dormir na sala para arejar o quarto. Fez-me gastar salários para ele ficar bem depois de operações, vacinas e pequenos cristais que lhe doíam horrores. Nunca se queixou. Apercebi-me. Talvez ele me tenha dito. Não sei, tenho quase a certeza. Não falamos a mesma língua, mas comunicamos. Ele não percebe patavina do que lhe digo – falo mais com ele do que com gente -, mas ele percebe tudo o que sinto quando lhe digo. Eu não faço ideia o que ele quer dizer com aqueles olhares e miares e palmadas de patinhas, mas sei exactamente o que ele sente quando me diz.
Ele brinca comigo sempre que eu chego a casa. Ronrona encaixado na concha que faço com as mãos e encosta-se à parede a pedir números de circo. Encosto o braço à parede e ele salta. Faz outra vez. Outra vez. E outra vez. Eu escondo-me e ele procura-me. Vou à cozinha e, quando volto, tenho cinco quilos e tal a abalroarem-me as pernas. Recompõe-se, foge e esconde-se debaixo da cama. Com a cauda de fora. Eu finjo que não o vejo e chamo por ele – que ridículo, ele não percebe, mas percebe perfeitamente, e ele brinca e eu brinco também, e somos felizes assim, que ridículo, quero ser ridículo sendo feliz e ser ridículo fazendo-o feliz. Sempre que vou à casa de banho, ele vai também. Ora espera por mim, ora espero por ele. Sai a correr e eu levanto-lhe a voz para tapar o que fez. Ele volta atrás e tapa o que fez. Sempre. Deita-se ao meu lado, ao fundo da cama, e adormece agarrado à minha perna. Mexo a perna e ele morde-me os dedos com aqueles dentinhos afiados pelo diabo. Quero atirá-lo pela janela. Levanto a voz e pára. Lambe como que beijando. Encosta-se mais e adormece. Ressona e mexe-se muito. Acordo com a língua dele no meu nariz. Ronrona-me no peito e o meu peito ronrona também. Fica especado a ver-me tomar banho e mia desalmado sempre que abro uma lata de atum. Vai para a janela ver as pombas e as pessoas. Faz muito bem de bibelô em frente à televisão.
O meu gato passa muito tempo sozinho e eu sozinho sem ele. Isto da solidão com saudade é uma merda também, mas ele faz sempre questão de me dizer, não dizendo, que me ama sempre que me vê. Eu digo o mesmo e ele ouve, eu digo-lhe que já venho e que se porte bem e ele ouve sempre. E responde. Não faço ideia o quê, mas responde.
Ele não faz anos hoje nem há hoje dia do gato ou do animal. Também não morreu – o elogio não é obrigatório apenas quando se morre. Ele existe comigo e isso basta-me para que lhe escreva coisas que ele, não percebendo, ouve todos os dias. Continuo no sétimo andar. Ele faz-me continuar.