uma canção que não existe
O meu pai está sempre a cantar uma canção que não existe. Faz aquele murmúrio sem palavras e sem direcção ao chegar de algum lugar ou, não chegando, estando nalgum que o faça cantar, não cantando. O meu pai canta essa canção que, mesmo não sabendo qual é, não poderia ser outra. Se ele soubesse, se eu soubesse, deixaria de ser a canção que o meu pai está sempre a cantar para ser uma canção qualquer, uma canção vulgar. Na verdade, a canção existe e é a que ele quer, mas só naquele lugar desconhecido que faz do meu pai, sempre depois de eu o ter ouvido, um homem que é tudo menos triste. E não é só por eu o ouvir. É por ele sentir que é mesmo feliz. E canta essa felicidade. Mesmo não sabendo de onde vem nem a sua definição. O meu pai é esse murmúrio que ele tem, e eu sinto-me sendo a sua canção.