pelo abismo da aflição
Fui ao dentista. Tive dores e pensei. Penso muito quando tenho dores. Tenho muitas dores quando penso. Estava eu vulnerável, com uma broca a perfurar-me um nervo qualquer do molar, quando pensei, doendo, no tão na moda “viver o agora”. Raramente vivemos “o agora”. Diria que sim. A sociedade corre e nós corremos com ela, como sem fim. Não aproveitamos o filme que estamos a ver, o sofá onde estamos sentados, o sol que nos aquece, pouca coisa, nada nos apetece. Estamos constantemente neste estado ansioso de futuro constante que não nos larga. Isso é verdade – eu estou sempre além longe do agora, mas também é mentira. Eu, com aquela broca a perfurar-me um nervo qualquer do molar, estava a viver o agora. Queria pensar no passado ou estar já a viver a chamada que iria receber mais tarde, mas não. Estava ali, naquele momento, inteiramente de corpo e pensamento, a sofrer. E isso fez-me pensar, doendo, que nós, de facto, vivemos o agora. Mas só se o agora for dor. Se não for, sendo prazer ou coisa indiferente, passamos à frente em busca de nova dor onde ancorar o pensamento. No passado ou no futuro, tanto faz, mas sempre em movimento. Há pessoas que não, certamente. Mas há pessoas que sim, como eu, que têm uma espécie de atracção pelo abismo da aflição. Uma atracção que não é voluntária – eu não quero viver a broca a perfurar-me um nervo qualquer do molar, mas que vem de mim. E não sei se o problema é ter inclinação para viver a dor ou não conseguir sequer viver o prazer – ou até mesmo a coisa indiferente. Mas, naquele momento, vivi sem querer o agora que ainda me demora no dente.