o palhaço
Os balões, as flores e os narizes vermelhos faziam agora parte de um passado que ele queria esquecer. Apesar de todas as gargalhadas que ouvia sempre que subia a palco, ele, o palhaço do seu circo, invertia o que ouvia em sentimento. Todas as noites, vestia-se de cores em forma de roupa e lá ia ele. Actuava sempre depois do domador de leões e antes da trapezista. Mas ele era o único que se sentia desequilibrado sempre que olhava de frente o animal selvagem que era a sua vida. No fim, depois da felicidade (a dos outros), enfiava as mãos nos bolsos e as ideias no chão. Tinha riscos azuis, brancos e vermelhos a escorrerem-lhe dos olhos. Não deveria ter saído dali sem se desmaquilhar. Não deveria ter saído dali a chorar. Mas ele era um palhaço. A felicidade era o seu trabalho. A tristeza era o seu descanso.
pequenas estórias de muitas vidas | livro de contos – 2014
ele e ela
Estes são o meu tio António e a minha tia Fernanda, embora nunca tenham sido, para mim, nem António nem Fernanda. Estes são o Quicoino e a Nhanha. Ela morreu em 2002. Ele tem morrido aos poucos desde 2002. Ele existe, ainda, e ela também, num lugar diferente. Ele com muitas saudades dela, ela lá longe de nós. Ele choraminga sempre que a lembra, faz beicinho e limpa os olhos com as mãos enrugadas e duras e já fechadas sobre si mesmas. Solta um suspiro e tenta arranjar mais um bocadinho de ar para continuar neste lado sem ela. Tem conseguido. Ela enchia-me de mimos e eu roubava-lhe Ferreros Rocher. Ele tocava trompete e deixava-me chateá-lo enquanto dormia na espreguiçadeira. Foram-me tios por grau e avós por coração, tantas vezes pais. Hoje, o Quicoino está cansado e triste pelas saudades que nunca deixou de ter dela. Ela, a Nhnanha, tem a gargalhada estridente em cada memória que ele traz à conversa. Ele a preto e branco, ela a cores. Ele e ela, dois amores.
laurindinha
Ela passava o dia à janela. Viu o seu amor ir para a guerra e não o viu voltar. Mas esperava por ele como quem espera pelo futuro. Vem amanhã, vem amanhã, sempre amanhã, só amanhã. Os passarinhos eram a sua companhia. Empoleiravam-se no parapeito e ela empoleirava-se nos peitos deles. Para onde eles olhassem, ela olhava também. À procura dele. Mas ele não vinha, já se sabe. Sabia de cor todos os passos de todas as pessoas da aldeia. As horas a que saíam de casa, as horas a que chegavam, as horas a que se demoravam na praça, na florista e na escola. Dizia olá a quem vinha, dizia adeus a quem ia. Anotava brigas e negócios, encontros e desencontros. Assistia, do terceiro anel do seu parapeito, às jogatanas de rua onde as pedras eram postes de baliza. Marcava faltas, gritava, incentivava, fazia claque. Os putos não lhe ligavam patavina.
Laurindinha não era velha nem era nova. Tinha a idade do tempo e vivia bem com isso. Não se queixava. Era o bibelô da aldeia, o naperon em cima daquela antiga televisão que era a sua casa, uma casa a preto e branco com dois canais e sem comando à distância. À distância, só o seu amor.
lágrima | romance – 2015
na minha língua
Sei do seu sabor na minha língua,
do seu cheiro no meu corpo que tremia
(ainda treme ao saber da sua mão!)
que deu pele à sua boca que descia
e pecado ao meu ventre que sentia
o vir da pele direito ao coração.
São tão frágeis estas veias neste sangue,
foi tão cedo para ser tão ser aflito
que gemeu,
estremeceu
e morreu
ou virou grito.
Não sei se o que sinto ainda agora
é da fome que ela trazia presa à boca
e que, viva, na minha ainda mora
como coisa impaciente que demora…
Coisa maldita, doida tão louca!
Ou terá sido outra coisa que não digo?
Outra coisa que não a realidade?
Não sei, mas sei dela aqui comigo,
deitada no lençol desta saudade.
seios, peitos, belezas puras
Seios, peitos,
belezas puras,
seres tão perfeitos
em desventuras!
Chuchas, tetas,
sonhos de deus,
redondas setas subindo aos céus.
Montes serenos, montanhas nuas,
grandes, pequenos, paisagens tuas.
Lírios, marmelos, flores de jardim
que eu, só de vê-los, quero para mim.
Faróis que ferem aos meus gemidos,
bemóis que querem ser sustenidos.
Docinhos gomos na minha boca,
suores que fomos, e tu tão louca
que assim ficámos, de mão na mão.
Tanto suámos, que o coração
era dos dois, mas no teu peito,
antes, depois, de qualquer jeito,
bate mais forte, mais sem rodeios,
mais do que a morte, vejo os teus seios.
E eu, um pelintra (ou lá como me chamas)…
Tiras-me a pinta e eu beijo-te as mamas.
lamento, lili
Lamento, Lili, mas estar vivo não é o contrário de estar morto. A morte não é um estado. Não se pode estar na ausência. Estar pressupõe vida, continuidade, existência. Estar morto é uma contradição. Morre-se e pronto, não se está morto. Não se está, ponto. Estar vivo não é o contrário de nada. Estar vivo, simplesmente, é. Estar morto não é.