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Novembro, 2020
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e vamos nós, sozinhos

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Não sei quanto a vocês, mas o meu sítio preferido onde chorar é no banho. Se for por uma merdinha de nada, as lágrimas são varridas pela água do chuveiro, dando-lhes a importância que elas têm, naquela torrente imensa. Vão as gotas, vão os pensamentos e ficamos nós, limpinhos. Se for por um daqueles vazios que nos estremecem, as lágrimas transformam a água do chuveiro em lágrimas também, dando-lhes ainda mais importância do que aquela que elas têm, naquela torrente que parecia ínfima. Vão as gotas, vão os pensamentos e vamos nós, sozinhos.

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ele ri-se, ele não se chora

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Ele ri-se, ele não se chora.
O que é estranho
porque, de onde venho,
chorar é para dentro, e demora.
Deveria ser ele chora-se, que é ser-se,
e ele ri, que rir é oferecer-se,
é para fora.

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a alegria nunca me foi

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Não sei se o que faço é arte. Nem sei, na verdade, o que faço. Mas, não sabendo, sendo arte, é o que me salva. É o que me tem mantido à tona sempre que os fantasmas do vazio me puxam para o poço escuro da depressão. Não é contacto com a alegria que me deixa menos triste, é o contacto corpo a corpo com a arte. Não é uma piada, não é um ninho de labradores bebés, não é uma refeição em família, não é um orgasmo. É a arte. É uma canção, mesmo que triste, é um poema, mesmo que aflito, é uma dança, mesmo que pobre, é um corpo, mesmo que fraco. A alegria nunca me foi bóia de salvação para nada, muito menos para quando eu mais preciso dela. É por isso que eu não páro de escrever. Para que, mesmo de pés no poço, roído até ao osso, eu continue a viver.

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queda para a saudade

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Tenho uma queda para a saudade. Não sei se é do fado que me há na História, se do sangue, se dos astros, se da memória. Sei que tenho uma queda para a saudade. Muitas vezes, sem querer, com vontade. Como se ela fosse a razão para uma espécie de criação que só existe se eu estiver triste. E a tristeza, causa ou origem da saudade, é-me uma forma de beleza que, usando para escrever, me dá liberdade. Que, usando para lá ir, vindo, me deixa caindo, sem cair.

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um descanso cansado

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A ansiedade pesa-me nos olhos. Como se tivesse chorado durante muito, muito tempo e, ao fim do muito, muito tempo, ao fim do dia, ao fim do choro, todas as lágrimas se acumulassem nas pálpebras e se deitassem. É um descanso cansado, por ter terminado, mas por ainda doer, por ter ainda cavalos a correr, e por eu ter corrido também, por estar sem. Vontade, energia, prazer. Ansiedade, mais um dia a chover.

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na ilusão da posse

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Vivemos na ilusão da posse. Nunca nada é, foi ou será verdadeiramente nosso. Nem a boca, nem o abraço, nem a patinha. Mas vivemos na ilusão de que é, foi e será. A boca, o abraço, a patinha. E, quando perdemos o que julgamos ter, vem a desilusão. Vã desilusão. E gritamos, entristecemos, choramos. Não por algo que tenhamos perdido, mas por tomarmos noção de que esse algo nunca foi nosso. Nem a boca, nem o abraço, nem a patinha. Não é uma desilusão com ela, com ele ou com ele. É uma desilusão connosco, que caímos no engano da conjugação-ilusão do verbo ter. Queda sozinha. Sem boca, sem abraço, sem patinha.

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professora-lágrima

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Sem ela, eu não seria eu. Não seria, pelo menos, este que escreve a vida desta maneira e que só encontra maneira de viver escrevendo. A professora Madalena é a minha professora primária. É, nunca vai deixar de ser. Foi ela quem me ensinou a escrever e a ler e a contar e a respeitar. Mas ensinou-me muito mais do que aquilo que eu aprendia naquela sala de rés-do-chão da Escola Primária dos Marrazes. A vida. Acho que foi o que a professora Madalena mais me ensinou. A vida. No seu estado mais puro de respeito, carinho, disciplina, amizade e sonho. Há quase 30 anos, era eu um ruço tímido caixa de óculos sentadinho quietinho na sua cadeira a ver a letra bonita da professora escrever Lição número qualquer coisa, Dia tal, do mês tal do ano antigo de 1990 e tal, Sumário. E eu sentadinho quietinho, a aprender. Este ano, pedi-lhe que trocasse o quadro negro pelo meu livro. Em vez de Lição, Dia, mês, ano ou Sumário, pedi-lhe, apenas, que escrevesse lágrima. E a minha professora, de mão tremida, escreveu. E eu, de coração tremido, li. Hoje, essa palavra, com essa caligrafia, está escrita no quadro negro da capa do meu livro. Quem me ensinou a escrever (e a ler e a contar e a respeitar) merece o melhor lugar no lugar das minhas palavras.

Lágrima, a triste odisseia de um homem feliz. À venda em Dezembro. Já disponível em pré-reserva.

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na espuma dos dias banais

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Não é o sermos proibidos de estar com outros, é o sermos obrigados a estar connosco. Fechados em casa, abertos em nós mesmos, completamente escancarados, com ventanias de pensamentos a entrar-nos pelas portas e janelas da nossa casa. Vulneráveis a nós mesmos, ao que nos inquieta que nos navega no subterrâneo rio que vamos conseguindo ignorar na espuma dos dias banais. Não é o confinamento dos outros, é o encontro connosco. É o sermos obrigados a ser o que realmente somos. E a ver, a tocar, a falar, a ouvir, a cuidar de nós. Os outros vão-nos tendo, e sendo, sempre que nos ignoramos. Nós vamos vivendo, e crescendo e morrendo e renascendo, sempre que temos a coragem de estarmos, e sermos, com quem somos. Custa, faz doer. Mas custa mais o vazio, o deixar correr o rio, o não ser.

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a elis regina não tem razão

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Desculpa, Elis Regina, mas eu acho que já não somos os mesmos nem vivemos como os nossos pais. Essa é, até, uma das nossas grandes angústias. Falo da minha geração, mas falo por mim. Eles, os nossos pais, apresentaram-nos uma vida completamente diferente daquela que nós, que eu, levamos. Eu não casei aos 20 anos, não tive filhos aos 22, nem arranjei emprego para a vida aos 25. Não tenho uma casa em meu nome, não tenho conta na mercearia, nem álbuns de fotografias de vida em conjunto. A minha vida, apesar da felicidade de uma estrutura familiar feliz, está fragmentada em memórias dispersas e descoladas. Desde que saí de casa, tive amores, paixões, desilusões, recibos verdes e casas arrendadas. Pouco mais. Não tive a capacidade de construir, nem de ajudar a construir, um único castelo onde pudesse fortalecer raízes de uma vida em linha recta, sem zigue-zagues de percurso. Os castelos que tenho são pequeninos, e muitos são de areia com bandeira a meia-haste. São vários os lutos por que tenho passado por não conseguir ser o que sonhei e por não conseguir ser o que são os meus pais. Sei bem que são outros tempos e que são outras pessoas. Eu, curiosamente, sou eu. Não sou os meus pais. Nem eles querem que eu seja eles. Mas também não é isso que me impede de ouvir constantemente um grito de angústia a ecoar-me nesta imensa sala da existência. Fracasso, desapontamento, e o cansaço de não saber se algum dia saberei ser como sonhei. E o tempo passa, cabrão do tempo, e os cabelos vão caindo, as vontades morrendo e a barba branqueando, e eu cá vou andando, com a memória carregadinha de estilhaços, alguns deles maravilhosos, mas estilhaços, pedaços que cabem numa caixa de sapatilhas e não cabem no coração. Bater de frente com a realidade da minha existência dói, inquieta e angustia. Por não estar onde eles estão, por não saber onde estou e por não saber para onde vou. Mas é precisamente a dor, a inquietação e a angústia que me estimulam na vivência do desconhecido. Por não estar onde eles estão, por não saber onde estou e por não saber para onde vou. O sonho é um lugar bonito onde estar. Mas, por vezes, não. E é aqui, Elis Regina, que te dou razão: viver é melhor que sonhar.

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o vazio da vida

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O vazio da vida é mais vazio, menos vida, ao domingo. Mais vazio, menos vida ainda, hoje. As ruas desertas, as nuvens estendidas, as pessoas fechadas, os astros alinham-se para um recolher interno obrigatório onde apenas estamos nós com o nosso silêncio, que é o nosso ruído, e os nossos fantasmas. E é quando nos recolhemos em nós próprios que damos de caras com o pesado vazio que carregamos e que a vida carrega. O aconchego do sofá não se sente além do corpo, a alma – ou a mente ou o que for que nos faz sentir – deveria recostar-se e aproveitar a incontrolável e inevitável inércia da vida, mas só se agita, só se inquieta, só se torna mais só e, por mais só, mais nossa, mais grita e mais nós a ouvimos. E ouvi-la, que é ouvir quem a tem, que somos nós, é abrir as portas ao vazio. Julgamos ser tudo, somos tudo, e, por julgarmos e por sermos tudo, não sabemos lidar com o nada que também nos existe. O confronto dói porque é raro, porque, sempre que ele nos espreita, nós ignoramo-lo e vamos fazer a nossa vidinha das nove às cinco, tomamos o café que não saboreamos, assistimos ao jogo que não nos interessa, falamos com as pessoas que não nos questionam, comemos a sopa que não nos sabe a nada, vemos o episódio que não nos estimula e vamos para a cama que nos adormece. A espuma dos dias afasta-nos do vazio, mas também nos aproxima dele. Porque, quanto mais o evitarmos, maior ele se torna quando, inevitalmente, ele nos aparecer. Como hoje. Aconchega-se, desaconchega-nos e fica, não foge, até nos adormecer.

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