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Junho, 2020
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o fernando

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Hoje, reencontrei o Fernando. O Fernando foi meu treinador no clube do meu coração, e é no meu coração que está o Fernando. Eu era o número 7, o médio centro criativo, o pacemaker (o mesmo que playmaker mas na linguagem especializada do Mister), o marcador de cantos, o distribuidor de jogo, o médio que fazia o bico do triângulo quando jogava o Edi e o Caldeira. Durante cinco épocas, de iniciados a juniores, o Fernando foi mais do que meu treinador. Foi meu líder, foi meu companheiro, foi meu amigo. E nunca foi o que foi porque me punha a titular ou porque me dava a responsabilidade dos penáltis, dos cantos e de falar no primeiro treino depois do jogo – o futebol, na verdade, nunca foi o mais importante. O Fernando foi o que foi e o que ainda é por ter sido um dos grandes pilares da minha vida. Foi o meu professor da bola, ensinando-me bem mais de vida do que de escola, bem mais de amizade do que de bola. Tanto recebi raspanetes como abraços, pré-épocas loucas nas dunas da praia da Vieira como jantaradas de comer e chorar a rir. Tanta coisa boa que lá vai. Tanta coisa boa que me fez do Fernando uma espécie de segundo pai. Não é exagero nenhum o que escrevo – muito do que sou é a ele que eu devo. O Fernando é, acima de qualquer táctica, um homem bom, com coração escondido atrás da barba e do boné que lhe escondem a criança que ainda é. O Fernando fez de mim um homem. E de tantos que nunca deixou para trás. Nunca. Levantou-os, tantas vezes do seu próprio bolso e todas as vezes do seu próprio amor. Hoje, reencontrei o Fernando. Quase chorou por me voltar a ver e me saber bem. Quase chorei também, vendo, ouvindo, lembrando – uma espécie de golo do coração. E é no meu coração que está o Fernando.

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a minha prima clarinha

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A minha prima Clarinha tem um escurinho parecido com o meu. Lá no seu peito, como cá no meu, há trovões leões canhões que despertam apertam inquietam o que há. Pequenina, também tem vontade de rugir gritar fugir chorar. E ruge grita foge e chora – epicentro. E tudo treme lá fora, lá dentro. Há dias, tremia eu por inteiro, quando a minha prima Clarinha me tirou do escurinho quando me disse que também o tinha, que também o via. Eu falei-lhe do meu, como se ela não fosse uma criança, que é e não é por sentir que sente coisas que não devia, nem devia, ninguém devia, mas sente tanta gente e tanta gente mente. E tentámos enganar o escurinho com palavras e números. Ela ensinou-me a fazer contas de dividir e conversões. Eu tracinhos e um verso. E acalmaram-se as convulsões – tornaram-se então coisa pouca. Iluminou-se o universo. Há palavras que nos beijam como se tivessem boca.

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não tenho amigos brancos

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Eu tenho amigos pretos, mas não tenho amigos brancos. Os meus amigos pretos são amigos pretos. Os meus outros amigos são só amigos. Não lhes dou cor porque nunca lhes dei, porque nunca precisei de lhes dar cor, porque eram da minha cor. É assim que somos, mas não é assim que os nossos amigos são – é assim que os pintamos. Culpa da sociedade, da cultura, da educação, do que seja, de tudo um pouco, que se entranha em nós em pequenos e não se estranha em nós em adultos quando cuspimos cores, por muito que seja sem querer, sem pensar. ⠀

Não sou eu, mas também sou. Os meus amigos são os meus amigos, quer sejam brancos, pretos, carecas ou com nariz. Não são os meus amigos brancos, os meus amigos pretos, os meus amigos carecas nem os meus amigos com nariz. São os meus amigos. Mas há quem tenha amigos pretos e, tendo-os, é porque tem mais a cor do que a amizade, porque tem mais o preconceito do que a verdade.⠀

Não somos todos, mas somos. Por muito que custe admitir, custa mais sentir na pele a cor da pele. Eu não sinto porque sou branco, porque tenho a cor que a sociedade, a cultura, a educação nos diz que é a certa, e que é a cor a que, por norma, ninguém aperta o pescoço, a cor que não vai até ao osso até sangrar até morrer. Sem ar. Porque nunca fui discriminado, porque nunca fui insultado, porque nunca fui morto por ter esta cor que, sendo branca, sendo diferente de todas as outras, é igualzinha a todas as outras que vestem os corações de quem anda, canta, chora, ri, falha, conquista, come, dorme, pensa, sonha e ama como eu, como nós.⠀

Não sou eu, mas também sou. Somos todos. E, para sermos um e todos como devemos ser, precisamos de pensar antes de ver. Combater. Enquanto ainda nos deixarem respirar.

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de lá voltar

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Não são saudades de ser criança, são saudades de lá voltar, ao sítio que se era. Só para saber como se faz, como se brinca, como se ri, como se sente, como se confia. Só para isso. Seria breve, que a vida é breve, e bela também, assim, mas seria, embora breve, embora bela, seria, com fim, para voltar. Iria lá longe, lá dentro, bem debaixo das camadas do medo que a vida trouxe, só para saber como se faz, como se era, como se é, como essência. Só para saber disto que sou quando era tudo em bruto, sem metades. Não são saudades de ser criança, são vontades de ser esperança em permanência. E não um conjunto de camadas que, de tantos medos, são tantos nadas.

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