manual da felicidade
É simples. Para quê tanta lamúria e xanax? A felicidade está aqui ao virar da esquina, como as putas. Para ser feliz basta ser quem se é.
Desde que se seja vegan, runner, crente e politicamente correcto. Que se ame homens, mulheres e criancinhas, mas mais ainda os animais e as florestas. Que se faça meditação, alongamentos e yoga, que se condene a medicina ocidental e se venere a oriental, a menos que estejamos mesmo a precisar e aí que se fodam os reikis e os búzios. Que se saúde o sol, se evite o glúten, a lactose e os fritos. Que se seja contra as leis e os patrões, contra tudo o que é contra e que se assine petições, se defenda as minorias e se faça manifs. Que se critique os programas de televisão, se veja netflix, se oiça podcasts e spotify, se compre discos, se vá a festivais. Que não se critique, só se elogie, não se diga mal, só muito bem. Que se respeite os comunas e os nazis, se aceite os burros e se lhes diga que podem conseguir tudo o que quiserem, basta acreditarem e se insulte os inteligentes por não entendermos o que dizem. Que se cague na educação, se escreva como nos apetece, se diga que tudo é genial e ridículo, consoante a inclinação. Que se tape o medo, as rugas e a celulite. Que se seja incoerente e se bloqueie toda a gente que fuja, dizendo, pensando ou sentindo, deste nosso modelo de felicidade.
É assim que se faz, fingindo que se é feliz, que se vive de verdade.
manhã
Um livro que engana pelo nome. Muito mais noite do que manhã, este poema feito de poemas é um mergulho na infância e em todas as memórias a ela ancoradas. Uma escrita simples e bonita que engana por ser simples e bonita.
Um livro para ler de manhã, ao adormecer.
está por um
É urgente o amor. Em todo o lado, em toda a gente. Mas mais, muito mais urgentemente, no futebol. E não só no que já tem assistência. É urgente o amor ao futebol na sua essência, ao futebol que, na sua definição, já tem o adjectivo que lhe parece faltar: amador. E a culpa é, grande parte, de quem o joga. Sem arte. Sem amor.
Não por não saber passar ou fintar ou marcar, apenas por não o saber jogar. Camaradas da magia e da sarrafada em coletes berrantes, uni-vos! Voltemos ao futebol como era dantes. Acabemos com quem está a acabar com a substância da peladinha. Esses iletrados que, numa futebolada rasgadinha, cometem o crime tão triste de não contar os golos marcados, só a diferença que existe. Não está 9-8, está por um. Está 1-0. Um zero, exacto. Esses insensíveis que só existem pela conquista e não pelo espectáculo. Esses imbecis que só querem saber se ganham ou perdem, não lhes importando saber quantos golos marcam ou sofrem. Para esses palermas, um jogo que tenha terminado 9-8 é um jogo que ficou por um, que terminou 1-0. São esses que, à beira da morte, resumem a vida inteira num cinzento “estive vivo”. Que desalento.
Esses coninhas da diferença mínima que nos querem substituir os sentimentos por calhaus. Esses seres desumanos que negam o meu golo ao ângulo, a minha assistência de letra e o meu frango admirável porque um 9-8, para eles, é um 1-0. É um jogo que está por um. Por um fio, sim. Esses ditadores do vazio que apagam a História, que lhe dão um fim, que nos dizem a nós, Winstons vigiados, que a guerra com o Eurásia FC não foi assim tão sangrenta porque foi só por 1-0. Esses limitados, no limite, dizem que nunca houve guerra. E, se é sempre para terminar por 1-0, talvez não devesse mesmo haver guerra. Nem paz. Não se faz.
Mais valia jogar sem balizas. Vamos tirá-las, não são precisas. E os jogadores também. Jogamos sem eles, não são amadores, não amam ninguém. E a bola, para que serve? Se já nem o sangue do golo ferve em quem a põe na gaveta. Já não faz sentido haver pé-de-chumbo, podão ou vedeta. Quem faz isto ao futebol é gente sem coração. Para estes idiotas, contar os golos dá muito trabalho. Vai-se a emoção. Vão para o caralho.
lolita
“Lolita, brilho da minha vida, fogo dos meus flancos. Minha alma, minha lama. Lo-lii-ta: a ponta da língua enrola no palato e desliza, três socalcos, até que estaca, ao terceiro, nos dentes. Lo. Li. Ta.”
Lolita, do Nabokov, é uma obra de arte que tanto dança na pontinha da faca como no meio da cama. É um corpinho liso e porco e criminoso que nos acorda aqueles pensamentos que não deveríamos ter para depois os acariciar com palavras que nos fazem sentir nojo por as achar tão belas. Lençóis sujos, cuequinhas rasgadas e estamos no paraíso e no inferno, no amor. Coisa mais bonita e proibida de se ler, feita de repugnância e de pedacinhos do céu.
a minha aldeia
A minha aldeia não tem lugar no mapa. Não se lá chega com gps nem com indicações na estrada. A minha aldeia está onde a gente não esquece. A minha aldeia está onde não está mais nada. A minha aldeia tem a forma da minha lembrança de quando, mais do que pequeno, eu era criança.
A minha aldeia tem as mãos gastas que me passam pela cara para tocar o neto daquela, o filho daquele, o menino tão pequenino que agora está um homem feito. A minha aldeia tem os olhos brilhantes pela noção do tempo longe que não volta e do tempo perto que pouco falta. A minha aldeia tem meninas nos sorrisos das velhinhas e velhinhas meninas nos olhos dos velhinhos. A minha aldeia tem os pés assentes na terra escaldada do sol ardente e enlameada da chuva que molha a vida da gente. A minha aldeia tem a saudade cravada nos gestos. A minha aldeia tem o uniforme negro da capela branquinha que toca o sino dolente na tarde calma. A minha aldeia arrasta o corpo em procissões e baila o vinho nos arraiais. A minha aldeia tem ais. A minha aldeia tem a crueldade do campo e do gado. A minha aldeia tem gente fora que só vem de vez em quando para a festa. A minha aldeia é fado que arde em lume brando. A minha aldeia é esta. A minha aldeia tem o coração no sítio certo. A minha aldeia é tão longe de tão perto. A minha aldeia tem a mesa rica de gente pobre que mal tem para quem lá vive e tanto tem para quem lá vai. A minha aldeia tem muito vazio. A minha aldeia tem calor e tanto frio. A minha aldeia tem o corpo da gente velhinha que num destes amanhãs já não existe. A minha aldeia é muito alegre e muito triste.
A minha aldeia não é lugar. A minha aldeia é corpo que existe nas coordenadas do meu. A minha aldeia sou eu.
aventuras de joão sem medo
Sou um medricas, tenho medo de tudo – o que não facilita nesta coisa da existência. Já o João não tem medo de nada, sacana do puto que me fez desejar-lhe a vontade do risco. O João mora num sítio muito triste que bem podia ser o interior das pessoas. Um belo (soturno) dia, decide que isto não é vida e decide saltar o muro para dar início a uma épica viagem de monstros, fadas e poesia.
Uma história que deveria estar na mesa de cabeceira de todos os adultos que, mesmo medricas, ainda têm coragem de sonhar.
verão azul
Mil novecentos e noventa e quatro, o Roberto Baggio falha o penálti e eu fico triste. O primeiro Verão de que tenho memória foi o mais feliz da minha vida. Éramos muitos, uns quantos adultos e uma catrefada de putos a partilhar um rés-do-chão de uma moradia em Lagos.
Havia um jardim, pequenino, em frente ao portão de entrada, e uma palmeira nesse jardim. Era lá que eu e os meus primos brincávamos. Havia uma piscina, mas só lá ia quem morava no andar de cima, nós não. Havia um grelhador com um adulto de boné sempre por perto, o meu pai ou algum dos meus tios. Cheirava a peixe e a carne grelhada. O melão era fresquinho e ainda hoje, dois mil e dezanove, me sabe àquele Verão. O meu primo João nunca queria ir despejar o lixo mas, na volta, já vinha a cantar. Também havia muito sol e sono depois de almoço. Mas os putos felizes não dormem, então, eu, o meu irmão e os meus primos íamos para o café jogar snooker e beber coca-cola. Os adultos ficavam em casa a dormir a sesta e a jogar às cartas.
Às quatro horas, voltávamos para a praia. Corríamos, jogávamos à bola e tentávamos escavar buracos até à China – nunca conseguimos, por exclusiva culpa do mar. O regresso era feito de areia nos pés, alguns desaguisados entre primos e uma vincada falta de vontade de ir tomar banho. A vontade, mesmo que vincada, dos putos não prevalecia sobre a vontade, mesmo que branda, dos adultos e então lá íamos nós de burro preso para o banho.
A alegria regressava num instante. Era Verão e era família. E eu era criança (o que ajuda muito nesta coisa da felicidade). Nada mais importava porque, para mim, nada mais acontecia além do que acontecia ali. E, numa televisão pequenina que estava na sala, o Roberto Baggio deu balanço. Olhou para o árbitro, olhou para o Taffarel e correu. Eu adorava o Taffarel, o Raí, o Romário e o Bebeto, mas adorava mais o Roberto Baggio. Torcia pelo Brasil porque não havia Portugal, mas fiquei muito triste com aquela bola por cima da barra. Felizmente, havia Verão partilhado naquele rés-do-chão de uma moradia em Lagos.
declarações de guerra
Não é um livro, é um estilhaço de granada. “Declarações de Guerra” conta, em carne viva, as vidas de ex-combatentes portugueses no Ultramar. As vidas que foram e as que ficaram, ditas por eles mesmos, furriéis, soldados, cabos, alferes, sargentos, todos eles destroçados por uma guerra que não era deles. Ficaram-lhes as vidas que já nem vidas são. Ficaram ninguém.
Um trabalho excepcional de Vasco Luís Curado que esventrou o politicamente correcto para dar voz a quem não queremos dar ouvidos.