levado pela corrente
Senti-me mais perto quando me afastei. Custou o frio da água, mas nada mais. Olhei o longe e mergulhei, como se tivesse entrado na primeira dimensão da nossa vida, na placenta da mãe, desta vez, porém, na placenta de mim mesmo. Nadei até onde consegui e parei. Emergi. Fiz-me pesado para cair – o peso leva-me ao fundo – para ver se tinha pé. Deixei-me ir, queria tocar o mundo, mas vi que não era no fundo que ele estava. Deixei-me levar, fosse o que fosse, e vi-me a boiar. Boiava, e o mar salgado fez-se doce e eu fiz-me parte do mar. Senti-me mais perto quando me afastei. Mais perto de mim, afastado da gente. Mergulhei sem um fim, e deixei-me assim, levado pela corrente.
solidão, uma proposta curricular
A solidão devia ser ensinada na escola. Devia ser uma disciplina, mas das obrigatórias, como Português e Matemática. Talvez até mais obrigatória do que essas. Não, de certeza mais obrigatória do que essas. Antes da primeira letra ou do primeiro número, já o nosso peito fez as contas ao aeiou da solidão. E ela vai-nos existindo ao longo da vida, especialmente em épocas de recurso. Mas sem qualquer ensinamento. Sem nenhum dicionário nem tabuada do ratinho que nos ajude a lidar com ela – uma espécie de tabuada do um, na sua primeira multiplicação, sempre um vezes um, até decorarmos que, de facto, um vez um é mesmo um e que tudo o resto é elevado a ilusão.
A solidão devia ser ensinada na escola. Um módulo em cada semestre: Solidão – Introdução ao Estar Sozinho; Solidão – Ser Sozinho Não é Não Ser; Solidão – Estudo do Meio; Física e Química da Solidão; Educação Visual para Dentro; Educação Física da Memória; Língua Estrangeira I, II ou III (Loneliness, Soledad ou Einsamkeit), e por aí fora. Estas disciplinas seriam leccionadas em pouquíssimo tempo e com um único aluno por turma, no meio de uma única sala, para o aluno se habituar rapidamente ao mercado de trabalho. E sem teoria que, na solidão, a teoria já é prática. Os exames seriam no final de cada aula, sem consulta nem acesso a calculadora (para evitar ser acompanhado por cábulas) e não assim de repente, como nos acontecem ao longo da existência, logo depois de uma qualquer maravilha no recreio. Não devia ser assim. É que nem sequer somos avisados com uma semana de antecedência. Hoje há exame, André. Mas eu nem sequer estudei. Tens ali aquela mesa no meio da sala. Mas… e quanto tempo tenho? O tempo que tu quiseres. A princípio, pode parecer que vai durar uma eternidade mas, se te esforçares, pode ser que dure menos, meia eternidade, vá. E lá vai o aluno, eu, nós, para aquela cadeira sozinha em frente à mesa sozinha numa sala sozinha com um exame cheio de respostas de escolha múltipla, muitas de escolha nenhuma, e nenhuma certa.
Precisamos aprender a solidão. Mesmo que demoremos a outra metade da eternidade a preencher o enunciado da folha de exame – a tentar lembrarmo-nos de quem somos.
o peso do medo
Serei a única pessoa com medo? com dúvidas do que faz e do que pensa e do que sente e do que tudo? A única a tomar anti-depressivos, três por dia, por vezes quatro e cinco, e a ter consultas de psicoterapia e psiquiatria para tentar lidar com este escuro? a acordar com manadas de angústia e incerteza no peito todo? a chorar tantas vezes por medo de errar, de ter errado, de não ter força nem esperança nem casa nem família nem filhos nem dinheiro nem sucesso nem colo nem amor nem paz nem ninho? a ter fobia a multidões e atracção por gentes sozinhas que mais sozinhas a deixam? a sentir-se culpada por pouca ou nenhuma ou partilhada culpa que tenha havido em algum momento em algum lugar? a culpar os pensamentos? a desculpar a culpa? a preocupar-se com o que pensam os outros de si, do que faz, do que veste, do que sente, do que beija? a não conseguir dormir por culpa dos fantasmas cá de dentro? a rir para os muitos e a chorar aos muitos só para si só para não dar parte fraca porque a parte fraca é forte forte forte como a certeza de que, um dia, qualquer dia será morte? a precisar constantemente de aprovação externa porque a interna é um grande xis vermelho carregado pela ausência de confiança? a lembrar o passado só com a inglória e dolorosa e vã vontade de o mudar? a sentir-se irrelevante no viciado e sujo curso do mundo? a ter tanto aos olhos dos outros sem razão para sentir isto? O que é isto? a ter ataques de pânico pelo sofrimento do outro e pela expectativa do sofrimento do outro outro que sou eu? a ter medo de falhar a própria vida?