fartinho de chorar
Ainda éramos miúdos, ainda jogávamos, cada um na sua modalidade, quando o Simão me ofereceu o seu stick de hóquei – já não o usava, e achou que ficaria melhor nas mãos de quem nunca o iria usar. Eu nunca soube jogar. Nunca soube, sequer, andar de patins. Mas aquele stick que ele me deu, e eu nunca lhe disse isto, foi uma das coisas mais bonitas que recebi. Guardo-a como uma relíquia. Sei do Simão desde sempre. Das brincadeiras, das escolas, das férias, das catequeses, das festas, das ruas, dos Marrazes – da paixão pela terra, da paixão pelo clube. Conheço muita gente apaixonada, não conheço ninguém com a paixão do Simão. Uma paixão que vem do amor imenso, que lhe vem da história, pela sua gente e pela sua camisola – mesmo quando foram outras que vestiu. O Simão é o Simão porque, à paixão do amor, sabe ter o trabalho, a humildade, o profissionalismo, a exigência, a seriedade e tantas outras qualidades, e defeitos, claro, como qualquer ser humano que se preze, que fazem dele quem ele é. A nossa equipa de hóquei garantiu a subida à Segunda Divisão. Ele é o treinador. Ele, um puto da minha idade a ser treinador dos seniores. Estamos velhos. No domingo, eu vi o Simão como poucas vezes vi. Feliz da vida, fartinho de chorar. Ao seu lado, dentro dele, toda a gente – atletas, amigos, dirigentes, adeptos, família – que lutaram por esta alegria com tudo o que tinham, acima de tudo, suor. Pela nossa terra, pelo nosso clube. Com o nosso Simão.
fausto, ninguém dança
“Fausto” é uma peça de teatro que é uma peça de dança. Ninguém dança nesta peça. Mas tudo o que acontece não pode ter outra definição. Dança quem representa, quem entra e sai, dança quem nem sequer tenta, quem vai andando por ali à procura do seu papel na plateia que não há, porque apenas há palco. E todos dançamos como se fôssemos todas as personagens que ali estão. Ninguém dança, é tudo invenção. Mas acreditamos que sim, que dançamos – toda a gente. Culpa e talento de quem nos faz dançar. O Diabo não existe. O Hugo só existe com ele. Não poderia ser outro a vestir-lhe a carne – a que anda, a que corre, a que sorri, a que ri, a que grita, a que fala, a que canta, a que sussurra, a que range, a que beija, a que morde, a que desaparece. “Fausto” tem arte em muitos lugares e em muitas pessoas. O Hugo, sendo este Diabo que não existe, é arte de todos os lugares e de todas as pessoas. Pelo meio de todos eles e de todas elas, lá vai dançando e lá vai fazendo dançar como se esta dança da representação fosse, para ele, uma infantil forma de brincar. O Hugo agarra toda a gente pela boca e não deixa ninguém respirar ao longo de toda a peça. Ele é personagem de dentro e é personagem de fora, de quem representa e de quem não. É uma espécie de encenador em pontas que vai dizendo o que devemos fazer, pensar, temer e venerar. O Diabo não existe e poderia ser outra pessoa, como é em todas as outras representações de “Fausto”. Mas, quando o Hugo dança, ninguém sabe dançar.
| “Fausto”, no Teatro da Comuna. Texto de Goethe, com adaptação e direcção de João Mota. Interpretação de Hugo Franco, Carlos Paulo, Rogério Vale, Luís Garcia, Miguel Sermão, Gonçalo Botelho, Francisco Pereira de Almeida, Ana Lúcia Palminha e Patrícia Fonseca. Cenografia de Renato Godinho |
Fotografia: Bruno Simão
uma canção do medo
A escuridão magoa. Mais do que uma bolada na cara ou um pontapé nos tomates. A escuridão, que nem sequer nos toca, tem o incrível talento para nos deixar estendidos numa valeta. Quando estamos com ela, quando ela nos tem, não tem mais nada, não temos mais ninguém. Estamos inteiramente dentro do escuro, que é incerto, indefinido, indeterminado, desconhecido e que, pela certeza de toda esta incerteza, nos faz ter medo. E o medo, por muito que nos digam que faz parte de quem é inteligente, é bem capaz de nos partir, destruir, como faz com tanta gente. A escuridão traz o medo num carrinho de bebé. Tão pequenino que parece, tão grande que ele é. A escuridão tem outro talento além da força. A escuridão é sempre uma coisa e o seu oposto. A escuridão é sempre o monstro e a formiga, apenas sendo o monstro ou a formiga quando deixa de ser escuridão. Mas, sendo escuridão, é sempre maior do que é na realidade, porque é sempre monstro e formiga, nunca só um.
Nós estamos na escuridão. E o medo já não vem de carrinho, vem pela mão. Tudo o que lá está – que é tudo o que nos tem – é muito menos do que aquilo que imaginamos. É a imaginação que nos trama, o idealizar que há ali qualquer coisa que é chama, que nos chama. E nós vamos, acreditamos no que imaginamos, e a imaginação é real como um corpo ou um sonho. E está lá o monstro, a formiga, as famílias dos dois, os passados e futuros dos dois, os sonhos dos dois, as conversas dos dois, as fodas dos dois, e depois? Depois não há razão, pelo menos enquanto houver escuridão. Mas há pele, há guerra, há mel, há terra, há chão, há sorte, há não, há morte. À escuridão, nada lhe falta, por pouco ou nada que ela tenha. Quietinha no seu canto, completamente alastrada em nós, a escuridão não faz barulho, grita como se toda ela fosse voz. Não mexe uma palha, deixa-se estar à espera da canalha que venha brincar. E claro que a canalha, que somos nós, vem sempre. A gritar.
Desejamos a escuridão na exacta medida em que a negamos. Somos todos gente feliz nos cafés, nas ruas e nas redes sociais. A escuridão não nos existe. Jamais! Mas assim que pagamos a bica, cruzamos olhares ou bloqueamos o telemóvel, lá vem ela, essa galdéria escondida, trincar-nos as ilusões. Nós, que andamos por aí a fingir nas entrelinhas da vida, esquecemo-nos de ouvir a nossa batida. Vivemos vidas que não são as nossas, vestimos roupas que não temos, usamos máscaras que nos tapam da cabeça aos pés. Eu não sei como sou. E tu, sabes como és? Verdadeiramente, sem merdas, sem adjectivos com caracteres contados para a bio do Instagram ou do Facebook. Realmente, sem maquilhagem, sem photoshop, sem mamas, sem abdominais. Eu não sei para onde vou. E tu, sabes para onde vais?
Há qualquer coisa de atracção na escuridão. Eu sei, cedo-lhe tantas vezes. E tardo-me em sair de lá, culpa minha, claro, que a escuridão não existe sozinha, só com gente que a veja. A escuridão parece que beija. Com dentes. Aleija. Eu acho que sinto. E tu, sentes? A escuridão é uma espécie de materialização do futuro. Sabemos o que é, mas não sabemos o que tem. Olhamos, pensamos, imaginamos, mas não vamos além. Não conseguimos, não sabemos, e seguimos e logo vemos. A escuridão tem tudo o que julgamos que ela tem. É por isso que nos intimida, que nos faz sentir ainda mais sós. A escuridão é a nossa vida. A escuridão somos nós.
, texto na Grotta #5 (edição Letras Lavadas).
não chorei, claro que não
Não chorei, claro que não. Eu sou lá gajo de choradeiras. Este puto, que este domingo deixou a bola, é o puto que, há mais de trinta anos, me deixou na pré-primária para ir para a escola dos maiores. Naquele dia, eu chorei. Neste, não chorei, claro que não. Nem disfarcei nem nada. Nem me lembrei das futeboladas de rua, com pedras a fazer de baliza. Nem dos passes teleguiados deste menino para os golos deste puto. Há provas. O meu pai filmou alguns jogos ao lado do pai do Miguel. E as mães ao lado uma da outra. Só partilhávamos um ano por escalão. Ele descia a equipa, eu subia. Miguel, sabes que é verdade. Mas também é verdade que ele dava uma magia diferente àquela magia que é o futebol. Mesmo em campos de terra, com linhas tortas, sem relva. À homem. À garoto. Não conheço ninguém que não goste do Miguel. Também não me lembrei da escola. Nem dos copos. Não vale a pena falar disso agora. Felizmente, não há provas. Só tive um clube, o Sport Clube Leiria e Marrazes. O Miguel teve outros, mas só teve um. Este clube deu-nos família. Eu já tinha, e ainda tenho, o Miguel.