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um passado

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Tem cara de Adelino. É dos olhos, da boca, do nariz, mas, essencialmente, do nada que ele diz enquanto está ali encostado àquela porta. Tem cara de Adelino. Na verdade, não sei bem por que razão. Mas é como se ele rejeitasse todos os nomes, e aquele não. Adelino, um abraço de velho com menino. Um só, eles os dois, ali bem vestido, olhando as pessoas a passar, olhando as pessoas a dançar, mas parecendo olhar o tempo que vê a contar. Em casa, certamente, terá alguém. Uma mulher que o espera vendo televisão ou que não o espera, de todo, sabendo que ele vem, um bocadinho mais tarde, como o Pessoa, p’ra ao pé do seu coração. Ele agora está ali. É de noite, e eu não sei quem é. Olho para ele, e tento descobrir qualquer coisa, ali, de pé. Já é um senhor de alguma idade – como se todos os senhores não fossem de alguma idade, seja ela qual for. É de noite, e ele parece não pertencer. Mas há qualquer coisa de amor, de enternecer. Uma imperial na mão direita e um vazio na mão esquerda, que ora vai ao bolso, que ora fica suspenso no ar. E ele, ali, a olhar. As pessoas dançam, as pessoas falam e bebem. Ele, bem mais velho do que todas elas, como se fosse uma estátua dos que já foram, uma representação dos que já não estão ali, um guardião dos que passam por ele, brincando, rindo, cantando, e ele sereno, como se o seu único propósito fosse ocupar aquele espaço junto à porta, ora do lado de dentro, ora do lado de fora. Quieto, sem ir embora. O Terreiro tem ali a sua gente concentrada, nos Filipes, e ele à entrada. Bem vestido, postura firme, barriga saliente. Ninguém fala com ele, e ele, discretamente, vai ouvindo e vendo o que se passa, fazendo o que eu faço também, inventando histórias das pessoas que aquele lugar tem. De cabelo branco, cara enrugada, olha e vê tanto, olha e vê nada. Mais uma cerveja para entreter o que ele deseja compreender. Tanta gente e ele sem ninguém, certamente em casa o espera alguém. E ele lá há-de ir, assim meio a sorrir, assim meio menino. Não parece fingir. Tem cara de Adelino.

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madrugada

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É madrugada e nada existe. Só um corpo meio morto, meio triste.

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um dia normal

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É um dia normal. Não é. É mais um dia, e o fim aqui ao pé. Mais perto. E o caminho. Sozinho. E um deserto. Mais perto. Ainda falta um bocadinho. É viver enquanto dá. Tudo é farpa e tudo é ninho. E a vida é o que há.

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o velho no muro

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Na esquina, dizendo adeus. Lá está ele, velhote, vivendo enquanto partem os seus. Já não há ninguém da sua idade, da sua geração. Todos partem, ele não. E insiste em ficar, como quem não quer a coisa, como quem nem liga à vida, a observar. Sentado ao sol, num pequeno muro de pedra, vê as vidas dos outros a passar. Ora de carro, ora a pé, muita gente lhe levanta a mão para o cumprimentar. E ele levanta a sua de volta, e volta a vida a passar. O que lhe vai na cabeça, nos olhos que controlam a estrada? Tanta coisa, talvez nada. A sua vida é estar ali, observando o que se passa à sua frente, dando um certo objectivo ao seu dia, dando-lhe que fazer. Se alguém lhe perguntar, ele dirá que está a viver. Tanta gente que ele vê, que passa ali naquele lugar. Tanta vida que ele, ali, deve inventar. Aquela leva os filhos à escola, aquele vai almoçar, aquela vai às compras, aqueles vão trabalhar. Esteja frio ou calor, ele não sai dali durante uns bons infinitos. Sempre que o vejo, ele está lá. Mas não passa lá os dias inteiros, obviamente. Tem a sua vida noutros lugares, em casa, na horta, no café, nos caminhos, na família. Eu é que olho para ele ali, naquela esquina, naquele lugar, e parece mobília. Parece tudo aquilo que nós quisermos pensar. Um velho ali quieto, a olhar. Faz parte da paisagem, fará parte da miragem quando ele deixar de existir. É ele a sua imagem, é ela que nos diz adeus a sorrir. Ora de boné, ora de gorro, o tempo não lhe mete medo. O que será que ele vê além do óbvio? Qual é o seu segredo? Será que conhece mesmo toda a gente? Será que está ali só por estar, indiferente? Talvez sim, talvez não. A verdade é que ele existe naquele lugar, naquele instante, levantando a mão. Por vezes, faz só um aceno com a cabeça. E aquele gesto ameno faz com que tudo aconteça. Se eu o olho e lhe digo olá, todo o seu rosto brilha, e parece que ele sai da ilha onde está. Todo ele sorri, todo ele é dono de si, da sua felicidade. Alguém o viu, alguém lhe disse olá ou disse adeus – é tão difícil distinguir – e ele respondeu do lado de lá, sempre a sorrir.

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o meu pai

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O meu pai conta sempre as mesmas histórias. O meu pai inventa canções. O meu pai está sempre a rir. O meu pai é corações.

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era o meu padrinho

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Era o meu padrinho. Era um homem forte além de todas as medidas. Era um menino de olhos grandes azuis com medos que lhe vieram do outro lado do mar. Era assim, da forma errada, que se fazia na guerra. Era assim, da forma triste e revoltada, que ele vivia desde o dia em que voltou à sua terra. Era um estudioso, um exemplo, um herói. Era um senhor, um lutador, um amor que já foi. Era o meu padrinho. E era muito mais do que tudo isto. É por isso que dói.

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volta a leiria

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Anda vadio pela rua, e lá anda pela estrada. Ele e uma bicicleta. Mais nada. Ele de colete fluorescente, equipamento obrigatório em cada corrida, passando assim pela gente como se passasse pela própria vida. É uma bicicleta vulgar, mas parece um foguetão que o leva sempre a voar sem nunca sair do chão. Já o apanhei a pedalar, já o apanhei ao lado dela. Depende do lugar, parece uma caravela e ele um daqueles marinheiros antigos de cara cansada e postura forte, passando assim por nada como se passasse pela própria morte. Não se deixa abater. Faça chuva ou faça sol, lá está ele a ser o ciclista que tem na sua imaginação. Uma espécie de artista, de camionista de coração. O olhar é inquieto, parece estragado, por estar muito aberto a olhar para todo o lado. E o cabelo aos caracóis, quase inexistente, puxado para trás, por um pente. Assim parece, assim é, umas vezes montado, outras vezes a pé. Mas sempre focado no seu objectivo de andar de um lado para o outro, de fazer um percurso que ele tem na sua cabeça. Sempre, todos os dias, a subir, a descer, lá vai ele a ser, a pedalar. A vida não lhe parece ser mais do que aquilo que ela é, uma pista de corrida. Nunca o vi com alguém. Vejo-o sempre sozinho, destacado do pelotão, o camisola amarela. Talvez a mãe o chame para casa, da janela. Talvez ninguém o chame. Parece-me mais assim. Parece haver pouca gente à volta dele. Pelo menos, para mim, que o vejo todos os dias compenetrado, embora vadio, concentrado, no meio da estrada ou junto ao rio. Será que ele se imagina numa Volta a Portugal? Será que ele sobe a rua como quem sobe a Nossa Senhora da Graça? A verdade é que ele leva aquilo a sério, e aquilo não lhe passa. Fica-lhe na cabeça como se fosse realidade. Por mais estranho que pareça, sim, é mesmo realidade. Tudo o que ele imagina, existe. Mesmo para quem olha de fora, e lhe pareça um cenário triste. Ele pega no guiador e lá vai ele sem destino. Talvez a meta seja o amor, mesmo que pequenino.

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uma série, tantas repetições

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O senhor Alberto vai todos os dias ao ginásio. Acho que é assim que ele se chama. E acho mesmo que vai. Ele diz que sim, sempre que o encontro por lá. E eu só tenho de acreditar. Ele não mente, não tem cara de mentir. Tem cara de lá ir – ou de dizer verdade quando diz que vai. É simpático, está sempre com um sorriso naquela cara bochechuda e pequenina daquele corpo bochechudo e pequenino também. E anda pelas máquinas a experimentar uma e outra, sempre a sorrir e com os olhos pequeninos, de toalha ao ombro e olhar fisgado numa ou noutra conversa que lhe apareçam à frente. Eu acho que ele só vai ao ginásio para poder estar rodeado de gente e de conversas. Na sua horta, que diz que é pequenita, mas com tomates, romãs e batatas, deve sentir-se sozinho. Fala para ninguém. Ali, no ginásio, ainda encontra alguém. Muita gente, até. E ele lá manda uma laracha daquelas que são o que ele é, do estado do tempo ou do cá estamos, tem de ser, cá se vai andando. E nós todos estamos, temos de ser, cá vamos andando. Com ele. Dá-me sorriso olhar o senhor Alberto. Está lá sempre de manhã. Por entre musculados e delineadas, a olhar para um lado, a olhar para o outro, como se estivesse a ver um filme de que gostasse muito e que o levasse às nuvens – qualquer coisa assim muito poética para a visão que tenho de um velhote, ainda não muito velhote, num lugar que não é o seu, a apreciar o que não tem, o que o rodeia. Só gente linda, nada de gente feia. E ele faz parte daquele lugar. Mesmo não lhe pertencendo, é lá que ele deve estar. E é lá que ele faz os seus exercícios de braços, de pernas, de tronco, de cabeça – de imaginação, talvez melhor dizendo. Ele trabalha o coração, e eu vou vendo. O senhor Alberto vai ali só para estar, só para ver e só para falar. Ser ginásio é irrelevante. Poderia ser um talho ou um jardim. Mas sei que tudo é bastante, e que o senhor Alberto também olha para mim. E fala comigo vulgar, como se tudo fosse importante, e o mais importante fosse estar.

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os dois e a noite

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Ele e ela, ali os dois, no mesmo lugar. Um lugar pequenino, sobre rodas, a trabalhar. De noite, lá estão eles. Não todas as noites, só algumas, até às tantas, no estacionamento do mercado. Vendem bifanas, cachorros, hambúrgueres, kebabs. Cervejas, águas e sumos. Oferecem conversas e companhias a quem vem da noite ou a quem só a terá como destino depois daquela bifana especial com todos os molhos. Para beber? Pode ser uma média. Ela, vestida de branco, com a farda quase militar de quem pergunta, organiza, cozinha. Ele, vestido de uma cor qualquer, com uma farda que é uma t-shirt que tem vestida e que tem nódoas de conversa com quem se alimenta ali encostado ao balcão. É ela que orienta, é ela quem manda ali. Ele nem tenta, apenas sorri. À sua maneira, fazem o que têm de fazer. Muito mais do que cozinhar ou de pôr maionese numa bifana à casa. Eles conversam, ouvem lamentos e desejos, vêem abraços e beijos de quem chega ali esfomeado de falar. E de comer, que a noite também dá fome. Como se aquele lugar, àquelas horas, fosse um confessionário da comida, uma espécie de santuário para quem acaba e para quem começa a vida escura. Fala-se da vida e das coisas que a vida tem. A bifana é um pretexto. Há fila como se fosse romaria, existência como se fosse dia. Mas é a noite que existe. E lá está ela, a fazer o cenário para aqueles dois e para todos aqueles que por ali passam. Aos pares, em grupo, sozinhos. E a noite é deles todos. De quem lá vai contente e quase no fim, de quem lá vai triste, de quem lá vai só porque sim, porque faz parte da rotina que leva quando sai. E eles os dois, ali, quase como mãe e pai. Recebem toda a gente, falam com toda a gente, decoram os pedidos de cada um. Por atender? Nenhum. Toda a gente lá acaba por comer. E dar uma palavrinha ou outra. Seja jovem, seja velho, qualquer um é recebido e ouvido por ele e por ela. Há simpatia, simplicidade, alegria, e a cidade ali estendida entre dois dedos de conversa e outros tantos de comida.

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sem pregões

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Duas douradas, uma escalada, outra não. Choco e lula. Corvina e sardinha de mão em mão. Meu amiguinho, obrigada. E lá vai ela agradecendo, enquanto amanha mais uma pescada. Terças, quintas e sábados, lá está ela na sua banca a vender o peixe que lá tem. Sempre bem apregoada, entre gente que vai e gente que vem. E a gente faz fila e espera pela sua vez. Quantos carapaus? Hoje, levo três, vai lá o meu filho almoçar. E lá vão os três carapaus, acabadinhos de pescar. Ela de um lado para o outro, a ouvir, a falar, a sorrir, a escamar. Tem contas apontadas nos azulejos azuis da sua banca por cima de um Santo António, uma Nossa Senhora e um telemóvel. Cento e vinte e quatro mais cento e quarenta e um dá duzentos e sessenta e cinco. Cento e dezasseis mais duzentos e catorze dá trezentos e trinta. Contas certas, rezas feitas, telefonemas atendidos. Diga, diga. Está guardado, não se preocupe. E, por entre toda aquela algazarra que lá vai dentro, lá vai ela fazendo contas, vendendo, rezando. E o tempo lá vai passando. Este é para levar ao forno, aquele é para grelhar, o outro ainda não sei. São todos para levar. Peixe fresquinho, acabadinho de chegar. Tem companhia, a mulher. Outra que a ajuda a atender, a preparar, a receber. Em silêncio, ali na sombra, sem se notar. Cabelo esbranquiçado e apanhado, para não estorvar. Voltemos a ela. Cabelo loiro, um pouco apanhado também, e lá vai ela atendendo a tal gente que vai, a tal gente que vem. Sorri assim quase por vergonha. É tímida – pelo menos, parece. Tem sempre palavras serenas para quem chega. Não faz alaridos, não berra. Destoa, até, um pouco das colegas que lá tem a vender o mesmo peixe, que não é o mesmo peixe, que ela. Ou a fruta. Ou os legumes. Ou as plantas. Ou as ervas. Ou o que for. Melões, cenouras, batatas, tomates, feijão, alecrim. Tudo em torno dela. Ela em torno de mim. Duas douradas, uma escalada, outra não. Choco e lula. Corvina e sardinha de mão em mão.

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rock and roll leiria

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Ele é do rock. Desce e sobe ruas como se subisse e descesse escalas no braço da sua guitarra. A rua, por agora, é sua e é o palco. Sem guitarra e sem escalas. Tudo na sua cabeça. E na minha. De cor e salteado, por aí, por todo o lado, cabelo grisalho e comprido ao vento, sentindo o tempo, marcando o tempo. Batida acelerada, como o passo, andar seguro, mas não severo, com aquela ginga do rock and roll, dos músicos dos outros tempos que agora existem a lembrar e a conversar e a ouvir o que lhes foi a existência. Olho para ele e vejo épicos solos numa Fender ou numa Gibson. Uma maravilha. Também o poderia ver numa Tama ou numa Pearl, sete tambores, quatro tarolas, três bombos, vinte pratos. Outra maravilha. Mas, por qualquer razão da minha visão, lá está ele com uma guitarra amarrada ao pescoço. Parece que procura alguém que o acompanhe no riff que criou para a sua vida. Como se procurasse alguém para o acompanhar na sua despedida. Já não é novo, já tem as suas entradas e as suas conversas de tempos que só ele e outros como ele viveram. Mas ainda está aí para as curvas e contra-curvas que a vida certamente lhe vai apresentando. Como a idade. Filipes, Farmácia, Arquivo, Centro de Saúde. Lá vai ele, mais amiúde. Como os Xutos. Mas sozinho e sem pontapés. Cabelo sempre solto, calças sempre justas, conversas sempre prontas. Quando alguém o pára, ele fala e continua a falar – e parece que se ouve, outra vez, a guitarra a tocar. Antigamente é que era. Os putos não sabem. Era ele e outros tantos, ali, a viver a vida louca das canções. Mas os putos sabem, claro que sabem, e sabe ele também, mesmo sabendo que antigamente também era – tal como é ainda hoje. É o que eu penso que ele pensa – a vida é que já lhe foge. Mas ele é do rock. O que lhe interessa isso da vida, mesmo que, tendo em conta o que ela é, ela já lhe ande fugida? Claro que nada. Ele continua a tocar, guitarra ou bateria, e continua a passear, a ser e a rockar por Leiria.

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santinho

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Ó meu rico santinho,
não me leves a dançar,
que eu só danço sozinho
comigo a acompanhar.

Ó meu rico santinho,
isso não é bem verdade.
Eu só danço sozinho
se for eu pela metade.

Ó meu rico santinho,
talvez seja confusão,
mas eu só danço sozinho
se alguém me disser que não.

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um dia

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Um dia não são dias.
Todos os dias não são um.
Quantos serão todos os dias
quando não sobrar nenhum?

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força

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Que força tenho
para deixar de ser eu
para passar a ser
um estranho?
Não sei se consigo.
Se deixo de ser eu,
deixarei de estar comigo?
Mas força é fraqueza
por ser mudança.
Sou incerteza
que em mim balança.

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a noite

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A noite calada
só faz barulho.
Mais nada.

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baloiço

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Lembro-me de ser criança,
de brincar tão entretido
num baloiço que já não balança
porque agora está partido.

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flor

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Ele existe nesta cidade como tantos outros como ele existem em tantas cidades. Bem vestido, geralmente de calças de fato, de sapatos e de camisa branca, anda por entre as multidões vendendo flores, tentando, de certa maneira, acordar corações, juntar amores. E algum dinheirito para si e para a sua família, imagino. Não o conheço, não lhe sei a vida. Mas, quando o vejo, soa-me sempre a despedida. Tem um olhar triste que parece não querer ser outro – é aquele que ele tem e é aquele que está condenado a ter para o resto da sua existência, como se fosse um mártir daquilo que faz. Parece que as flores que carrega são pesadas como a consciência que traz ou como a saudade que sente sabe-se lá de quem, sabe-se lá de onde, talvez do pai e da mãe, talvez do país. Por vezes, há quem lhe pergunte. Ele não diz. Guarda as palavras para si, talvez por vergonha do erro ao dizê-las numa língua que não é a sua, talvez, simplesmente, por não as querer dizer – não tem de as dizer. Basta-lhe a rua. Só pergunta à gente se a gente quer flor. Mais nada. Anda vagabundo com vários ramos, como se fosse um chefe de mesa deambulando, vendendo amor. Meia dose, meia dúzia do que for. Vai a festas, vai a ruas, vai a todo o lado desde que haja gente a conversar, a jantar, a namorar. Vai a todo o lado, é de todo o lado, talvez por não se saber encontrar, talvez por não ser deste lugar. Mas, mesmo não sendo, faz parte dele. Este lugar não existe da mesma maneira se ele não existir também. Faz parte da cidade, da calçada, do dia e da noite, das brincadeiras e dos engates. Por vezes, até faz parte das palavras preconceituosas, dos espinhos das suas rosas, e dos ataques. Mesmo assim, talvez ele até seja feliz. Talvez o rosto que aparenta não seja reflexo do que sente. Se calhar ele até tenta ou, para ele, a felicidade é uma coisa diferente. E ele lá anda, sempre discreto, contornando vidas e conversas e bebidas e sem pressas. Devagarinho, fazendo a sua vida ao seu jeito. Pela sua cidade, com as suas rosas ao peito.

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da janela

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da janela vejo a lua vejo a rua vejo-a nua
vejo ela e ela ali e ela a mim e ela assim
sem mim sem ela

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pela vida, cidade

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Anda pela cidade devagar, como se a cidade só andasse se ele andasse também, como se ela não pudesse respirar, como se ele fosse os pulmões que ela tem. E ele fala assim, envergonhado, com medo de falar, vai-se chegando aos outros encurvado, numa forma tremida que parece venerar. Anda pela cidade às escondidas, como se ninguém o visse e toda a gente o encontrasse, como se ele se despedisse e logo depois se mostrasse a quem está aqui e ali, numa esplanada, a quem anda a passear, a quem faz nada, a quem faz o nada durar. Anda pela cidade como se andasse pelos corredores da sua casa, pôr a mesa, mudar de canal, vestir o pijama, ler o jornal, e lá anda ele com os talheres e o comando, a flanela, o papel e o vai-se andando que a vida vai passando, e não é que a vida passa? E nem sempre é alegria, e nem sempre é desgraça. É o dia que ele vê e que ele tem, é o fim de tarde, o fim de dia, o fim de um filho de um pai e de uma mãe. Quem são, por onde andam, e ele por aqui, pelas ruas que desandam, pelo sorriso que, lá de vez em quando, sorri. Anda pela cidade parecendo assim, um caminhante cumprindo uma promessa de quem anda sem fim, sem promessa alguma, só com a crença numa espécie de doença que parece que o aproxima da loucura. Caminha e, por caminhos, vai sendo quem ele é, uma espécie de peregrino, um menino apregoando a fé. Anda pela cidade parecendo pedinte, lotarias, raspadinhas, sendo ouvinte de sins e de nãos, muito mais de nãos, e das ladainhas que ele diz para aceitar uns e outros, não infeliz, também não contente, parecendo assim, por um triz, ser gente. Anda pela cidade parecendo perdido, magrinho, olhar alto e no chão, conhecendo as pedras por onde anda, um homem sozinho numa banda com trombones, tambores, oboés, tudo calado rente aos pés num guarda-chuva fechado, pendurado à espera dela. Mesmo sem previsão, ele anda com ele à mão e não se desfaz da vontade que se acomoda. Ele e ele, a vida, e anda a roda.

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abril

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Pergunto ao vento que passa
Somos livres de sonhar
pelos cornos da desgraça
de combater a cantar?
Mapa do mundo distante,
dirão canção de liberdade…
Do nosso corpo mais adiante,
em cada rosto, igualdade.

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henrique

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Fazes falta nas festas, nos lugares cheios de gente, nos espaços vazios, nos cantos, nas renúncias, nas canções, naqueles inícios de tarde e fins que não chegavam por tu estares e prolongares a vida, nas noites todas, nas manhãs que não têm nada, nos dias de sol, nos de chuva, nos de tudo. E a noção de que somos pouco.

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artista

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«Já pedi a conta à menina, mas ela não vem.» Vim eu sem saber como. Parei neste tasco na Nacional. Mesa para um. Pode ser aqui. Boa noite. Bebia vinho, olhava a CMTV e, de vez em quando, lá desenhava. Uma obra de arte. Obrigado. Estava só a passar o tempo. Sou designer, fiz isto em três minutos. Eu nem em três anos. Desculpe incomodar. Obrigado por reparar. Não contava, não esperava. Aconteceu. Um jantar com um artista e um desenho que agora é meu.

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sessenta e três

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Abraço beijinho copo de vinho branco já para a mesa ansiedade saudade força lareira sofá o que tenho inteira cansaço dores nos ombros dores nas mãos só uma sesta jardim e assim são os sonhos amor canários acordar de manhã ir embora e agora mamã e agora? suspiro ao final do dia hora de almoço sozinha mulher menina também cão gato galinha laranjas pedronhe maninha são pedro nelito cartuxinha tudo é a minha mãe.

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maringá menino

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Há tanto tempo que ele anda por cá, que eu o vejo por aqui a caminhar. A sua casa é o Maringá. É sempre onde ele está, quando o quero encontrar. Nunca fui ter com ele, não sei como se chama, nunca lhe disse nada. Sei que, para mim, aquele lugar, para ele, é morada. Ele faz parte da cidade. Toda a gente o conhece, mas parece que ninguém lhe dá um nome ou uma medalha que ele merece ter apenas por ser. É que ele faz parte dali, ele é ali, mesmo sem saber – julgo eu que ele não sabe. Eu só vejo de fora e imagino. Ele passa por mim, como passou agora, como se fosse um menino. A cara é igualzinha à do Robin Williams – ou eu é que vejo na cara dele a cara de alguém de quem eu gosto para que ele, de certa maneira, se aproxime de mim. A culpa não é dele, eu é que sou assim. E ele é como é, obviamente. Num lugar dele, com tanta gente. Com tantas lojas, tantos corredores, tantas portas, tantos amores que são família. Tudo é casa, ele é mobília. Ele por ali, a cuidar de tudo o que lá está. Vai às raspadinhas ver se alguma tem prémio, na esperança de que alguém a tivesse raspado e, sem atenção, não tivesse reparado e a tivesse atirado para o chão. Se, algum dia, alguma tiver, se ele encontrar os milhões que procura, o que irá ele fazer? Alguma loucura? Ele já é visto como louco. Nenhuma loucura seria maior do que aquela que lhe dão. Ele vive bem com pouco. Nós é que não. Certamente, ele não faria nada. Olharia a raspadinha premiada, sorriria e seguiria com a sua vida. Que vida é essa que ele tem? Sempre cheio de pressa, como quem estivesse muito ocupado a cumprir um horário. Rica vida a deste quase milionário que anda por aí. O rosto diz ternura e o rosto sorri um sorriso leve, a passar por despercebido. Ele vive a vida breve, de cabelo comprido. Parece um fantasma – não lhe ouvimos os passos nem a voz. Os gestos são escassos, o resto somos nós. Faz parte da paisagem, confunde-se com tudo o que nela permanece. E lá anda ele em viagem, a pé, pela vida que lhe aparece.

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oito

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Oito anos deste querido, badocha, amigo, vadio, mimoso, malandro, lindinho, sacrista, fofinho, estúpido, gordo, pirata, criança, terrorista, tolo, cavalo, panças, preto, sacana, menino, sapato, pirralho, palerma, compincha, patife, amor.

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o meu tio tonito

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António Maria Andrino Pereira. António Maria. Tonito. Tio Tonito. O meu Tio Tonito. Olho para ele e vejo, sempre vi, um exemplo de força e de alegria e de liderança e de adulto e de criança que leva para a sua vida e leva para a vida de quem está com ele. Com ele, tudo acontece, tudo tem de acontecer. Não há vazio, não há ausência, não há silêncio de nada. Há constantemente a urgência da vida, das contas, da família, das alfaces, das galinhas, do Benfica. E tudo passa, e tudo fica. E ele, e quem está com ele, passa e fica também. Com ele, a vida acontece. Não por, simplesmente, acontecer. Mas por obrigação, por vontade, por qualquer coisa que ele tem no coração e que faz com que a sua vida seja, acima de tudo, realidade. Ele pega a vida pelos colarinhos e faz com que ela seja aquilo que ele quer que ela seja. Nem sempre é bonita. Por vezes, aleija. Mas o meu Tio Tonito, como por magia, pelo menos para mim, vive o dia. Assim, com a alegria e com a simplicidade que lhe existem naturalmente. Ele com ele, ele com toda a gente. O meu Tio Tonito tem a cabeça nos números e os pés na terra. Tem o coração na família e tem os olhos, quando choram, lá na guerra. Foi da maneira que foi porque foi da maneira que quis. Sem medo. Ele só queria ir, para começar a vida cedo. Foi, lutou, sofreu, chorou, fez o que tinha de fazer. De arma na mão, fez tudo para trazer o irmão – não aguentava vê-lo sofrer. Nem espingarda, nem canhão. Coração. Quando voltou, voltou a ser o que sempre foi desde pequenino: um homem. Embora, por vezes, pareça um miudito, por aí a correr e a brincar como se os joelhos não gritassem e a vida não fosse passando. Os joelhos lá gritam e a vida lá passa, mas o meu Tio Tonito não se importa. Até acha graça. Tem a quem sair. Olho para ele e vejo o meu avô. Ver o meu avô é bonito. No olhar, no riso e na genica do meu Tio Tonito. Vejo a minha avó, também. Vejo o meu Tio Zezito, vejo o meu pai. Vejo a minha Tia Lurditas e a minha Tia Belita. Vejo toda a gente que já lá vai e que ainda existe. Vejo o meu tio contente. Nunca vi o meu tio triste. Não por não o estar de vez em quando. Ele é que não dá importância à tristeza. É que nem lhe marca reunião. Ela pode insistir e ele, a sorrir, diz-lhe sempre que não. António Maria Andrino Pereira. António Maria. Tonito. Tio Tonito. O meu Tio Tonito.

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ao canto do outono

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À esquina do Inverno, vem o frio e ela também. Ali, junto à rodoviária, bem no centro da cidade que nos tem. Ao fundo da avenida, lá está ela com as castanhas, dando calor à vida. Quem lá passa, lá a escuta. Ali, entre o castelo e o rio, na sua luta. E apregoa como um desafio. Meia dúzia, mais uma ou duas. E, se não mata a fome, mata o frio. As castanhas e as dores? Todas suas. Mas também as alegrias, as vidas e os dias que ela conta e que lhe dão a ouvir. Dos adultos, as coisas banais. Das crianças, palavras a rir. Um carro que se empurra e que fica ali quietinho. E o fogareiro de duas asas, dormindo sobre as brasas, ali quentinho. Naquela curva, junto à passadeira. Vai passando a vida, e ela, de vez em quando, na brincadeira. Sorri e ri tantas vezes, talvez para esquecer ou para enganar o esquecimento. Ela lá sabe, e ele lá arde. Com o tempo. E ela também, a mulher que apregoa ao fim da tarde. Ao pé de um canteiro lá faz o dia, entre gente que passa de compras na mão. Faz parte da moldura que é já poesia, em folhas de jornal com que embrulha o coração. E lá estão as pessoas, acompanhadas, sozinhas. Quem quer quentes e boas, quentinhas? Rosto maroto, cabelo branquinho, parece um garoto, mas já velhinho. Talvez tenha tido a vida que sempre quis, talvez não. Não sei se é feliz, mas as vidas que ela diz ainda cá estão. Carrega-as no carrinho, mas não as diz assim a ninguém – estão num lugar distante. Parece levar a vida de mansinho, ao de leve no seu carrinho, a mágoa que transporta a miséria ambulante. E, quando eu passo por ela, vem aquele cheirinho bom de uma castanha à janela debruçada sobre um naperon. Há casa antiga naquele lugar, naquele cantinho que já é seu. Uma sala de estar, um rádio a tocar e um tecto feito de céu. A porta está sempre aberta, venha quem vier por bem. A rua nunca deserta, há sempre alguém. E eu não sei quem está ali, nem quem lhe passa ali ao lado. Pedacinhos de Ary. Quem sabe a desventura do seu fado?

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ele, alguém, telefonia

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Não sei quem é, nunca o vi – não sei se existe alguém que já o tenha visto. Mas ele existe e, se eu o oiço, também eu existo. Na verdade, nunca o ouvi – o que me leva à dúvida lógica de se alguma vez eu existi. Oiço, isso sim, o que ele põe a tocar. Diria que é para mim, mas é para toda a gente que por ali vai a passar. Ou só para ele – nem toda a gente vive só para os outros, para mostrar. Sábado de manhã e lá está o senhor, ou a prova sonora de que, de facto, o senhor está, com o rádio sintonizado, certamente com amor, algures entre o chuvisco e as canções, entre as palavras e os trovões, mas numa espécie de som bordado que faz daquela manhã, naquele lugar, um espacinho bom onde estar. Olhando a porta, assim do fundo das escadas, um chapéu de palha pendurado e uns pedaços de pano – um Tom Sawyer escondido. E ele em nenhum lado, talvez lá dentro, fechado, desumano. Ou perdido. Como se apenas comunicasse assim, através do éter da telefonia. Lá, do meio do jardim, durante o dia. Nem é bem jardim, é casa velha e um pomar, coisas a chegar ao fim, e o rádio a tocar. Nem sempre é melodia. De vez em quando, é chinfrineira. A vizinhança bem queria mas, naquela manhã daquele dia, parece a feira. Contrasta com o castelo e com o verde que se vê, com os passarinhos que cantam, com o jornal que se lê. E está tudo bem com isso – pelo menos, parece estar. É como se houvesse o compromisso de, naquela manhã daquele dia, o rádio tocar. E não se ouve mais nada. Só, de vez em quando, o cão a ladrar – uma espécie de locutor que mantém o ouvinte no ar. Tudo ali é quase Kusturica, quase Chopin. E tudo ali fica, naquela manhã. É como se fosse uma ilha e, à volta, a cidade que é o mar. Um chinfrim de maravilha logo ao acordar. Eles fazem parte daquela paisagem – ele, que não o vejo, a casa e o barulho. Há também uma garagem, quase de certeza com entulho: ferramentas e pó, tudo ao calhas, um homem só e um rádio com falhas. Uma algazarra, naquela casa deserta. Um grito de garra, com notícias à hora certa.

Jornal de Leiria

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sete, trinta e nove

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À minha mãe, ao meu pai. A quem me ouve, a quem me lê, a quem me abraça, tudo passa e eu só vejo passar e eu não sei porquê, a quem me inquieta, a quem me sossega, quem me sossega? se é tudo seta, a quem me diz o caminho, a quem não me sabe dizer, e eu não sei sozinho, só ando a aprender, será esta a vida certa? o que raio quer isto dizer? a quem me aperta, a quem me faz viver, que a vida até que é bonita, mesmo quando quase me mata, à minha escrita que tantas vezes me resgata, aos sonhos que ainda tenho, à dúvida, à crença, a quem me vê como um estranho, talvez eu mais do que qualquer outra pessoa, parece doença, eu sei que consigo, só tenho medo que doa, já dói estar comigo, para onde foi o meu eu antigo? aquele pequenino bebé, eu sei que consigo, só tenho de ser o André, à minha culpa, o meu calvário que eu invento, à minha vontade de sair, de não cair, e eu bem tento, a quem me faz rir, até ao dia, a quem está por vir, a quem me mia, a quem vem ao fundo, a quem me diz que tudo é mundo e que serei feliz, ao meu victan, ao meu irmão, nunca ao presente, sempre ao ontem, ao amanhã, ao coração, a quem? que a vida vai. À minha mãe, ao meu pai.

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todas as coisas que há

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Ele está sempre feliz – pelo menos, aparenta. E aparentar já é meio caminho andado para estar. (De vez em quando, lá temos de nos obrigar.) Porque ele tenta. Parece que inventa qualquer coisa feliz que lhe diz que a vida não se vive de outra maneira que não desta, na brincadeira. Brinca com as palavras e com as situações, brinca com o que não acontece e com as canções. Brinca com as coisas vulgares e dá-lhes uma importância maior, dá-lhes outros lugares, dá-lhes o mesmo amor que dá à vida em si. Porque, para ele, é isso mesmo a vida – todas as coisas que há. Sempre sem despedida porque a vida sempre está. E é com este amor pela vida sem excepção, ou por esta aparência neste amor, que eu vejo o meu pai como vejo um coração, seja ele o que ele for.

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o bastinhos

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O meu tio Bastos sempre esteve lá. Mal se dava por ele, mas ele estava lá, connosco. A ajudar nos grelhados, a conversar sobre a escola, a mandar umas larachas sobre o que fosse, ele estava lá. Calmo, atento, simpático, quase envergonhado, quase gozão. Estava sempre tudo bem. Sempre com os olhos felizes e com aquela maneira delicada e escondida lá dele. O meu tio Bastos ofereceu-me esta máquina. Velha, partida, ferrugenta. Mas vinha embrulhada como se fosse uma Bola de Ouro. Cartões e mais cartões, dezenas de cordas, metros de fita-cola e maços de papel de jornal. Nada disto era para não a estragar. Era, sempre foi, para não nos estragar. O meu tio Bastos cuidava. O Bastinhos.

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todos os nomes daqueles dois

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Um e outro ao lado de um e do outro. Sempre os dois, lado a lado – como na canção, meu amor, mas não tão longe. Sempre perto, um e outro, naquela rua antiga desta cidade, aquela direita que não é, como todas as outras que, sendo assim, não são. Num extremo, o terreiro. No outro, a sé. No meio, quase a meio, mais ou menos a meio, fazendo uma esquina que se inclina para a praça, eles os dois, num lugar aonde se chega pelo cheiro, ou melhor, pelo aroma – talvez dê um ar mais verdadeiro daquilo que aquele cheiro é. Quem chega, entra e vê. Um e outro ao lado de um e do outro, ambos em pé. Bom dia, ou boa tarde, como está, prazer em vê-lo. E parece um regresso a um passado antigo (como todos os passados dignos de serem recordados – como se houvesse falta de dignidade na recordação de outros que acabaram de acontecer), daqueles dos reis e dos cavalos, dos servos e dos rendilhados nas saudações. Serão irmãos, são irmãos, se não forem irmãos, são na mesma, tais são as parecenças em tudo aquilo que mostram: corpo, que tem mãos, pernas, olhos, cabeça, e comportamento, que tem cuidado, reverência, velhice e quase continência em quase submissão. Um e outro ao lado de um e do outro. Sempre os dois. Ali, atrás do balcão. Não os vejo noutro lugar. Também não os procuro – não tenho de os procurar. Mas nunca os vi noutro lugar. Se calhar, eles também não. Eles existem ali, vivem ali, são ali. E aquele lugar, tendo sido de tanta gente, é agora, mais do que deles, eles. Aquele lugar, com tudo o que aquele lugar tem, é um e o outro. Nem sei como se chamam – nem sei se interessa, na verdade. Talvez tenha interesse, isso sim, não saber como se chamam – não lhes saber os nomes é saber-lhes todos os nomes, não lhes saber as vidas é saber-lhes todas as vidas. Eles são eles os dois. Sem tirar nem pôr. Tudo um imenso amor por aquilo que estão a fazer – que é, mais do que acto, potência do que estão a ser. Talvez sejam apenas um. Olho para eles e são dois mas, se um não está, o outro, estando ali, é como se não estivesse. Eles são ali. Pelo menos, é o que me parece.

Jornal de Leiria

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o teatro ambulante chopalovitch – em ti, philippe

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Uma peça de teatro que é uma dança entre o teatro e a guerra. Uma companhia teatral leva a ilusão, o fingimento, a alienação, da vida, a vida, para a guerra. Na terra, há gente que não aceita que se viva, que se finja, que se brinque. Não naquele momento. Há gente que rejeita o teatro apenas por este permitir uma fuga à realidade. Mas esta fuga é falsa, é sempre falsa. Ninguém foge da espingarda do soldado nem do nervo de boi do carrasco. O teatro não impede, alivia. Não nas costas, não no rosto, não nos dentes, mas num lugar qualquer que ajuda a suportar isto da vida. Nesta dança, a guerra mata o teatro e o teatro mata a guerra. Mas nenhum dos dois morre. Philippe, o louco que confunde a realidade com as peças que já representou, é o único que, sendo ou não sendo louco – que definição é essa da loucura? – sobrevive a todas as vergastadas da guerra. Só morre quando leva uma rajada de metralhadora. (É difícil resistir a isso.) Todos os outros vão morrendo. Mesmo aqueles que inventam o que levam para o palco. No entanto, chegando ao fim, sobrevivem. Mas sempre morrendo. Talvez esteja a insistir nisto, mas senti isto mesmo, que todos vão morrendo, talvez, até, que todos já estejam mortos – os soldados por só matarem, as gentes da terra por não terem esperança, os actores do teatro ambulante por terem noção da morte que os cerca e por só terem a possibilidade de se refugiar na ilusão, no teatro, nunca se refugiando inteiramente, precisamente por ser ilusão, por ser teatro. Só Philippe, o louco – um dos actores da companhia – é que apenas vive, por não ter qualquer noção do que se passa – nem da guerra, nem do teatro. Só vive quem não tem noção? Talvez não. Talvez a noção da morte até ajude a viver. Mas todos lidam com ela, menos ele. Ele não sabe dela por também não saber da vida e, por efeito, por não saber da ilusão da vida. E é por isso que vive, que não se importa, que inventa, que confunde, que brinca, tudo sem intenção. Por não saber o que faz. Ele é assim e quem é assim, como ele é, vive e não vive, morre e não morre. Ele é o único que morre porque é o único que vive. «Quem és tu? Lear, se tu és Lear onde está a tua loucura?» Em ti, Philippe.

O TEATRO AMBULANTE CHOPALOVITCH
Texto: Lioubomir Simovitch | Encenação: Jorge Silva | Tradução: Rui Duarte | Interpretação: André Nunes, João Saboga, Mariana Lobo Vaz, Miguel Mateus, Marques D´Arede, Nuno Nunes, Patrícia André, Rita Godinho, Sara Azevedo, Sílvia Filipe, Sofia de Portugal e Victor Santos, Daniela Santos, Madalena Graça, Maria João Felino e Susy Ferreira | Cenografia: Rui Francisco | Figurinos: Maria Luiz | Desenho de Luz: Tasso Adamopoulos | Música: Afonso de Portugal e Rui Rebelo | Vídeo: José Ricardo Lopes | Fotografia: Luana Santos | Design Gráfico: João Rodrigues | Consultoria de Comunicação/Assessoria de Imprensa: Sofia Peralta | Direcção de Produção: Daniela Sampaio | Produção Executiva e Divulgação: Marco Trindade | Confecção de Guarda-Roupa: Teresa Louro | Construção Cenográfica: JSVC Decor | Operação Técnica: Gi Carvalho | Produção: Teatro dos Aloés 2023

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andré contra andré

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Não está nada partido. Quase nada. Talvez uma luxação. Talvez. Não se vê. Não aqui. Bati com a mão fechada numa parede. Ninguém me bateu. Só eu. Tendo a ser violento comigo quando não sei lidar com o que tenho. Esmurro paredes, mordo dedos, dou chapadas no peito. Só isso. Só. Não o deveria fazer, eu sei, tenho noção. Ninguém o deveria fazer. Por nenhuma razão. Mas, por vezes, vai além das sabedorias e das razões. É só vontade, necessidade, urgência de transferir a dor de um lugar, o de dentro, para outro, o da pele. É o André a lutar comigo e eu a lutar com ele. Sem sentido, à porrada. Não está nada partido. Quase nada.

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se vejo, magoa

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Se vejo, magoa.
Se não, também.
É dor que atraiçoa,
é dor que vem
assim de mansinho
(se fosse promessa…),
devagarinho,
tão depressa!
E eu sem saber
lidar com o jeito
de a ter a bater
cá dentro do peito.
Como se faz?
Devo lutar?
Fugir? Ir atrás?
Ou só não ligar?
Mas a dor arranha
– ela sabe andar nisto.
Tem aquela manha,
mas eu não desisto.
Ou só digo que não
para não me dizer
que sou contrafacção
do que quero parecer?
Mas parece que sim,
que até tenho vontade
de ser, para mim,
o que sou de verdade.
Qualquer coisa que luta,
à procura de si.
Mas a dor, essa puta,
magoa e sorri.
Doce e amarga,
como na poesia.
Ela não me larga,
e eu bem queria.
Se vejo, magoa.
Se não, também.
Até já enjoa
não estar nada bem.

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quando morre a imortalidade, ou qualquer coisa assim

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Quando o meu avô morreu, o meu pai deixou de ser imortal. A existência do meu avô impedia a inexistência do meu pai. Assim que o meu avô deixou de existir, o meu pai perdeu a protecção, ilusória, bem sei, de que não morreria – não estaria na vez dele, na vez de nenhum filho em nenhum lugar, ir primeiro do que o pai. Quando o meu avô morreu, não morreu sozinho. Morreu, também, a ilusão de uma imortalidade. A do meu pai. O meu pai foi para o lugar que era do meu avô e eu fui para o lugar que era do meu pai. O imortal agora sou eu, e tudo ficou mais assustador, por ser mais vivo, mais real. Quando o meu avô morreu, o meu pai deixou de ser imortal.

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marrazes, 87

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Foi ontem a Gala de Aniversário do Sport Clube Leiria e Marrazes. Uma vez mais, não sei bem por que razão, voltaram a convidar-me para apresentar a festa. Dar uns bitaites e tal. Claro que não ofendi ninguém – não é a minha cena. Eu só continuo a aceitar fazer isto, obviamente, por aquilo que me pagam. O SCL Marrazes nunca me pagou nada. Eu é que deveria pagar. Por tudo o que este clube me deu, não só como clube de futebol, mas, acima de tudo, muito acima de tudo, como família. Bem, chega de lamechice. A ideia não é chorar, é causar desconforto nalgumas pessoas. Fui para isso que eu fui.

O nosso clube celebrou 87 anos (mesmo celebrando 101). Ora bem, o que é que aconteceu há 87 anos, em 1936 (quando, realmente, nasceu em 1922)? Jogos Olímpicos de Berlim, começava a Guerra Civil espanhola e o Presidente da Junta dos Marrazes prometia que ia recuperar o nosso Parque de Jogos. Estou a ser injusto. Devo, aliás, dizer que o Presidente da União das Freguesias de Marrazes e Barosa, de facto, tem feito um excelente trabalho na requalificação do nosso Parque de Jogos. No ano passado, o nosso campo estava uma vergonha. Mas este ano temos de admitir que está na mesma. Voltei a ser injusto. Está pior. Mesmo não ligando nenhuma ao nosso verdadeiro campo, que não sei se é da Junta ou se é do Clube (mas que, sendo da Junta ou do Clube, é de todos os marrazenses – que não estão a usufruir dele), bem, mesmo não ligando nenhuma ao nosso verdadeiro campo, dizia eu, ouvi dizer que o Presidente da União das Freguesias de Marrazes e Barosa já está a tratar do nosso campo secundário, o de lá de baixo, com um relvado sintético e uma bancada coberta.

Depois de ter subido a palco e confirmado que, sim senhor, haverá sintético e bancada, Paulo Clemente trocou de lugar com aquele que tem sido peça fundamental para o desenvolvimento do desporto na União de Leiria. Perdão, na cidade de Leiria. O Vereador do Desporto da União de Leiria. Perdão, da Câmara Municipal de Leiria, Carlos Palheira. Disse muitas coisas lindas, com muitas frases e muitos apoios.

Depois, foi a vez de Manuel Mendes Nunes, presidente de uma instituição que, além de ter 125 clubes filiados, cerca de 850 equipas e 11.500 jogadores, tem, e gostaria de sublinhar isto, um quadro de cerca de 200 árbitros. Não, não é o Futebol Clube do Porto dos anos 90. É a Associação de Futebol de Leiria. Muito gira, esta piada.

Seguiu-se uma pessoa que é dos Marrazes, vive nos Marrazes e gosta dos Marrazes. A minha sugestão é a de que mude a sede da Associação a que preside para os Marrazes. O Presidente da Associação de Patinagem de Leiria, José Carvalho.

Depois, também de patins, veio o Simão. Conheço muita gente apaixonada pelo SCL Marrazes, não conheço ninguém com a paixão do Simão, treinador dos Seniores de Hóquei e Coordenador da Formação. O Simão é o Simão porque, à paixão do amor, sabe ter o trabalho, a humildade, o profissionalismo, a exigência, a seriedade e tantas outras qualidades, e defeitos, claro, como qualquer ser humano que se preze, que fazem dele quem ele é. Levou a nossa equipa de hóquei à Segunda Divisão. Depois levou à Terceira. Para o ano, estamos novamente na Segunda. Mas isso, em boa verdade, pouco interessa. O que interessa é a paixão que este puto tem e que transmite a jogadores, a técnicos, a massagistas, a dirigentes e a adeptos que, semana após semana, enchem o nosso pavilhão. Com o Simão, no Hóquei, muita gente tem feito mais do que aquilo que pode pelo nosso clube. Além de tantas, duas pessoas: Rui Clemente e Rita Seiça. São estas pessoas que fazem do Hóquei uma modalidade de eleição no nosso Clube. O Simão é uma pessoa que, de certezinha absoluta, não tem sangue vermelho, tem sangue preto. O Simão é uma pessoa que tem um cabelo incrível, mesmo sendo branco.

Depois dos patins, a bicicleta, pedalada por Tó Zé, um homem que tem levado o nome do SCL Marrazes a todo o lado, por todo o terreno. Um homem que não nasceu nos Marrazes, que não vive nos Marrazes, mas que diz em todo o lado que é dos Marrazes. O nosso Responsável da Secção de BTT do SCL Marrazes.

Por fim, foi a vez do Pedro Dinis dizer algumas coisas, entre as quais, outra vez, dizer o arrependimento que teve em convidar-me. Faz sentido, eu compreendo. O Pedro tem um emprego de sonho. Não só por ser Presidente do SCL Marrazes como por, com tantos, tantos, tantos, tantos, tantos, tantos, tantos, tantos, tantos, tantos apoios da Junta e da Câmara, não precisa de fazer praticamente nada.

Quase no fim, foram homenageados alguns heróis que são sócios há 25 e 50 anos. Gostaria, apenas, de realçar os seguintes (segundos) nomes: Miguel JOAQUIM Braz, Gonçalo JOSÉ Seco e, para terminar em beleza, Sandro RICARDO Brito. João Cunha, um dos que recebeu o emblema de 25 anos de sócio, e ex-presidente do nosso Clube, ainda pegou no microfone para destruir o comportamento quer da Junta, quer da Câmara, quer, talvez, também, do Clube, que tem destruído o nosso Parque de Jogos. Aplausos para este senhor.

Ainda houve tempo para um sorteio de umas rifas, com a sedutora apresentação da minha Lenka, André Doc. Cantou-se os parabéns, comeu-se bolo e todos os engravatados ficaram a falar uns com os outros, porque não têm nada que falar com o povo, era o que mais faltava. Deviam estar a combinar os apoios. Foi uma boa noite, mas não deixou de ser triste. Tantos marrazenses em tanto lado, tantos atletas, tantos dirigentes, tantas pessoas que não são uma coisa nem outra, mas que são daqui, e tão pouca gente que esteve no jantar. O SCL Marrazes, para ser aquilo que deve ser, precisa dos outros. Mas, acima de tudo, muito acima de tudo, precisa dos seus. Foi isto. Parabéns.

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o inferno não sou eu

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O inferno não sou eu,
é o outro que me vê.
Mas se o olhar não é meu,
é de quem? É o quê?
Será sempre de alguém
fora de mim?
Ou será de ninguém
e eu é que penso que sim?
Talvez não seja nada.
Talvez não seja preciso
inventar-me uma morada.
O inferno não sou eu,
muito menos paraíso.

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barbie pantera

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Lá vai, lá vem, o baloiço pela mão do pai, a menina pela mão da mãe. A mãe não está ali, apenas o pai a baloiçar a menina que sorri, e a mãe noutro lugar. A mão é só para dizer que a mãe, mesmo não estando, é como se estivesse a ser a menina baloiçando. Mas ela está sem ela, só com o pai, com mais ninguém. Talvez a mãe esteja à janela a ser menina também. Mas não sei dela, não a vejo. No parque, só a criança. O pai dá-lhe um beijo e a menina balança. Para a frente e para trás, para trás e para a frente, o balanço que o pai faz deixa a menina contente. Ela de cor-de-rosinha, ele de preto-escuridão. Uma princesa florzinha, um barbudo mauzão. Calças justas e rasgadas. Tatuagens e pulseiras. Correntes, brincos e espadas. Botas, anéis e caveiras. Leggings coloridas, bandolete nos cabelos. Palavras decididas e feridas nos cotovelos. Não as vejo, mas invento. Ela não pára sossegada. Parece nuvem, parece vento e parece já cansada. Vamos, já é hora, temos de ir almoçar. E a menina parece agora ter mais vontade de brincar. E ele, autoridade, deixa a menina brincar. Ele já teve aquela idade, ele também está a baloiçar. Com sapatilhas de luzes e revista da Barbie na mão. Na pele, desenhos de cruzes. Só falta a distorção. Volta a ser puto feliz, lembra aquilo que ele era. No dedo, um pequeno nariz. Nos ouvidos, Pantera. E toda aquela beleza, que ele lembra com ternura, dá o colinho à princesa enquanto ouve Sepultura. Mas é tudo normal. O baloiço vai e vem. De um lado, as forças do mal. Do outro, as forças do bem. Ali, no mundo inteiro, uma espécie de batalha entre um bonzinho metaleiro e uma rebelde pirralha. Na minha alma há um baloiço que está sempre a baloiçar. E eu vejo e eu oiço o que eu quiser inventar. E uma menina bonita sobre ele sempre a brincar. Se a corda se parte um dia (teria alguma piada), era uma vez a folia, fica a menina sossegada. Cá por mim eu mudo a corda. Ela não cai, não dói, não nada. Se a menina caísse, mais valia não escrever e esperar pela velhice, baloiçar-se sem querer. Mudar a corda era fácil, mas ela tem de crescer.

Jornal de Leiria

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quem sou eu se eu não sou

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Quem sou eu
se eu não sou o outro
que é igual a mim?
Direi que sou eu
só por ser eu,
só porque sim?
Ou direi que sou o outro,
mesmo sem razão?
Quem me diz
que o outro não sou eu?
Sou? São?
O outro são tantos
que eu não poderia ser
mais do que um.
Se não sou todos,
quantos sou eu?
Serei nenhum?

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para além do bem e do mal

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Voltei à escola. Por prazer, apenas. Há muito tempo que eu queria voltar. Era um sonho, ainda é, pelo menos até perceber que não percebo nada de Anaxágoras, Xenófanes ou Tales de Mileto e desejar ter ficado na minha caverna, sossegadito, a ver as sombras a passar. Viram o que eu fiz aqui? Incrível. É por isto, também, que voltei à escola. Para ver se aprendo. É conhecer-me a mim mesmo e tal. Penso, logo existo. Para além do bem e do mal.

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cortejo de um homem só

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Ele sai de casa bem vestido, fato engomado, mãos nos bolsos ao comprido, como se fosse cantar o fado. Não canta, pouco fala, só um bom dia ou um boa tarde de vez em quando, em surdina, e lá vai ele andando, virando a esquina. Sempre muito direitinho e elegante, como se desfilasse devagarinho numa rua de Paris e, durante, assim de mansinho, fosse feliz. Não sei se é, nem sequer sei se parece, não dá bem para dizer, lá vai ele a pé e, quando vai, quase adormece, assim sem querer. Parece que vai num cortejo de despedida, sem caixão, talvez só o corpo que passeia. Lá vai ele pisando o chão, pisando a vida, calçada, terra, estrada, areia. De vez em quando, quando há, pára os passos, vê o que está, gente na escola, outra lá fora a falar, putos a jogar à bola, homens a trabalhar. Faz a vistoria às obras dali, como se fosse um fiscal de capacete amarelo, isso não é daí, aquilo está errado, mais para a esquerda, mais para o outro lado, e ao fundo o castelo. As mãos já não estão nos bolsos, agora atrás das costas direitas, um bocadinho curvadas, sempre estreitas. Por vezes, só imagina, julgo eu. Por vezes, só vê as tais ruas de Paris com as tais pessoas engomadas como ele num passeio que julga ser o seu. E ele feliz ou infeliz, não sei bem, não dá bem para dizer, lá vai, lá vem, lá anda a viver. Ali perto do fim, assumindo que ele vem para toda a gente, lá vai ele vivendo assim, lentamente. Talvez tenha vivido a correr, passando pela vida de raspão, e agora o que sente é só a vontade de ser o que lhe diz o coração. Ele ouve o peito, sorri, sem se perceber, e continua a direito, ali, só a ver. Como se esperasse o que lhe resta, e o que lhe resta é morrer. Mas sem pensar nela, na morte, que pensar nela traz mãos frias e má sorte. E ele assim deve andar, não pensando que ela vem nem sequer que ela existe. O que lhe interessa é caminhar, se ele começar a pensar, começa a ficar triste. Não vejo tristeza no meu vizinho. Vejo só delicadeza num homem que anda sozinho.

Jornal de Leiria

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a que sabe um beijo

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a vinho
a cigarro
a carinho
a escarro
a sopa de feijão
a qualquer coisa da moda
a cão
a foda
a pastilha
a caracol
a ervilha
a sol
a sonho
a solidão
a bafo medonho
a bocado de pão
a menta
a couve
a tudo o que se inventa
a tudo o que houve
a jesus cristo
a quem acredita em shiva
a xisto
a saliva
a vão de escada
a versos e prosas
a nada
nunca a rosas

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parece que sou um rio

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Tudo fica vazio.
Nada acontece.
Parece
que sou um rio
que, num instante,
desaparece.
E os peixinhos
cá dentro a saltitar,
todos juntos, sozinhos,
sem respirar.
Sou um rio
de vazio
a transbordar.

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em vez de coração

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Raramente
vejo o que
realmente
importa.
Sou uma visão
que, em vez de coração,
vê não.
Sou uma visão
morta.

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o meu pai e o meu avô

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O meu pai e o meu avô. Foram eles que fizeram de mim o benfiquista que sou. Ainda são. Eu vou sendo o que me lembro do meu avô de rádio encostado ao ouvido, o que vou tendo do meu pai de abraço dado comigo. Não sou do Benfica por razão, por qualquer motivação ponderada. Sou do Benfica por coração, e o coração é sempre o que nos livra do nada. Sei por que sou assim, mas não sei, não se explica. Por tudo o que meu pai e o meu avô são para mim, e eles são Benfica.

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não é um ministro

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O João Galamba acalmou a ex-CEO da TAP que, antes da reunião, estava «muito nervosa» e acalmou a sua chefe de gabinete que, quando lhe ligou, estava «muito perturbada, desesperada». O João Galamba não é um ministro, é um Victan.

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talvez não seja nada

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O César Mourão é muita gente, toda a gente que ele conhece e que não, que lhe aparece de repente na rua, no teatro, na rádio, na televisão. O César sempre cantou, sempre sem querer ter o carimbo de músico ou de cantor, sempre inventou e nessas invenções lá ia criando aquilo que, mesmo não declarando, eram canções. Sempre nos intervalos do que fazia de forma assumida, fazer rir, representar, como se fingir não lhe fizesse parte da vida, como se a sua vida não fosse cantar. Serve toda esta lamechice para dizer que este álbum que o César acabou de lançar é aquilo que o César é, muita gente. Mais do que cantar, ele conta. São canções, mas são histórias. E são as histórias, mais do que as notas e as vozes, que dão vida às canções. Este não é um álbum de conservatório, é um álbum de rua. E é isso que o faz ser de quem é, de um gajo porreiro que usa a sua arte, de representar, de entreter, de cantar, para estar com gente – mesmo que inventada. Chega a ser comovente. Talvez não seja nada.

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conhecido por serviços secretos

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Com o Caso Galamba (o da porrada do seu adjunto; não o do pedido de demissão), ficámos a saber que houve intervenção do SIS – Serviço de INFORMAÇÕES DE SEGURANÇA, mais conhecido por Serviços SECRETOS. Ora bem, segundo a Comunicação Social, sabemos que o agente dos Serviços SECRETOS fez um telefonema, sabemos a que horas foi feito esse telefonema, sabemos que esse telefonema não foi atendido, sabemos a que horas foi feito um segundo telefonema, sabemos a duração desse segundo telefonema, sabemos o que foi dito nesse telefonema, sabemos que o agente deu um número de telefone e um nome de código ao adjunto, sabemos o nome de código, sabemos a altura do agente, sabemos o tom de pele do agente, sabemos a envergadura do agente (menos de 1.70m, moreno e entroncado), sabemos que houve um novo telefonema, sabemos a que horas foi feito esse novo telefonema, sabemos que o agente e o adjunto marcaram um encontro, sabemos onde foi esse encontro, sabemos a que horas foi esse encontro, sabemos qual foi a duração desse encontro e sabemos o que foi dito nesse encontro. Foi este o trabalho do SIS – Serviço de INFORMAÇÕES DE SEGURANÇA, mais conhecido por Serviços SECRETOS. Está certo.

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a bola à frente da baliza

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Luís Montenegro, líder do maior partido da oposição, acusa António Costa de querer eleições antecipadas. Sim. Luís Montenegro, líder do maior partido da oposição, está a chorar porque António Costa lhe está a pôr a bola à frente da baliza para ele marcar golo. E ele acusa, lamenta e chora. António Costa tem tanta certeza da incompetência e da incapacidade de Luís Montenegro que nem precisa de guarda-redes para defender um remate que, de certeza, sairá pela linha lateral.

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