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Dezembro, 2023
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todas as coisas que há

Comentários (0) bloco de notas

Ele está sempre feliz – pelo menos, aparenta. E aparentar já é meio caminho andado para estar. (De vez em quando, lá temos de nos obrigar.) Porque ele tenta. Parece que inventa qualquer coisa feliz que lhe diz que a vida não se vive de outra maneira que não desta, na brincadeira. Brinca com as palavras e com as situações, brinca com o que não acontece e com as canções. Brinca com as coisas vulgares e dá-lhes uma importância maior, dá-lhes outros lugares, dá-lhes o mesmo amor que dá à vida em si. Porque, para ele, é isso mesmo a vida – todas as coisas que há. Sempre sem despedida porque a vida sempre está. E é com este amor pela vida sem excepção, ou por esta aparência neste amor, que eu vejo o meu pai como vejo um coração, seja ele o que ele for.

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o bastinhos

Comentários (0) bloco de notas

O meu tio Bastos sempre esteve lá. Mal se dava por ele, mas ele estava lá, connosco. A ajudar nos grelhados, a conversar sobre a escola, a mandar umas larachas sobre o que fosse, ele estava lá. Calmo, atento, simpático, quase envergonhado, quase gozão. Estava sempre tudo bem. Sempre com os olhos felizes e com aquela maneira delicada e escondida lá dele. O meu tio Bastos ofereceu-me esta máquina. Velha, partida, ferrugenta. Mas vinha embrulhada como se fosse uma Bola de Ouro. Cartões e mais cartões, dezenas de cordas, metros de fita-cola e maços de papel de jornal. Nada disto era para não a estragar. Era, sempre foi, para não nos estragar. O meu tio Bastos cuidava. O Bastinhos.

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todos os nomes daqueles dois

Comentários (0) cada um é muita gente, contos

Um e outro ao lado de um e do outro. Sempre os dois, lado a lado – como na canção, meu amor, mas não tão longe. Sempre perto, um e outro, naquela rua antiga desta cidade, aquela direita que não é, como todas as outras que, sendo assim, não são. Num extremo, o terreiro. No outro, a sé. No meio, quase a meio, mais ou menos a meio, fazendo uma esquina que se inclina para a praça, eles os dois, num lugar aonde se chega pelo cheiro, ou melhor, pelo aroma – talvez dê um ar mais verdadeiro daquilo que aquele cheiro é. Quem chega, entra e vê. Um e outro ao lado de um e do outro, ambos em pé. Bom dia, ou boa tarde, como está, prazer em vê-lo. E parece um regresso a um passado antigo (como todos os passados dignos de serem recordados – como se houvesse falta de dignidade na recordação de outros que acabaram de acontecer), daqueles dos reis e dos cavalos, dos servos e dos rendilhados nas saudações. Serão irmãos, são irmãos, se não forem irmãos, são na mesma, tais são as parecenças em tudo aquilo que mostram: corpo, que tem mãos, pernas, olhos, cabeça, e comportamento, que tem cuidado, reverência, velhice e quase continência em quase submissão. Um e outro ao lado de um e do outro. Sempre os dois. Ali, atrás do balcão. Não os vejo noutro lugar. Também não os procuro – não tenho de os procurar. Mas nunca os vi noutro lugar. Se calhar, eles também não. Eles existem ali, vivem ali, são ali. E aquele lugar, tendo sido de tanta gente, é agora, mais do que deles, eles. Aquele lugar, com tudo o que aquele lugar tem, é um e o outro. Nem sei como se chamam – nem sei se interessa, na verdade. Talvez tenha interesse, isso sim, não saber como se chamam – não lhes saber os nomes é saber-lhes todos os nomes, não lhes saber as vidas é saber-lhes todas as vidas. Eles são eles os dois. Sem tirar nem pôr. Tudo um imenso amor por aquilo que estão a fazer – que é, mais do que acto, potência do que estão a ser. Talvez sejam apenas um. Olho para eles e são dois mas, se um não está, o outro, estando ali, é como se não estivesse. Eles são ali. Pelo menos, é o que me parece.

Jornal de Leiria

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