vem o medo, está bem
Vem o medo, está bem, que venha, não há segredo nem emoção estranha e treme o corpo e o coração corre, é normal, está tudo bem, ninguém morre, o medo desperta e alerta, diz que vem perigo, mas diz comigo, não vem, acredita, deixa o medo existir, é a dúvida a fazer fita, não lhe digas para não vir, deixa-o estar para ele ver que não há nada a temer, está tudo bem, ele vem e vê que é só a vida a acontecer.
o livro dos filósofos mortos
“Filosofar é aprender a morrer”. Um livro sobre a maneira como alguns filósofos viram e viveram a morte. Tem Cícero, Camus, Nietzsche, Schopenhauer, Sartre, Simone de Beauvoir, Sócrates, Kant, Pascal, Marx, Kierkegaard e outros mortos. Depois de ter lido um livro sobre um gajo que não se considera humano e, por isso, deseja o suicídio, li agora este sobre a morte ela mesma. Estou a ir por uns ricos caminhos, estou.
O Livro dos Filósofos Mortos, de Simon Critchley.
é calando e proibindo
496.655 pessoas votaram no André Ventura. Se continuarmos a achar que este quase meio milhão de pessoas não existe, então é bem provável que, dentro de pouquíssimo tempo, sejamos governados por inexistências. É calando e proibindo que se destroem pessoas, mas não ideias. As ideias nascem no lamaçal da proibição e na clandestinidade da suposta inexistência. É lá que elas nascem, crescem e ganham massa muscular. Mas é cá, deste lado, que elas morrem – quando, à luz do dia e à vista de toda a gente, são confrontadas com outras ideias melhores. 496.655 pessoas, quase meio milhão de seres humanos, têm ideias com as quais eu não concordo, mas que merecem ser ouvidas e discutidas. E, só depois, e tendo em conta o seu óbvio vazio, serem facilmente destruídas.
vota ventura!
Vota Ventura, se o teu candidato for Ventura. Ou Tino, se for Tino. Ou Marcelo, Ana, Marisa, Mayan ou João. Ou em branco. Ou nulo. Ou não votes. Qualquer acção é uma acção da realidade. E a realidade não é o que nós achamos que ela é.
A realidade é linda, mas feia também, horrível, nojenta, com borbulhas, queimaduras e pus. A realidade tem gente fascista, comunista, do centro, inclinada para a direita, para a esquerda ou para lado nenhum. Tem gente estúpida, inteligente, ignorante, sonhadora e pragmática. Tem gente pobre, rica, com fome, cancro, casas na praia e vida na merda. Tem gente de cravo na lapela e gente que se está a cagar para a democracia. Toda esta gente é realidade. E é a realidade que é essencial conhecer, e é a realidade que não conhecemos. Nós não sabemos quem somos. Desconhecemos as ruas, as emoções e as ideias. E, desconhecendo, desvalorizamos. Mas as ruas, as emoções e as ideias têm gente dentro e, desvalorizando ruas, emoções e ideias, desvalorizamos gente. Surpresa! Há gente com outras ruas, emoções e ideias que não as nossas – por muito estúpidas que sejam, as da gente ou as nossas. E essa gente faz parte da realidade, e essa gente é realidade. E a realidade não se combate com proibições nem com discursos ocos de lábios pintados. A realidade combate-se, não combatendo, começando com a vontade de a conhecer. Saber que há quem vote neste, naquela, em branco, nulo ou nem sequer vote, mas também perguntar, perceber, conhecer. Mas isso custa. Implica trabalho, dedicação, luta, paciência, tanta coisa que nos falta – e de que temos tanta urgência. Talvez daí a ilusão de não termos tempo. Queremos tudo agora, sem perguntas, só respostas, desde que as respostas sejam as que nós escrevemos no nosso caderno vazio de lixo. Surpresa! Nós também somos lixo.
O resultado de hoje não é a vitória de uns nem a derrota de outros. O resultado de hoje é sempre a derrota de todos e sempre a vitória da realidade – mesmo que ela não seja o que nós achamos que ela é. Bem, ela não é o que nós achamos que ela é. Mas talvez fosse boa ideia tentarmos olhá-la e percebê-la. Só assim percebemos o que somos. Só assim podemos ser o que quisermos.
fala, ó facho
Fala, ó facho! Não oiças os que te pedem para te calares. Fala, ó facho! Grita, berra, vocifera, clama. Mostra-te, deixa que te vejam. Diz, deixa que te oiçam. Além de ser justo, é bem mais fácil identificar um idiota se soubermos onde ele está e o que ele diz. Se o obrigarmos ao silêncio, não só fica difícil de o identificar como também fica difícil de combater o que ele (não) diz. Mandar calar é impedir de ouvir. E, por muita sujidade que possa vir daquela boca, sei que é sujidade e sei que é daquela boca. Prefiro continuar a ouvir do que ser impedido de falar. Portanto, fala, ó facho! Preciso de ir tomar banho.
não-humano
“A minha vida tem sido vergonhosa. Não consigo sequer imaginar como deve ser viver como um ser humano”. São estas as primeiras palavras do primeiro livro que li este ano. Uma maravilha da literatura japonesa – na verdade, não conheço mais, mas esta, que conheço, é um mimo. E é triste, como qualquer maravilha que se preze.
Não-Humano, de Osamu Dazai.
autobiografia
Sempre me foi difícil dizer quem sou. Não por vergonha ou medo. Por ignorância. Não sei, não é segredo. Nem tem importância.