metáfora bonita da minha vida
Hoje fui ao ginásio. Mas não fui, porque estava fechado. Metáfora bonita da minha vida, esta. Ando eu o ano inteiro em luta com a necessidade de sair da zona de conforto para, quando a consigo vencer – ou quando lhe consigo ceder, dependendo do ponto de vista -, olha, afinal não era preciso, desculpa lá o incómodo. Ridículo, isto. Tanto isto de eu não ter confirmado os horários do ginásio, como isto da necessidade de sair da zona de conforto. Que necessidade? Qual é a ideia? Ir para uma zona de desconforto? Porquê? Eu quero estar bem, quero estar confortável, portanto, quero estar – rufem os tambores para esta bomba nuclear ao nível da lógica – na minha zona de conforto. Ai, mas eu gosto é de estar na minha zona de desconforto, diz um iluminado do poder do agora e das terapêuticas do caralhinho. Não, não gostas, digo eu. Primeiro, porque é uma contradição linguística que eu não vou estar a dissecar por ser demasiado óbvia. Ok, vou dissecar, adoro dissecar o óbvio: se gostas de desconforto, é porque te sentes confortável com isso. Portanto, essa tal tua zona de desconforto passou a ser zona de conforto a partir do momento em que gostas dela. Segundo, porque é ridículo uma pessoa sentir-se bem sentindo-se mal. Pronto, é isto. Vou para casa. Mentira, já estou em casa. A foto é em minha casa. Ia agora fazer uma dissertação sobre o conforto com uma mochila ao ombro, todo desconfortável? Era o que faltava. Isso e vontade.
cultura nesta terra linda
O Jornal de Leiria insiste em dar-me voz. (Não entendo.) Desta vez, usei-a para escolher, sabiamente, a Personalidade e o Acontecimento de 2021 na área da Cultura nesta terra linda que é Portugal.
Acontecimento do Ano:
O lançamento da Lotaria do Património Cultural foi, sem dúvida, o acontecimento do ano. É certo que a Cultura não está bem, mas, sem esta raspadinha, é certo que estaria muito pior. É por isso que condeno, com bastante veemência (que é assim que eu gosto de condenar), quem diz que esta raspadinha é uma forma de deixar a Cultura à sua sorte. Nada mais errado. Está escrito na sua definição: “jogos de azar”. Nem a sorte nem a Cultura têm nada que ver com isto.
Personalidade do Ano:
Uma que são duas. Uma dupla personalidade, portanto. Uma que adora a Cultura, mas que prefere a Primark. Uma que critica o encerramento das salas de teatro, mas que nunca se sentou numa plateia. Uma que chora a morte de um escritor, mas que nunca leu um livro seu. Uma que acha que um músico merece receber mais, mas que prefere pagar-lhe em likes. Uma que vai para a rua gritar, mas só se a rua for o Instagram. Uma que fecha museus, mas que abre igrejas. Uma que se lamenta ao microfone, mas que só dá o microfone à bola. Uma dupla personalidade, portanto. E com tão pouco lá dentro.
uma canção que não existe
O meu pai está sempre a cantar uma canção que não existe. Faz aquele murmúrio sem palavras e sem direcção ao chegar de algum lugar ou, não chegando, estando nalgum que o faça cantar, não cantando. O meu pai canta essa canção que, mesmo não sabendo qual é, não poderia ser outra. Se ele soubesse, se eu soubesse, deixaria de ser a canção que o meu pai está sempre a cantar para ser uma canção qualquer, uma canção vulgar. Na verdade, a canção existe e é a que ele quer, mas só naquele lugar desconhecido que faz do meu pai, sempre depois de eu o ter ouvido, um homem que é tudo menos triste. E não é só por eu o ouvir. É por ele sentir que é mesmo feliz. E canta essa felicidade. Mesmo não sabendo de onde vem nem a sua definição. O meu pai é esse murmúrio que ele tem, e eu sinto-me sendo a sua canção.
vem cá
vem cá dar-me um bocadinho
daquilo que tens guardado
que eu não consigo sozinho
ter o que está desse lado
tens que ser tu a trazer
não custa nada, anda lá
que eu tenho esta mão a doer
e a outra também está
vem agora, mas devagar
para eu ver com atenção
o teu jeitinho ao chegar
perto do meu coração
mas não te chegues tão perto
que ele não lida tão bem
com o batimento incerto
que o teu coração tem
diz que perde a cadência
que fica tonto e perdido
ao sentir a iminência
de voltar a ser partido
por isso é melhor não vires
deixa guardado o que é teu
que o coração que partires
está sem guarda e é meu
não sendo imortal
Sendo o universo infinito, sendo ele tudo isto, quando eu morrer, quando eu deixar de ser, não morrerei nem deixarei, direi que existo. Porque, nesse momento, tudo o que eu sou irá para algum lugar. Mesmo não dizendo nem sabendo se vou, vou lá estar. Não existe lugar nenhum – assumindo que tudo é permanente. Portanto, serei um que será tanta gente. Serei assim, igual – este conflito. Mesmo não sendo imortal, sou infinito.