a minha aldeia
A minha aldeia não tem lugar no mapa. Não se lá chega com gps nem com indicações na estrada. A minha aldeia está onde a gente não esquece. A minha aldeia está onde não está mais nada. A minha aldeia tem a forma da minha lembrança de quando, mais do que pequeno, eu era criança.
A minha aldeia tem as mãos gastas que me passam pela cara para tocar o neto daquela, o filho daquele, o menino tão pequenino que agora está um homem feito. A minha aldeia tem os olhos brilhantes pela noção do tempo longe que não volta e do tempo perto que pouco falta. A minha aldeia tem meninas nos sorrisos das velhinhas e velhinhas meninas nos olhos dos velhinhos. A minha aldeia tem os pés assentes na terra escaldada do sol ardente e enlameada da chuva que molha a vida da gente. A minha aldeia tem a saudade cravada nos gestos. A minha aldeia tem o uniforme negro da capela branquinha que toca o sino dolente na tarde calma. A minha aldeia arrasta o corpo em procissões e baila o vinho nos arraiais. A minha aldeia tem ais. A minha aldeia tem a crueldade do campo e do gado. A minha aldeia tem gente fora que só vem de vez em quando para a festa. A minha aldeia é fado que arde em lume brando. A minha aldeia é esta. A minha aldeia tem o coração no sítio certo. A minha aldeia é tão longe de tão perto. A minha aldeia tem a mesa rica de gente pobre que mal tem para quem lá vive e tanto tem para quem lá vai. A minha aldeia tem muito vazio. A minha aldeia tem calor e tanto frio. A minha aldeia tem o corpo da gente velhinha que num destes amanhãs já não existe. A minha aldeia é muito alegre e muito triste.
A minha aldeia não é lugar. A minha aldeia é corpo que existe nas coordenadas do meu. A minha aldeia sou eu.