somos todos chega
Ao longo do ano, somos todos CHEGA: todos criticamos, provocamos, insultamos quem nos governa. Cuspimos frases feitas, sem conteúdo, sem noção e sem saber. Assim que uma pessoa igual a nós faz exactamente o mesmo que nós, mas na televisão, à frente de um partido, com gente aos ombros, nós deixamos de ser CHEGA. O nosso ódio ao CHEGA não vem do que ele diz ou defende. O nosso ódio ao CHEGA vem da nossa parecença com a gente que faz dele o que ele é. Não somos contra ele, somos contra nós. E bem. Mas seria saudável, e inteligente, se tivéssemos coragem para o admitir.
não votar também é votar
Não votar também é votar. Quem não se interessa, quem não quer saber, quem não acredita, quem é contra, toda esta gente que não vota por não querer é gente que diz tanto como a gente que vota. Eu voto. Acho que toda a gente deveria votar. Mas também acho que, se nem toda a gente o faz, que é tanta, e se devemos caminhar para uma sociedade que seja representativa de toda a gente, devemos aceitar quem não se interessa, quem não quer saber, quem não acredita e quem é contra. Que não votar também é votar.
nem os homens são iguais
A doença da esquerda é acreditar na fábula da igualdade. A doença da direita é acreditar na fábula da superioridade. A esquerda diz-se superior por defender a igualdade dos homens. A direita diz-se igual para defender a superioridade além dos homens. Ambas defendem a utopia. Nem os homens são iguais, nem há nada acima deles. A doença da esquerda é a mesma doença da direita: uma absoluta aversão à humanidade.
a aceitação do caos
Tenho de aceitar este meu caos. Gostava, ou gostaria?, está bem das duas maneiras, mas uma é mais certa do que a outra, será que é certo afirmar que uma maneira é mais certa do que a outra?, não necessariamente uma maneira, mas alguma coisa ser mais certa do que outra coisa, assumindo que ambas são certas?, se ambas são certas, o que interessa além daí?, é como usar pontos de interrogação a meio de frases, ou letras minúsculas ou vírgulas depois de pontos de interrogação, será?, não sei, ou não usar pontos finais, cuspir na, pontuação; certa! e andar por: aí escrevendo o que bem me apetecesse da maneira que bem mapetcêsse, caraças, usei o gerúndio, adoro usar o gerúndio, pouca gente usa, dá a ideia de erro, mas só dá essa ideia a quem, não sabendo escrever ou não sabendo saber, que ainda é mais grave, é um erro, e agora estou a confundir quem me lê por não estar a acompanhar esta barafunda de, ora aqui está outra palavra bonita, barafunda, gosto, não sei bem por que razão, até porque, escrita, não é lá muito bonita, e dita também não é linda, mas é o que é, gosto da palavra, não tenho de arranjar uma justificação lógica para gostar dela, ou tenho?, como se o amor, oh não, lá vem ele falar de amor, não, não vou, porque agora emperrei, aqui está outra palavra gira, ou melhor, outra conjugação de uma palavra gira, emperrar, numa interjeição, é oh não ou ó não?, ou tem vírgula lá no meio?, eu acho que tem, mas não a usei, também não a vou usar agora, que já foi numa linha passada, perceberam a graça?, uau, muito giro, avançando, não saindo do lugar, a verdade é que gostaria, vamos manter gostaria, sim, de ser organizado, de ter a minha vida arrumadinha, as minhas meias, os meus apetites, as minhas palavras, os meus ódios, tudo ajeitadinho num degradê de cores, da mais escura para a mais clara, como se fosse uma mensagem subliminar para os fios condutores, possivelmente eléctricos, da minha vida, olhem lá, oh seus mandriões, ou ó seus mandriões, clareiem-me a vida, se fazem favor, ora aqui está outra conjugação bonita, estou cansado comigo. Tenho de aceitar, eu sei que tenho, eu juro que tento, mas não consigo.
representação do engano
Sempre nos queixámos da falta de sinceridade e da constante representação do engano levada a palco pelos nossos políticos. Quando nos aparece um que diz tudo sem joguinhos de palavras – concorde-se ou não com o conteúdo, não é isso que estou aqui a discutir -, nós ficamos muito ofendidinhos porque ele é demasiado directo, porque ele é demasiado aberto, porque ele elogia ideias dos adversários, porque ele admite erros, porque ele sorri, porque ele explica e porque ele não tem postura de político. Condenamos o fingimento e o engano, mas não sabemos, nem queremos, viver sem eles. É isto, não é?
doença de domingo à noite
Gosto de assistir ao processo de desenvolvimento de doença mental dos canais generalistas ao domingo à noite. Na RTP1, há uma banalidade do génio. Todos são incríveis, e ai como é difícil ter de escolher um para não ir à final, porque até me arrepiei com o teu sublime, que não é interpretar nem saber dizer as palavras, é só gritar e ter as unhas pintadas. Na SIC, há a imposição do medo por um chef prepotente que grita e manda e insulta e destrói, e só assim sabe ser porque só assim é que se vai a algum lado, o mundo é fodido e por isso temos de ser fodidos com o mundo, não há cá boa educação para ninguém, só demonstração de força, que é só a completa ilustração da ausência de força. E de amor. Na TVI, o elogio da mediocridade, os holofotes no reles e na acefalia colectiva, votem em mim que eu quero ser famoso, e a fama dá-me tudo, e eu sou tudo porque apareço, se desapareço, não sou, e obrigado aos portugueses lá em casa que votaram em mim, sem eles não sou nada. E não é mesmo. Tenho de ir dormir, que isto faz-me mal aos olhos.
adeus tristeza, e eu chorei
Adeus tristeza, e eu chorei. Só parei de chorar muito tempo depois de ele ter parado de cantar. O Fernando Tordo veio a Leiria. Veio, também, como sempre vem quando o Fernando vem, o Ary. E eu ali, a lembrar histórias de canções que não vivi, mas que sempre fizeram parte do que fui sendo. Mesmo antes de ser. Eu ainda não existia, e sinto que já ouvia a poesia na melodia das canções. Lá, na Rua da Saudade, número 23, rés-do-chão direito. Esta poesia nesta melodia à desfilada no meu peito. Estas canções. Culpo o meu pai e a minha mãe, que me davam a ouvir o mais bonito que a beleza tem. Adeus tristeza, e eu sem saber se o que digo é ternura, se é riso, se é pranto. Pesada e leve, secreta e pura, e eu chorei tanto.
quem se diz de esquerda
Quem se diz de esquerda é feito da mesma matéria de quem se diz de direita. Não apenas da mesma matéria corpórea, mas da mesma matéria de pensamento. Quem se diz de esquerda, como quem se diz de direita, só se diz do respectivo lado apenas por dizer o que já está dito por outros e não por eles. Quem se diz de esquerda, como quem se diz de direita, defende uma ideologia que não dá liberdade ao pensamento, uma cartilha que não permite ter outras ideias e comportamentos que não os inscritos nas bíblias de um e de outro lado. Quem se diz de esquerda, como quem se diz de direita, deveria pensar antes de dizer o que quer que fosse. Há tudo em todo o lado, e as boas e as más ideias não são de um lado ou de outro. As boas e as más ideias são, sempre, de um lado e de outro. Portanto, quem se diz de esquerda, como quem se diz de direita, talvez se pudesse definir melhor se não se definisse de forma tão redutora. Sem ideologias, mas com ideias – venham elas de que lado vierem.
ó minha coisa tão boa
ó minha coisa tão boa
sei lá eu por que fugiste
deixando esta pessoa
assim tão triste
já procurei nos lugares
que partilhámos felizes
e além de não estares
só encontrei raízes
foi por tua vontade?
foi alguém que te levou?
é que eu já sinto saudade
nem sei bem onde estou
se foi por culpa minha
manda uma carta ou assim
que esta vida sozinha
não é para mim
prefiro não estar aqui
à espera sei lá de quem
dizem todos que é de ti
talvez seja de ninguém
mas ao que tudo parece
já foste e nem um adeus
e agora quem te esquece
se todos os tempos são teus?
só me resta esperar
mesmo sendo uma ilusão
de que esse preciso lugar
tenha acordo de extradição
tenho achado graça a isto
Foi o dia mais frio do ano, este de 1985. Pelo menos para os meus pais. Para mim, até àquele dia, este, de 1985, também foi o mais frio do ano e de sempre. E também o mais quente. E o mais ameno, também. Foi o meu primeiro dia. Passados alguns, os meus tios, o meu pai e a minha avó foram buscar-me nesta alcofa vermelha com uma botija de água quente. Passaram 13.514 dias (sim, pedi ajuda ao meu irmão para fazer as contas), e aqui estou eu a escrever um texto no Instagram semelhante a todos os outros que escrevo neste dia para, por um lado, escrever – uma coisa que eu até adoro – e receber alguns miminhos de pessoas que, muitas delas, só estão a fazer um scroll infinito no Instagram e deram de caras com esta alcofa vermelha de bebé e acharam graça. Eu tenho achado graça a isto desde aquele dia frio de 1985. Não sei bem porquê. Mas desconfio de que o cogumelo bordado na alcofa seja uma pista.
no próximo primeiro dia
O primeiro dia do ano é sempre um jogo em modo Hard. Qualquer coisinha tem de ser especial porque é a primeira coisinha do ano e vai condicionar todas as outras coisinhas que se seguem ao longo da vida – que é até ao próximo primeiro dia do ano. Vou sair pelo lado direito da cama, assim viro-me para a janela, abro o estore (não, não é estoro) e recebo logo a luz da manhã – vou fazer sempre isto porque o sol faz bem e não sei quê. Roupa interior azul por ser tradiç… Não. Roupa preta, que é com ela que eu ando o ano inteiro e este primeiro dia tem de ser uma declaração do meu eu. Haha Desculpem. Não vou ver já as mensagens. Primeiro, tenho de falar com a minha mãe, com o meu pai e com o meu irmão. Só depois com as outras pessoas. Mas o telemóvel está mesmo aqui ao lado, vou ver, não posso, não consigo não ver, não vou ver, olá, pai, olá, mãe, olá, Pedro. Objectivo cumprido. Chupa, necessidade-de-estar-sempre-em-contacto! Acordei com esta música na cabeça, vou ter de a ouvir, vai ter de ser a primeira. Mas estou à mesa para tomar o pequeno-almoço e o comando da televisão está mesmo aqui ao lado. Preciso de pensar no Ghandi para resistir ao poder imperialista da falsa necessidade (mais uma) de companhia televisiva. Volto ao quarto e oiço a música que queria ouvir. Mais um checkpoint. Gravação automática do jogo. E, agora, o pequeno-almoço? O que comer hoje vou comer todos os dias do ano, tem de ser, tenho de criar uma regra, desta é que é. Feito. Vou ao banho. Água fria, claro. Diz que faz bem e eu quero coisas que me façam bem, é hoje que eu vou iniciar o Reich de Mil Anos do Banho de Água Fria. Claro que é. Game over. Try again. No próximo primeiro dia do ano.