origens
Hoje, fui às origens, ao alto da serra com cheiro a verde e a frio. Antes do almoço, a tasca do senhor Zé não tinha ninguém. Entrou o meu primo, entrei eu, entrou o João, a Beatriz e a Clara. Tantos e o senhor Zé e a sua mulher atrás do balcão. Minis e martinis. Ela fugiu mal viu a máquina fotográfica, ele ficou sem medo, embora a custo para se manter em pé. Conversas da terra e de quem éramos, de onde, netos de quem, do Álvaro, dissemos nós. O Álvaro… fomos a tantos bailes… disse ele. E contou, e ouvimos. E entrou mais gente que sorriu e ajudou a servir e a sorrir também. Tasca velha, com calendários da Nossa Senhora e da Super Bock, paredes de cimento e trabalho duro nas mãos. Fim de manhã nas origens no alto da serra, onde o meu avô falou pela voz amável e clarinha do senhor Zé.
pernas caladas
Pernas caladas, seguras, paradas,
olhadas, maduras, beijadas,
ausentes, insanas, carentes,
presentes, mundanas, doentes,
amadas, infindas, suadas,
dançadas, bem-vindas, sonhadas,
sozinhas, quietas, rainhas,
mindinhas, poetas, branquinhas,
vincadas, mordidas, tocadas,
voadas, perdidas, achadas,
imensas, poucas, intensas,
doenças, loucas, sentenças,
deitadas, violentas, cruzadas,
aguadas, sedentas, blindadas,
vividas, breves, sofridas,
sentidas, leves, fodidas.
Pernas legendadas de palavras banais,
pernas caladas que falam demais.
a minha avó
Hoje, faz anos a minha avó. A minha avó já não existe. Foi embora quando eu era pequenino. Morreu. Mas não morreu muito (morre-se muito quando não se é lembrado). Esta é a única lembrança que eu tenho da minha avó. E, mesmo ou sendo única, faz-me lembrá-la muitas vezes. Eu deitava-me numa manta feita de retalhos e a minha avó puxava-me e levava-me a ver o mundo inteiro naqueles poucos centímetros que ela conseguia percorrer comigo ao colinho da manta. Hoje, é de um só retalho a lembrança que tenho da minha avó. Mas continuo a viajar graças a ela. Deitado com ela dentro. Obrigado, avó. E parabéns.
silvino
Silvino foi um homem às direitas, como o seu punho, que acertou em cheio no meio milhão de chicos-espertos que tiveram a ousadia de piscar o olho à senhora sua esposa que, por muito boa esposa que fosse, por muito boa roupa que passasse e por muito boa comida que cozinhasse, lá, de vez em quando, se aperaltava em excesso dos cabelos às pontas das unhas, da mini-saia ao decote, e desafiava o mais desconchavado coração que se babasse nos olhos de qualquer palerma. E ele não gostava disso.
Pudera. A mulher era dele, os cabelos eram dele, as unhas eram dele, a mini-saia era dele e o decote era dele. Eram da mulher, mas eram dele. Só ele podia olhar. E o punho que escangalhava os queixos dos habilidosos que, distraídos, se concentravam naquelas relíquias empinocadas, também era dele. Era dia sim, dia também. Noite sim, noite também. E, à tarde, também havia forrobodó. Sem alarido, que o povo é sereno. E Silvino também era, só o punho é que não. Ninguém consegue ter controlo total do seu corpo. Há quem não controle o coração, há quem não controle o punho. Aquilo acontecia-lhe assim sem mais nem menos. Sem quês nem para quês. Era com cada bujarda que o café estremecia, a televisão mudava de canal e o canal mudava de apresentador. Era impressionante.
E impressionante foi também a cabeçada que ele deu na esquina da mesa onde um copinho de uísque e um jornal se acompanhavam. Foi ela que o matou. A esquina. E os outros uísques que emborcava como quem limpava atrevidos. Eram às dúzias, às centenas, aos milhares. Naquele dia, bebeu um a mais e caiu. Deu-lhe um aperto no coração e um desaperto na boca. Soltou a língua, fraquejou as pernas e lá foi ele, com a cabeça direitinha à esquina da mesa. A pancada foi seca, apesar da vesícula encharcada. Lançou um grito mudo e catrapumba. O café parou. A televisão não mudou de canal e o canal não mudou de apresentador. Acabou-se o Silvino.
lágrima | romance – 2015
o futuro próximo
Lisboa, Teatro Nacional D. Maria II, ano três mil e tal, pelo menos, pelo que se mostrava em palco. Personagens anestesiadas de vida à procura da morte. É isto que se passa nesta peça que vai do nojo à poesia, do transe ao osso. Este Futuro Próximo é uma bizzaria que nos desconcerta do princípio ao fim da história (que nem é o princípio nem o fim da história toda). Há riso, choro, merda, amor, ilusão, melodia, repulsa e morte. Há muito de entranhas nesta peça futurista que, na sua essência, nos fala de nós e da nossa relação com os outros – mas mais ainda da nossa relação connosco. Lisboa, Teatro Nacional D. Maria II, dois mil e dezanove.
as intermitências da morte
“No dia seguinte ninguém morreu. O facto, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos os aspectos justificado, basta que nos lembremos de que não havia notícia nos quarenta volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido fenómeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas as suas pródigas vinte e quatro horas, contadas entre diurnas e nocturnas, matutinas e vespertinas, sem que tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela palavra nada.”
José Saramago
bestas de lugar nenhum
“Começa assim. Sinto comichão como insecto que rasteja na pele, e depois cabeça começa a picar mesmo no meio dos olhos, e depois quero espirrar porque o meu nariz comicha, e depois bufa ar no ouvido e ouço uma data de coisa: tique-tique de insecto, ronco de camião como animal, e depois alguém que grita ÀS VOSSAS POSIÇÕES JÁ! RÁPIDO! RÁPIDO! RÁPIDO! TUDO A MEXER! TOCA A ANDAR OH! com voz que raspa no meu corpo como faca”.
Uzodinma Iweala
é urgente
é urgente
pássaros que não caibam em gaiolas
corpos que não caibam em caixões
mortes que não caibam em pistolas
cravos que não caibam em espingardas
mãos que não caibam em esmolas
notas que não caibam em carteiras
sonhos que não caibam em lembranças
brinquedos que não caibam em crianças
palavras que não caibam em dicionários
gritos que não caibam em paredes
cravos que não caibam em lapelas
cores que não caibam em aguarelas
olhos que não caibam em janelas
cães que não caibam em trelas
fodas que não caibam em silêncios
vidas que não caibam em orações
versos que não caibam em canções
um poema
Fiz um poema inspirado no meu gato. Espero que gostem:
Eu tinha um sofá
Eu tinha uma jarra
Eu tinha uma cadeira de pele
Eu tinha livros numa estante
Eu tinha cordas na minha guitarra
Eu tinha cabos de internet
Eu tinha cabos de televisão
Eu tinha cabos de computador
Eu tinha cabos, ponto
Eu tinha duas pernas
Eu tinha dois braços
Eu tinha tapetes
Eu tinha cortinas
Eu tinha roupa no armário
Eu tinha um copo em cima da mesa.
portugal, um problema
Sol, praia, serra, chuva, neve, comida, bebida, cultura e gente boa. Portugal tem tudo, só não tem estrume que chegue para fertilizar o que cá está. Para ser melhor, para ter um futuro mais forte, feliz e saudável, Portugal precisa de mais estrume.
Precisa de mais Casas dos Segredos, mais cabelos rapados de lado com crista em cima, mais Schwarzeneggers de ginásio, mais 760-100-200, mais condutores na faixa do meio, mais folhas Excel, mais formulários nº 102/4 alínea D de 2003 e troca o passo, mais sushis no Facebook, mais pores-do-sol no Instagram, mais comentadores de futebol e de política e de economia e de coisa nenhuma, mais anúncios da dona Alice a abrir o Intermarché a meio da noite para ir buscar o leite ao Joãozinho, mais playback, mais frases do Paulo Coelho, mais beatas no chão e na missa, mais óculos às cores, mais cantores de domingo à tarde, mais submarinos e Tecnoformas e Freeports e Montes Brancos e BES e BPNs, mais Apitos Dourados, mais condutores de fim-de-semana, mais narizes empinados, mais mamas descaídas, mais greves do Metro e da Carris e da TAP e dos táxis e dos enfermeiros e dos professores e dos médicos e de todo o tipo de funcionário público que existe ou está por existir, mais férias judiciais, mais tatuagens com caracteres chineses, mais hamburguerias gourmet-retro-chiques, mais equipas do Sporting, mais tudo o que é mau e nos chateia.
E nós, os tugas, só chateados, com os nervos à flor da pele e o sangue à flor dos olhos, é que conseguimos fazer alguma coisa. A padeira não deu uma coça aos castelhanos por estar feliz da vida, mas porque os sacanas dos nuestros hermanos lhe interromperam a cozedura do pão. O Infante Dom Henrique não “saiu” de Sagres porque estava cansado de estar na praia de papo para o ar a ver inglesas, mas porque não admitia que o mundo poderia acabar no Algarve. O Ronaldo não ganhou cinco bolas de ouro por ter tudo o que qualquer comum mortal ambiciona durante toda a sua vida, mas sim porque o Platini, o Blatter e o Messi dão cabo da paciência (e dos rins, no caso do Messi) a qualquer um.
Precisamos de estrume para ficarmos chateados. Precisamos de estrume para fertilizar a nossa vontade. Para existirmos, para agirmos. Nós não existimos, resistimos. Nós não agimos, reagimos. E é esse prefixo (Re – Re – Rrrr!!!) que não renegamos e nos renasce renascendo connosco, é esse prefixo que nos reencaminha num regresso ao passado, é esse prefixo que faz de nós reis do reino dos recordes do Guinness. Somos uma espécie de rebanho em refogado a redescobrir coisas que, pelo prefixo, já estavam descobertas. Deixemos as redescobertas onde estão, recordemo-las, mas apenas isso. Está na altura de descobrir. Não o que existe lá fora, mas o que existe em cada pedaço das nossas entranhas (e é sabido que, tecnicamente, as nossas entranhas não são mais do que estrume).
as dores dos outros
Quando pensamos em sem-abrigo esfomeados, criancinhas doentes ou velhos sozinhos para conseguirmos superar as nossas dores, não estamos a sentir nem amor nem empatia nem compreensão. Quando pensamos em sem-abrigo esfomeados, criancinhas doentes ou velhos sozinhos para conseguirmos superar as nossas dores, estamos a sentir prazer. E esse prazer é, como todo o prazer que há, egoísta. Estamos preocupados connosco, com as nossas dores, não com eles, com as dores deles. Estamos a usar os sem-abrigo esfomeados, as criancinhas doentes e os velhos sozinhos. Eles são aquele banquinho para chegarmos à última prateleira (e nem sequer está lá nada). As dores dos outros ajudam-nos a combater a nossa, servindo de alavanca para a esperança que temos em nós, não nos outros. Portanto, “se aquela criança tem cancro e está a rir, eu também posso rir e brincar e ser feliz, não tenho razão para não o fazer, há quem esteja bem pior do que eu”, não. Deixemo-nos disso. Não faz sentido mentir. Não há dores iguais e, comparando, não há dores comparáveis. Cada um tem as suas, cada um sofre as suas. Não vamos fingir que nos preocupamos genuinamente com os outros quando estamos assim e não vamos fingir que ficamos genuinamente melhores quando os usamos. É mentira. A dor não acompanha o fingimento. As dores doem mais se forem nossas e se, nossas, as sofrermos sozinhas. Mas só assim é que elas podem deixar de ser o que são. Em verdade.