não és tu, sou eu
Não és tu, sou eu. Entendes, mundo? Tudo o que me magoa está cá dentro, não aí fora. Tu não tens nada que ver com isto. Tu existes com as tuas pessoas, as tuas ruas, os teus rios, as tuas auroras boreais, os teus sismos, os teus vírus, por aí fora. Eu é que, por vezes, não sempre, não consigo existir com as pessoas, as ruas, os rios, as auroras boreais, os sismos, os vírus e por aí fora que eu tenho por aqui dentro, que, na verdade, eu sou. Não és tu, mundo. Nada tens que ver com as minhas euforias nem com as minhas quedas para melancolias. Nada, sou eu, está tudo em mim. Tudo o que amo e tudo o que odeio está em mim. E eu preciso de saber lidar com isso, e isso sou eu. Quando digo a alguma pessoa que a amo ou quando mando alguém para o caralho, estou, apenas, a projectar coisas lindas ou merdas que vão cá dentro. Amo o outro, odeio o outro, amo-me, odeio-me. Acho que é assim que funciona. E funciona lindamente quando é o ódio a mandar. A culpa não é dos pretos nem do trânsito, não é dos chineses nem do tempo, a culpa não é de nada nem de ninguém. Sendo, talvez seja nossa, que a inventamos para podermos justificar comportamentos que não têm justificação, e cuja causa não queremos destapar. Não queremos saber o porquê de odiarmos. Nem sequer queremos saber o quê ou quem odiamos. É ódio e pronto, nada mais interessa. O que eu acho, e eu não tenho qualquer autoridade para atribuir valor ao que eu acho, é que nós vivemos para os outros um pouco como espelhos de nós mesmos. E que a sujidade das palavras, os dentes cerrados e a saliva a espumar na boca são meros reflexos do que se passa dentro de cada um de nós. Não és só tu, também sou eu.
da cegueira (da estupidez)
Eu tenho uma almofada. É uma almofada. É mesmo uma almofada. Não há dúvida nenhuma. Vem uma pessoa e diz que aquela almofada não é uma almofada, mas sim uma carrinha de caixa aberta. Atenção, é uma almofada, mas a pessoa diz que é uma carrinha de caixa aberta. Como é que eu convenço a pessoa de que a almofada é uma almofada e não uma carrinha de caixa aberta? Eu mostro-lhe a almofada, a pessoa não é cega, a pessoa vê que é uma almofada, vê que é um objecto fofinho, uma espécie de saco estofado para assento, para encosto da cabeça ou para fins decorativos, é uma almofada, caraças, não há dúvida nenhuma de que é uma almofada. Mas aquela pessoa, vendo uma almofada, diz que é uma carrinha de caixa aberta. Como é que se discute, como é que se debate, como é que se conversa com uma pessoa destas? Pronto, é assim que me sinto sempre que me aparece um idiota xenófobo, homofóbico, racista, machista, anti-máscara (em separado ou acumulando, tanto faz) à frente. Não consigo. É difícil. É impossível debater, discutir, conversar com pessoas que são paredes. Mesmo assim, continuo a achar que é debatendo, discutindo, conversando e, essencialmente, deixando que esta gente debata, discuta e converse para que todas as pessoas que olham para uma almofada e vêem uma almofada saibam quem é esta gente que não é cega, mas que é cega e tenta cegar os outros através da estupidez.
todas as coisas maravilhosas
Vi a minha vida dita por ele. Vi eu e toda a gente, que toda a gente sente o que se disse, se cantou, se ouviu, se chorou. Se não fosse verdade, bonita e feia como deve ser, alegre e triste como se vê, não teria chorado com vontade, e eu chorei, toda a gente chorou. Porquê? E riu, que a vida é bela e tem canções, pessoas aos trambolhões, gelados! Mas chorou, que a vida dela era depressões, pessoa às desilusões por todos os lados. Esta peça – que não é peça, que é teatro e que, por isso, é vida – sou eu, também. Já alguém ponderou a morte? Decidida. Sou forte, por sorte ainda ninguém disse é a vida, morreu. E a felicidade, doutor? Será ela verdade? Nunca lhe tive vontade, só horror, temor, terror, nem amor. Serei alguma vez o que escrevi? Coisas maravilhosas que acho da vida, que vi, toquei, cheirei, comi, mas que, em papel, não existem… Nem sei qual é o meu, nem sei sequer quem sou eu, não quero ser dos que desistem. Não sou. Por isso, vou. E o meu cão também lá estava, centro da vida, vida que escava, e escavei eu, ainda escavo, ao ouvir o Palma e a Regina e tudo o que… Bravo! Bravo! Aplausos de toda a gente a toda a gente que viu a vida dita por ele. Disse a minha, também. Ali, inteiramente sozinha. Sem. Querida, bondosa, moída, chorosa. Que ela não desista, que nela há uma lista com esta peça – que não é peça, que é teatro e que, por isso, é vida -, coisa maravilhosa.
voltar ao que ainda tenho
Voltar a Lisboa, mesmo que por brevidades, é voltar ao que ainda tenho escondido debaixo do tapete das vontades. É dar de caras com fantasmas que ainda existem, dormindo, e, devagarinho, dizer-lhes acordem, acordem, vamos brincar àquele jogo do chorando e rindo, combater memórias como se fosse dança, ir ao chão como nas histórias sem vitórias, sem vingança. Criança que me sinto neste parque infantil do terror, do medo, da culpa, do amor e do ciúme. De tudo o que há de certo e de errado, que este aperto é como lume, e eu queimado. Voltar a Lisboa é ir por um caminho sujo com destino à luz clarinha, ao céu, ao rio quase mar. Mas ainda volto devagarinho, que esta dor ainda é minha, e ainda me custa voltar.
estar longe
Há um grande equívoco nisto do vírus: a promoção do distanciamento social. Um engano. Não é o distanciamento social que devemos incentivar, pedir, desejar até. É o distanciamento físico. Físico. Devemos evitar a aproximação de corpos, sim, não a aproximação de conversas, ideias, discussões, carinhos, preocupações, vontades. Os cartazes de rua e as manchetes de jornal não deveriam obrigar ao afastamento social, mas sim à aproximação social. O afastamento de mãos, de braços, de bocas, sim, tudo bem, que é isso que, de facto, transmite o vírus. O afastamento de tudo o resto que há além disso, não, que é tudo o resto que há além disso que transmite o que somos. Acho mesmo que deveria haver, ao contrário da errada medida que é imposta, um incentivo à aproximação social. Nunca, aliás, foi tão necessário, tão indispensável, tão essencial aproximarmo-nos uns dos outros. Estamos longe, caraças, cada vez mais longe. E claro que não falo da aproximação de peles, que isso é o menos importante quando nos tocamos. Distanciamento físico de dois metros, aceito, distanciamento social de menos dois, a ponto de, não só tocarmos, mas entrarmos no outro, irmos lá dentro, sem tocar, e falar, perguntar, ouvir, acariciar e existir, quero. Aproximemo-nos socialmente, mesmo sem tocar, que o vírus só nos afasta dos corpos, não daquilo que temos dentro, e que nos faz ser. E sonhar.
não consigo a vida
Preciso de ajuda, assim não consigo a vida. Há quase três anos que disse estas palavras, por esta ordem, com esta boca. Preciso de ajuda, assim não consigo a vida. Nem ver, nem ouvir, nem tocar, nem brincar, nem sorrir, nem estar, nem ser. A vida, não conseguia a vida. Ela mesma, eu próprio. A sala de consultório sempre me intimidou um pouco. O silêncio, as estantes carregadas de livros, os cadeirões ao fundo, junto à janela. Pouco a pouco, fui deixando de dar por ela – como se fosse ela o que eu sou. Nela, ou em mim, fui dizendo palavras que eram palavras, crenças e fantasmas. Na penumbra dela, ou na escuridão de mim, dei-me a mão e permiti-me entrar, mexer, escavar, cheirar, tocar, lutar, provar, cuspir, engolir, morder, gritar. Não tem sido uma maravilha, não, mas tem sido uma descoberta, de porta aberta, pela ilha que eu sou, em que me tornei. Não sei por onde vou, não sei para onde vou, sei que vou, isso sei. Mais nada. Tenho, ainda, muita lama nos meus pés, muita merda que me chama e me seduz a ser errado. Mas também acho que tenho, que estranho, coisas bonitas em todo o lado. E é o que me faz continuar, saber que eu posso ser quem quero ser, sabendo, primeiro, o que me há no interior – e o que é isto do querer. Acho que há amor. É só voltar a aprender.
passos em volta
A poesia tem forma. Braços, bocas, pernas, costelas, línguas, pés, cabelos, dentes. A poesia tem forma. E transforma e transgride e transporta a vida para as veias e vozes e vazios de quem a morde, trinca, saboreia e engole. O Herberto Helder fez poesia. O João, o Duarte, o David e a Beatriz deram-lhe forma. Materializaram-na, deram-lhe um corpo que ela usou que era o seu mas que não era. Era dela, claramente. Às escuras, aos saltos, às danças, às merdas puras que têm só quem sente. O João foi riso e verdade. O Duarte foi corpo, arte e loucura. O David foi puta, crueldade. A Beatriz foi, mesmo calada, apenas dançando sem voz, o grito aflitivo do nada, a vida quieta dançada, foi todos nós. Só agora voltei a ter respiração. Sinto que estive morto a viver. Quieto, no meu lugar. Corre-me o coração. A poesia também é ser. A forma é o seu estar.
“Passos em Volta”, encenação de João Garcia Miguel.
dá a patinha
Quando veio, ficou. Pequenino, aos pulos, comigo. Correu, sorriu, brincou, entristeceu, ganiu e agora voou, e eu perdi um amigo. O Freud estava velhinho. Já mal se mexia, gemia, e já não sabia ser cão. No último dia, foi ninho. Foi ele que nos deu carinho, nos olhou devagarinho e nos lambeu o coração. Ele tinha o dele de criança, de puto reguila, velho teimoso. O coração também se cansa. O dele, maior do que a pança, deixou-nos o tempo-lembrança, deixou-nos o rosto chuvoso. Resta a alegria que tinha, que dava aos outros e aos seus. O resto é vida sozinha. Amor, dá a patinha. Senta, deita… adeus.
só de olhos fechados
Deveria haver um Tinder só connosco. Com mais ninguém. Só nós mesmos. Nem outras mulheres, nem outros homens. Só a mulher ou o homem que nós somos, que cada um de nós é. Cada um, por inteiro, embora partido – só está aqui quem está partido – à procura de si mesmo. Não à procura de alguém para uma foda, mas à procura de alguém – que somos nós – para uma conchinha. Seria tudo, e o tudo, pelo pouco que nos temos dado, poderia ser tão pouco como um tanto de um olá, de um sorriso ou de um olhar. Não precisamos de muito mais quando o que nos damos é tão menos. Haveria uma app, igualzinha à outra, mas invertida, mas obrigatória, com pesquisa imediata. A distância máxima seria a mínima, a localização seria aqui, cá dentro. Em loop, apenas nós. André, 35 anos, a 0km daqui. Fotos em tronco nu, fotos com um gato e fotos a realçar os olhos azuis. Mas todas a preto, sem se verem o tronco, o gato nem os olhos. Só faríamos swipe right se estivéssemos dispostos a ver o escuro. Só haveria match se estivéssemos dispostos a ver o escuro além do escuro. Apesar de tudo o que envolve um primeiro encontro – da ilusão ao medo, do prazer à queda. Um blind date de realidade – que só de olhos fechados nos conseguimos olhar, tocar e ser. Com verdade.