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ansiedade meu amor
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a tragédia começa no nariz

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Tenho o nariz entupido. Tenho medo de morrer. Um clássico, eu sei. Sou homem e os homens não podem apanhar uma gripezinha que ficam logo não sei quê inserir clichê dito por mulheres que são todas muito fortes. Eu não sou. Nem mulher nem forte. Não neste caso que, para mim, é de vida ou morte. E não me ajuda nada falar ou escrever sobre isto porque, falando ou escrevendo, estou a lembrar-me constantemente de que tenho o nariz entupido e de que, ordem natural das coisas, vou morrer. Então falo e escrevo sobre isto, que esperteza. Acho que nunca nenhuma pessoa morreu por ter o nariz entupido, mas eu tenho sempre a forte convicção de que eu serei a primeira. Por isso é que, há coisa de meia hora, depois de ter passado o efeito de umas super gotas, saí do quentinho da minha casa para partir em busca de uma caixa de victans. Se é para morrer por culpa do nariz entupido, ao menos que esteja drogado, a dormir. Também encontrei uma pomada toda ninja. E tenho livros e um gato e um caderno onde aponto o que encontro e me apetece guardar. «”A comédia começa nas pernas”, Jacques Tati». (Só aponto o que encontro no caderno, não no gato, por vezes nos livros.) Sou capaz de morrer um dia destes, nunca se sabe. Já sei. A tragédia começa no nariz, André Pereira.

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não sou de lugar nenhum

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Acho que escolhemos de onde somos pelo lugar onde gostaríamos de morrer. Eu não gostaria de morrer em lugar nenhum. Não sou de lugar nenhum. Nasci onde não estou. Morrerei no lugar onde não gostaria de morrer. Quando lá estou, no lugar onde nasci, sou de longe. Quando estou aqui, sou de longe também. Acho que sou sempre do lugar onde não estou. Nem é estar bem onde não estou ou querer ir aonde não vou. Não é isso. É não estar onde estou, é não ir para onde vou. O meu lugar é sempre lá, longe. Não longe de mim, longe daqui. E aqui é em todo o lugar. E eu sem lá estar.

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vitorino sem angústias

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Tenho a impressão de que o meu gato sabe tudo da vida e por isso é que não anda para aí com angústias sobre o que é ou deixa de ser. Limita-se a viver, e viver assim, desta maneira, parece-me ser demonstração de uma inteligência fora do vulgar, inteira. Desde que tenha comida e protecção, o meu gato está onde tem de estar, aqui, e é o que tem de ser, feliz. É, pelo menos, o que me parece. Tem, também, um ou outro coração que lhe dá colinho, festinhas e algumas palmadas – que tantas vezes merece, tantas vezes de mim -, e isso é capaz de ajudar à minha crença de que ele é feliz. Espero que sim. Ele não me diz.

Vitorino, a viver sem angústias – e com algumas palmadas, que tantas vezes merece – desde 17 de Março de 2016.

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não ter medo não existe

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Não ter medo não existe. Todos temos medo. Quem foge e quem luta. Quem diz que não tem medo não quer dizer que não tem medo, quer dizer que tem coragem. “Não tenhas medo”, “Por que é que tens medo?”, “Não sejas medricas” são frases de uma narrativa da fraqueza sobre o medo que nos é metida pela goela abaixo desde o berço. Ter medo não é fraqueza. Só é corajoso quem tem noção do perigo que enfrenta e que teme. Não é corajoso quem enfrenta o que não faz mal, o inofensivo. A coragem vem da noção da existência do medo, não da sua negação. Todos temos medo. Sobretudo quem acha que não.

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a aceitação do caos

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Tenho de aceitar este meu caos. Gostava, ou gostaria?, está bem das duas maneiras, mas uma é mais certa do que a outra, será que é certo afirmar que uma maneira é mais certa do que a outra?, não necessariamente uma maneira, mas alguma coisa ser mais certa do que outra coisa, assumindo que ambas são certas?, se ambas são certas, o que interessa além daí?, é como usar pontos de interrogação a meio de frases, ou letras minúsculas ou vírgulas depois de pontos de interrogação, será?, não sei, ou não usar pontos finais, cuspir na, pontuação; certa! e andar por: aí escrevendo o que bem me apetecesse da maneira que bem mapetcêsse, caraças, usei o gerúndio, adoro usar o gerúndio, pouca gente usa, dá a ideia de erro, mas só dá essa ideia a quem, não sabendo escrever ou não sabendo saber, que ainda é mais grave, é um erro, e agora estou a confundir quem me lê por não estar a acompanhar esta barafunda de, ora aqui está outra palavra bonita, barafunda, gosto, não sei bem por que razão, até porque, escrita, não é lá muito bonita, e dita também não é linda, mas é o que é, gosto da palavra, não tenho de arranjar uma justificação lógica para gostar dela, ou tenho?, como se o amor, oh não, lá vem ele falar de amor, não, não vou, porque agora emperrei, aqui está outra palavra gira, ou melhor, outra conjugação de uma palavra gira, emperrar, numa interjeição, é oh não ou ó não?, ou tem vírgula lá no meio?, eu acho que tem, mas não a usei, também não a vou usar agora, que já foi numa linha passada, perceberam a graça?, uau, muito giro, avançando, não saindo do lugar, a verdade é que gostaria, vamos manter gostaria, sim, de ser organizado, de ter a minha vida arrumadinha, as minhas meias, os meus apetites, as minhas palavras, os meus ódios, tudo ajeitadinho num degradê de cores, da mais escura para a mais clara, como se fosse uma mensagem subliminar para os fios condutores, possivelmente eléctricos, da minha vida, olhem lá, oh seus mandriões, ou ó seus mandriões, clareiem-me a vida, se fazem favor, ora aqui está outra conjugação bonita, estou cansado comigo. Tenho de aceitar, eu sei que tenho, eu juro que tento, mas não consigo.

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metáfora bonita da minha vida

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Hoje fui ao ginásio. Mas não fui, porque estava fechado. Metáfora bonita da minha vida, esta. Ando eu o ano inteiro em luta com a necessidade de sair da zona de conforto para, quando a consigo vencer – ou quando lhe consigo ceder, dependendo do ponto de vista -, olha, afinal não era preciso, desculpa lá o incómodo. Ridículo, isto. Tanto isto de eu não ter confirmado os horários do ginásio, como isto da necessidade de sair da zona de conforto. Que necessidade? Qual é a ideia? Ir para uma zona de desconforto? Porquê? Eu quero estar bem, quero estar confortável, portanto, quero estar – rufem os tambores para esta bomba nuclear ao nível da lógica – na minha zona de conforto. Ai, mas eu gosto é de estar na minha zona de desconforto, diz um iluminado do poder do agora e das terapêuticas do caralhinho. Não, não gostas, digo eu. Primeiro, porque é uma contradição linguística que eu não vou estar a dissecar por ser demasiado óbvia. Ok, vou dissecar, adoro dissecar o óbvio: se gostas de desconforto, é porque te sentes confortável com isso. Portanto, essa tal tua zona de desconforto passou a ser zona de conforto a partir do momento em que gostas dela. Segundo, porque é ridículo uma pessoa sentir-se bem sentindo-se mal. Pronto, é isto. Vou para casa. Mentira, já estou em casa. A foto é em minha casa. Ia agora fazer uma dissertação sobre o conforto com uma mochila ao ombro, todo desconfortável? Era o que faltava. Isso e vontade.

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não sendo imortal

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Sendo o universo infinito, sendo ele tudo isto, quando eu morrer, quando eu deixar de ser, não morrerei nem deixarei, direi que existo. Porque, nesse momento, tudo o que eu sou irá para algum lugar. Mesmo não dizendo nem sabendo se vou, vou lá estar. Não existe lugar nenhum – assumindo que tudo é permanente. Portanto, serei um que será tanta gente. Serei assim, igual – este conflito. Mesmo não sendo imortal, sou infinito.

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clareza: o falhanço

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Julgo sempre que falhei. E, sim, talvez tenha falhado. Não deveria ter dito, ter feito nem ter estado. E o efeito de tudo isso é este julgamento constante onde estou sozinho e sou bastante. Tenho este compromisso de desilusão e balanço entre a dúvida e a certeza do que aconteceu. Mas sempre com esta clareza: o falhanço sou eu.

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sou ironia (nada)

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Sou uma pessoa muito humana, amiga do seu amigo, que está de bem com toda a gente. (menos consigo) Sou muito humilde e tenho a mania da perfeição. Estou sempre contigo. (comigo é que não) Sou muito frontal, sou dono de mim. Sou apaixonado pela vida. (embora mais pelo seu fim) Sou a minha melhor versão, a minha arma é o sorriso. (sou vítima do que quero e não do que preciso) Só me atrevo a escrever aquilo que não sou. Quando escrevo, sei não ser e recebo mais do que dou. Sou um sonhador, um perfil de fachada. Sou ironia. (nada)

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eu com ele, onde ele não há

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Para eu estar num lugar, tenho de estar na iminência de o deixar. É uma urgência que tenho em mim, estar. Mas só estou se sentir a dor da perda por antecipação. Só estando, não. E o lugar pode ser casa, café ou coração. É tudo aquilo que é e que eu só quero quando estou a perder. E, depois, quando ele não está, estou eu com ele onde ele não há, longe de mim. Para eu estar num lugar, tenho de estar na iminência do seu fim.

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o dia são tambores

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É o barulho. Tudo é barulho. O sol, o almoço, o vento, o cheiro, os cafés, os cães, as janelas, os cigarros, os carros, os pensamentos, as cores, os sorrisos, as flores, a rua, a estrada, a escada, o passeio a pé. Nunca sei o que ouvir porque oiço tudo como tudo é. Porque oiço tudo, se tudo é? Se o tudo fosse leve… mas o tudo são dores. O dia não me serve. O dia são tambores. Não quero ouvir tambores. Não quero ouvir estrondos no peito. Mordo o dedo indicador e fica a marca. Aceito, e sinto a carne e o osso ao morder. É uma espécie de grito contra mim. Mordendo, vomito, e doendo e aflito vou sendo o que grito, uma espécie de aproximação do fim. Culpo o dia, mas a culpa vem de mim. Não devia, não sejas assim… Sou, e ela é minha. E eu só verdade. Mas só à noitinha, quando me chega a saudade.

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uma espécie de batota

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Quem me vê sozinho, não me vê sem um livro. Ando sempre com um para não me sentir apenas um – por medo do vazio aonde isso me possa levar. Andando sozinho, com um livro, não ando sozinho. O livro é-me companhia, é-me bóia de salvação para quando começo a ficar sem forças por falta de talento para estar assim, só eu, em mim. É uma espécie de batota, eu sei, andar com alguém que não é alguém, que é só papel, mas sem ele custa mais andar, estar e permanecer quando ando, estou e permaneço sozinho – que, em boa verdade, é quase sempre. Mesmo quando estou acompanhado sem um livro. Com gente.

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o silêncio faz parte

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E agora? O que é que eu faço? O que é que eu digo? Sorrio? Não sei sorrir. Desvio o olhar e a atenção para outro lugar? Finjo não estar? Como é que eu posso fingir não estar se toda a gente me vê? Para fingir não estar, tenho de estar. Se não, não seria fingimento, seria realidade. E todo este momento não seria momento porque seria verdade. É melhor não ser. E eu não sei. Não sei quem sou nem sei quem são estas pessoas que me olham. São más? São boas? Podem acumular ambas as condições – são pessoas, não são soluções. E eu sou outra pessoa. Ou outras, uma só, multidão… Por enquanto, sou tanto. Um dia, serei pó. Tudo em vão. O que é que eu sou? O que é que eu faço? O que é suposto fazer? (além de esconder o embaraço de não saber) Poesia… Deveria dizer poesia. Aqui, em cima destas mantas, perante estas pessoas que eu não conheço. E são tantas! Poesia… O que raio é isso? O que tem de ser? É rimar? Ou é só parecer? “Arte”… O que é que eu vou dizer?

Respira, André. O silêncio faz parte. A poesia é também o que não é. Como o amor, o vazio, a fé. Sorrio, é melhor sorrir. Sim, mesmo não sabendo como fazer. Acho que é assim. Pelo menos, vejo pessoas a sorrir para mim. Deve ser por compaixão. Umas olham, outras não, e eu em revolução por não saber fingir. Nem sorrir. Tenho de me mexer! A mão. Sim, a mão! Faz qualquer movimento com a mão! Abre. Fecha. Abre. Fecha. Não. Deixa… Não faças nada! Tens de falar. Sim, fala! Diz qualquer coisa, abre a boca, mostra os dentes, ajeita o cabelo, aclara a garganta e diz o que sentes. Não deixes que a ansiedade te obrigue a calar. Tens de falar! Não quero falar. Não quero estar aqui. Quero chorar… Sorri. Não consigo. Sorri! O que é que eu digo?! Falar, ou o ensaio para a fala, cansa-me o peito. Se calhar é defeito de fabrico o meu peito querer sempre fugir do lugar onde eu fico. E eu fico aqui. Sorri. Não consigo. Sorri! Não tenho jeito… O meu peito manda e anda e corre e quase morre de cansaço. E agora? O que é que eu faço?

Sei sempre o que fazer. Tudo! Nunca fico calado, parado, mudo, à espera que algo aconteça. Não sou desses malucos que ouvem vozes na cabeça. (embora pareça, eu sei) Como se desse para ouvir vozes noutro lugar que não na cabeça. No umbigo, no pé, no braço… Sou tudo aquilo que digo e não digo, sou o André, só não sei o que faço.

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eram gentes escondidas

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Duvido sempre de definições. Eu, que nunca soube quem era, mas que julgava ser alguém, dou por mim, agora, a ser ainda alguém, sendo outro que não o que julgava ser. Sempre me achei alguém com medo de gente, de praia e de solidão. Julgava ser assim. Parece que não. Hoje vim à praia conhecer gentes que ando a escrever de livre vontade, por trabalho e por amor. Não as conhecia, fui eu que as quis conhecer e escrever. Pisei a areia, fui ao mar. Sempre pensei que fossem duas coisas que eu iria sempre odiar. Parece que não. Senti-me bem sozinho, andando devagarinho, sem pingo de solidão. Enfrentei, como tenho tentado quase sem querer, alguns medos ou receios ou ilusões de tudo aquilo que eu julgava ser. Definições indefinidas do que eu achava de mim. Eram gentes escondidas. Parece que sim.

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eu sei que é um gato

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Os nomes dos animais só são nome de gente para a gente corajosa. Perder um Vitorino dói bem mais do que perder um Pantufas. Aconchegar um Vitorino ou um Pantufas, pelo contrário, aconchega-nos de igual modo. A coragem está no enfrentar da dor e não no enfrentar da alegria. Esta coragem de dar nome de gente a um animal nasce, no entanto, de uma cagufa da solidão. O meu gato, tendo o nome Vitorino, sendo um nome de gente, é um gato que transporta todo o peso, não sendo, de ser gente. Se fosse Pantufas, seria um gato, não poderia ser outra coisa, sendo Pantufas. Não é o problema de ser gente ou de ser gato, é a questão de ser gato sendo gente ou de ser gato sendo gato. E a verdade é que os gatos são gatos sendo gatos, sempre, apesar de todas os jeitos de gente que os donos dos Vitorinos lhes possam dar. Nós, eu, é que lhes atribuímos nomes de gente para alimentar a ilusão de que eles não miam mas falam, de que eles não nos adormecem em cima pelo calor mas pelo carinho, de que eles não são gatos mas são gente. E gente precisa de gente, ou de ilusão de gente, para se sentir parte. O meu Vitorino é um gato, eu sei que é um gato, mas é gente. E eu para aqui todo medricas cheio de coragem.

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robocop vs. ansiedade

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Estou aqui com uma dúvida. Quem acham que venceria esta luta: o Robocop ou a minha ansiedade? Por um lado, este meu estado é muito forte na previsão de qualquer golpe. Por outro, gasta muitas energias a combater inexistências. Já o Robocop é uma máquina de guerra e tem uma pontaria dos diabos. No entanto, é mais chapa do que carne. E segue um pensamento lógico. E é previsível. E não tem coração. Robocop. Sim, o Robocop. Ganha o Robocop.


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não sei do meu caderno

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Não sei do meu caderno e não sei onde ele está. Sei que não saber onde ele está é a definição de não saber de, mas, ao dizer que não sei onde ele está, digo que sei que não está nesta realidade, está noutra, ele ainda agora estava aqui na mesa, junto ao portátil e agora não está, peguei nele, no caderno, e, de um momento para o outro, é sempre de um momento para o outro que as coisas acontecem, desapareceu. O meu escritório é pequeno e ele não saiu dele, do escritório, talvez tenha saído dele, do caderno, sendo agora outra coisa que não era, que era caderno. Mas aqui não está. Procuro em lugares onde não cabe o meu caderno, nem metade do meu caderno, nem metade de metade do meu caderno, vou com as mãos a sítios que já olhei por desconfiar de que não estou a ver bem. É muito aflitivo não saber como se traz uma coisa que foi para uma outra realidade por não se saber, lá está, como se vai para outra realidade, e essa coisa lá está, e eu aqui, sem saber dela. Repito movimentos de mãos e de pés, repito lugares, repito pensamentos e o caderno continua sem estar. Eu tenho a certeza de que ele não está, porque não o vejo. As coisas não estão se não as vemos, mas, se não estão, continuam a ser ou deixam, também, de ser por não as vermos? Se deixa de estar, pode não deixar de ser, mas, se deixa de ser, deixa de estar. Resta saber se continua a existir, ou sendo e estando ou estando e sendo ou não sendo e não estando. O meu objectivo já nem é encontrá-lo aqui, é ir ao outro lado buscá-lo. É essa a minha aflição, como é que eu vou lá? E vem outra, como é que eu o trago de lá? Como é que se abre a porta da realidade paralela? Será paralela? Se fosse, não tocaria nesta e não me levaria o caderno. Não, não é paralela. Como se vai? Como se entra? Há bilheteira? Onde é? Onde está? Se calhar não há e é tudo invenção minha. Vá, distracção de pessoa habituada a ser e a estar sozinha. Não sei de nada, não aponto nada. Só no caderno que não tenho. É nele que aponto o que fiz. Se eu não o encontro, não encontro o que fiz, se não encontro o que fiz, não fiz nada e não posso fazer nada porque o futuro passado do que faço deixa de existir. O que é que eu faço? Quem sou eu? O meu caderno?


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na ilusão de pertença

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Preciso de likes para continuar a viver na ilusão de pertença e de companhia que a constante aprovação externa me dá porque a interna é uma merda talvez nem exista por ser de um ser demasiado exigente que por medo de falhar aos outros mas essencialmente a si mesmo deposita toda a responsabilidade do seu bem-estar em duplos toquezinhos de dedinhos de seres aleatórios que muitos deles não conhece além do ecrã e que chama de amigos mas que não são mais do que seres aleatórios que fazem duplos toquezinhos com os dedinhos num ecrã numa foto de alguém que não conhecem ou que apenas conhecem da internet e que por isso não sabem quase ninguém sabe se a pessoa está feliz triste apática gorda ou com vontade de gritar e de fugir porque não sabe lidar com esta constante necessidade de se mostrar para existir sabendo no entanto que não é mostrando que existe mas que por vezes não resiste à tentação de uma enxurrada de likes para lhe matar a fome à ilusão. Obrigado.

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deste nó que me é descalçar

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Não sei se é falta de tempo se de vontade mas, sempre que me descalço, tenho pressa no momento. Não sou capaz de me parar, de me sentar, de me inclinar, de me desatar deste nó que me é descalçar. Piso os calcanhares, um por um, claro está – que a impossibilidade ainda não me é permitida, chuto o que calço à baliza invisível e deixo, descalço, o calçado ao deus dará. Ao ladooo! Ao voltar, é que é tramado. Os reencontros são sempre tristes, isso é sabido. Lá está eu e o calçado, cada um para seu lado com nós por desatar. O jogo regressa, jogo perdido. Tanta pressa, tanta pressa, mas tenho sempre de parar.

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penso que sou pouca coisa

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Olho para dentro como se dentro fosse o único lugar. E dentro é como se fosse sempre o passado. Olhar para fora, para os outros, para o mundo, para o acaso, para o indefinido, é olhar para o futuro. E isso custa-me. Sinto que tenho mais atracção por dentro. Entro sempre neste processo quando são accionados gatilhos: a lembrança de qualquer lugar, a minha presença com alguém, a minha diferença (quase fraqueza) de, ao estar com os outros, não estar com ninguém. Isso faz-me sentir que estou em falha, que estou a perder tempo, que não vou encontrar, que o melhor é voltar. E, se o melhor é voltar, vamos arranjar o que está. Mas nunca há real vontade de voltar. Pelo menos, não por inteiro. É sempre a vontade de voltar a ter momentos, sentimentos que lá ficaram e que, por qualquer motivo, tenho medo de que se tenham perdido. O passado passou e parece que desapareceu. Se os sentimentos já não se sentem, é porque já não existem. Este processo de ruminação, de me olhar dentro em constante loop, faz-me reviver esses sentimentos, faz-me mantê-los vivos, como se eu quisesse, constantemente, confirmar a existência do que aconteceu e, talvez em última análise, confirmar a existência de mim mesmo, do que sou. Porque penso muitas vezes no que sou e, por vezes, penso que sou pouca coisa, que sou só presente e que tudo passa a correr, que não há espessura temporal, e que a vida é “só viver”. Tenho a necessidade de me sentir robusto, cheio, convicto do que sou e do que já conquistei na vida. Mas pareço-me sempre um conjunto de fragmentos dispersos à procura de uma cola qualquer que os junte. Estou sempre à procura no passado – que é, talvez, o sítio errado.

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se não doer, minto

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Voltei ao dentista, voltou a dor, voltei a pensar. Da próxima vez que lá for, gostaria de não estar. Estaria o corpo, estaria eu, mas não estaria a consciência de mim. Assim, sentado, lá estaria um não-eu anestesiado. Mas corpo inteiro, não parcial, que eu sinto sempre o que doeu e o que não doeu, falso ou verdadeiro, porém, sempre real. Dói mais o medo da dor do que a dor em si, e eu cedo ao que for sem saber de mim. Assim que sinto o que realmente é, há desilusão por não ter sentido o que previa e alívio por ter sentido tão aquém. Ainda bem, mas porquê a previsão? Não queria sentir constantemente este medo pela dor do dente que já nem sinto. Se doer, penso. Se não doer, minto.

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na morte é que não

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Acreditamos na ressurreição, na morte é que não. Por isso é que acreditamos. Inventamos. Ressurreição é contradição, falsidade, ilusão, vontade de dar sentido à nossa aflição. A morte é fim e não suportamos que seja. Porque o fim aleija quem fica pela ausência de quem foi e pela iminência de ir também, de deixar de ser, e isso dói. Isso é morrer, e nós não suportamos deixar. Acreditamos que tudo vai continuar noutro lugar, que somos imortais pela suposta importância de sermos reais, de existirmos, de termos de ter alguma razão para aqui estar. Mais vale desistirmos, o que somos é ser e a razão é estar. Estamos errados. É por isso que acabamos, todos os anos, crucificados.

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pelo abismo da aflição

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Fui ao dentista. Tive dores e pensei. Penso muito quando tenho dores. Tenho muitas dores quando penso. Estava eu vulnerável, com uma broca a perfurar-me um nervo qualquer do molar, quando pensei, doendo, no tão na moda “viver o agora”. Raramente vivemos “o agora”. Diria que sim. A sociedade corre e nós corremos com ela, como sem fim. Não aproveitamos o filme que estamos a ver, o sofá onde estamos sentados, o sol que nos aquece, pouca coisa, nada nos apetece. Estamos constantemente neste estado ansioso de futuro constante que não nos larga. Isso é verdade – eu estou sempre além longe do agora, mas também é mentira. Eu, com aquela broca a perfurar-me um nervo qualquer do molar, estava a viver o agora. Queria pensar no passado ou estar já a viver a chamada que iria receber mais tarde, mas não. Estava ali, naquele momento, inteiramente de corpo e pensamento, a sofrer. E isso fez-me pensar, doendo, que nós, de facto, vivemos o agora. Mas só se o agora for dor. Se não for, sendo prazer ou coisa indiferente, passamos à frente em busca de nova dor onde ancorar o pensamento. No passado ou no futuro, tanto faz, mas sempre em movimento. Há pessoas que não, certamente. Mas há pessoas que sim, como eu, que têm uma espécie de atracção pelo abismo da aflição. Uma atracção que não é voluntária – eu não quero viver a broca a perfurar-me um nervo qualquer do molar, mas que vem de mim. E não sei se o problema é ter inclinação para viver a dor ou não conseguir sequer viver o prazer – ou até mesmo a coisa indiferente. Mas, naquele momento, vivi sem querer o agora que ainda me demora no dente.

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alerta giveaway de ilusão

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Sou uma pessoa de manhãs. Acordar cedo é uma das bênçãos que deus nosso senhor me deu com a felicidade no rosto de um dia que está a começar e que me dá a linda luz da vida que se vive agora neste momento agora mesmo porque o passado já foi e o futuro não vem e sinto-me muito grata por ser assim e estar neste mundo que é este e por ter as minhas friends que são estas também lindonas como eu que me acompanham neste caminho que se faz caminhando com deus no comando e a deusa shiva da nutrição deitada em posição de pombo daltónico no meu chacra do meio sou dona do meu tempo e eu sou o meu mesmo próprio universo sou feliz e agora vou meditar e sorrir e espalhar alegria por toda a gente que não come carne de porco viva a beterraba e a soja. E tu, vais escolher a felicidade? Olha para dentro e sente tipo com o coração. Alerta giveaway de ilusão.

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somos o teria sido

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Conheço quem já tenha desistido da vida. Quem já não se importe com nada. Quem já não saiba sequer quem é. Se soubesse, certamente se lembraria de que, quando era quem não é hoje, queria ser feliz. Não sabe, então não se lembra, então não é feliz. O sonho é uma daquelas merdas que vai e vem. Nesta gente, foi e não veio. E a vida é apanhada no meio desta desistência da essência humana, a felicidade. Um homem vai perdendo sonhos com a idade. Já não vai a tempo de vestir o fato de astronauta, de ter uma banda de rock nem de ser o camisola 10 do Benfica. Então, o sonho vai, e o que fica é esse vazio de frio no dia-a-dia de quem se limita a existir. A respirar. A ouvir. A falar. A não ir. A ficar. Conheço quem já tenha desistido da vida. O que é fodido. Somos o teria sido. Em despedida.

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um descanso cansado

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A ansiedade pesa-me nos olhos. Como se tivesse chorado durante muito, muito tempo e, ao fim do muito, muito tempo, ao fim do dia, ao fim do choro, todas as lágrimas se acumulassem nas pálpebras e se deitassem. É um descanso cansado, por ter terminado, mas por ainda doer, por ter ainda cavalos a correr, e por eu ter corrido também, por estar sem. Vontade, energia, prazer. Ansiedade, mais um dia a chover.

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na ilusão da posse

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Vivemos na ilusão da posse. Nunca nada é, foi ou será verdadeiramente nosso. Nem a boca, nem o abraço, nem a patinha. Mas vivemos na ilusão de que é, foi e será. A boca, o abraço, a patinha. E, quando perdemos o que julgamos ter, vem a desilusão. Vã desilusão. E gritamos, entristecemos, choramos. Não por algo que tenhamos perdido, mas por tomarmos noção de que esse algo nunca foi nosso. Nem a boca, nem o abraço, nem a patinha. Não é uma desilusão com ela, com ele ou com ele. É uma desilusão connosco, que caímos no engano da conjugação-ilusão do verbo ter. Queda sozinha. Sem boca, sem abraço, sem patinha.

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na espuma dos dias banais

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Não é o sermos proibidos de estar com outros, é o sermos obrigados a estar connosco. Fechados em casa, abertos em nós mesmos, completamente escancarados, com ventanias de pensamentos a entrar-nos pelas portas e janelas da nossa casa. Vulneráveis a nós mesmos, ao que nos inquieta que nos navega no subterrâneo rio que vamos conseguindo ignorar na espuma dos dias banais. Não é o confinamento dos outros, é o encontro connosco. É o sermos obrigados a ser o que realmente somos. E a ver, a tocar, a falar, a ouvir, a cuidar de nós. Os outros vão-nos tendo, e sendo, sempre que nos ignoramos. Nós vamos vivendo, e crescendo e morrendo e renascendo, sempre que temos a coragem de estarmos, e sermos, com quem somos. Custa, faz doer. Mas custa mais o vazio, o deixar correr o rio, o não ser.

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a elis regina não tem razão

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Desculpa, Elis Regina, mas eu acho que já não somos os mesmos nem vivemos como os nossos pais. Essa é, até, uma das nossas grandes angústias. Falo da minha geração, mas falo por mim. Eles, os nossos pais, apresentaram-nos uma vida completamente diferente daquela que nós, que eu, levamos. Eu não casei aos 20 anos, não tive filhos aos 22, nem arranjei emprego para a vida aos 25. Não tenho uma casa em meu nome, não tenho conta na mercearia, nem álbuns de fotografias de vida em conjunto. A minha vida, apesar da felicidade de uma estrutura familiar feliz, está fragmentada em memórias dispersas e descoladas. Desde que saí de casa, tive amores, paixões, desilusões, recibos verdes e casas arrendadas. Pouco mais. Não tive a capacidade de construir, nem de ajudar a construir, um único castelo onde pudesse fortalecer raízes de uma vida em linha recta, sem zigue-zagues de percurso. Os castelos que tenho são pequeninos, e muitos são de areia com bandeira a meia-haste. São vários os lutos por que tenho passado por não conseguir ser o que sonhei e por não conseguir ser o que são os meus pais. Sei bem que são outros tempos e que são outras pessoas. Eu, curiosamente, sou eu. Não sou os meus pais. Nem eles querem que eu seja eles. Mas também não é isso que me impede de ouvir constantemente um grito de angústia a ecoar-me nesta imensa sala da existência. Fracasso, desapontamento, e o cansaço de não saber se algum dia saberei ser como sonhei. E o tempo passa, cabrão do tempo, e os cabelos vão caindo, as vontades morrendo e a barba branqueando, e eu cá vou andando, com a memória carregadinha de estilhaços, alguns deles maravilhosos, mas estilhaços, pedaços que cabem numa caixa de sapatilhas e não cabem no coração. Bater de frente com a realidade da minha existência dói, inquieta e angustia. Por não estar onde eles estão, por não saber onde estou e por não saber para onde vou. Mas é precisamente a dor, a inquietação e a angústia que me estimulam na vivência do desconhecido. Por não estar onde eles estão, por não saber onde estou e por não saber para onde vou. O sonho é um lugar bonito onde estar. Mas, por vezes, não. E é aqui, Elis Regina, que te dou razão: viver é melhor que sonhar.

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o vazio da vida

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O vazio da vida é mais vazio, menos vida, ao domingo. Mais vazio, menos vida ainda, hoje. As ruas desertas, as nuvens estendidas, as pessoas fechadas, os astros alinham-se para um recolher interno obrigatório onde apenas estamos nós com o nosso silêncio, que é o nosso ruído, e os nossos fantasmas. E é quando nos recolhemos em nós próprios que damos de caras com o pesado vazio que carregamos e que a vida carrega. O aconchego do sofá não se sente além do corpo, a alma – ou a mente ou o que for que nos faz sentir – deveria recostar-se e aproveitar a incontrolável e inevitável inércia da vida, mas só se agita, só se inquieta, só se torna mais só e, por mais só, mais nossa, mais grita e mais nós a ouvimos. E ouvi-la, que é ouvir quem a tem, que somos nós, é abrir as portas ao vazio. Julgamos ser tudo, somos tudo, e, por julgarmos e por sermos tudo, não sabemos lidar com o nada que também nos existe. O confronto dói porque é raro, porque, sempre que ele nos espreita, nós ignoramo-lo e vamos fazer a nossa vidinha das nove às cinco, tomamos o café que não saboreamos, assistimos ao jogo que não nos interessa, falamos com as pessoas que não nos questionam, comemos a sopa que não nos sabe a nada, vemos o episódio que não nos estimula e vamos para a cama que nos adormece. A espuma dos dias afasta-nos do vazio, mas também nos aproxima dele. Porque, quanto mais o evitarmos, maior ele se torna quando, inevitalmente, ele nos aparecer. Como hoje. Aconchega-se, desaconchega-nos e fica, não foge, até nos adormecer.

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não és tu, sou eu

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Não és tu, sou eu. Entendes, mundo? Tudo o que me magoa está cá dentro, não aí fora. Tu não tens nada que ver com isto. Tu existes com as tuas pessoas, as tuas ruas, os teus rios, as tuas auroras boreais, os teus sismos, os teus vírus, por aí fora. Eu é que, por vezes, não sempre, não consigo existir com as pessoas, as ruas, os rios, as auroras boreais, os sismos, os vírus e por aí fora que eu tenho por aqui dentro, que, na verdade, eu sou. Não és tu, mundo. Nada tens que ver com as minhas euforias nem com as minhas quedas para melancolias. Nada, sou eu, está tudo em mim. Tudo o que amo e tudo o que odeio está em mim. E eu preciso de saber lidar com isso, e isso sou eu. Quando digo a alguma pessoa que a amo ou quando mando alguém para o caralho, estou, apenas, a projectar coisas lindas ou merdas que vão cá dentro. Amo o outro, odeio o outro, amo-me, odeio-me. Acho que é assim que funciona. E funciona lindamente quando é o ódio a mandar. A culpa não é dos pretos nem do trânsito, não é dos chineses nem do tempo, a culpa não é de nada nem de ninguém. Sendo, talvez seja nossa, que a inventamos para podermos justificar comportamentos que não têm justificação, e cuja causa não queremos destapar. Não queremos saber o porquê de odiarmos. Nem sequer queremos saber o quê ou quem odiamos. É ódio e pronto, nada mais interessa. O que eu acho, e eu não tenho qualquer autoridade para atribuir valor ao que eu acho, é que nós vivemos para os outros um pouco como espelhos de nós mesmos. E que a sujidade das palavras, os dentes cerrados e a saliva a espumar na boca são meros reflexos do que se passa dentro de cada um de nós. Não és só tu, também sou eu.

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voltar ao que ainda tenho

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Voltar a Lisboa, mesmo que por brevidades, é voltar ao que ainda tenho escondido debaixo do tapete das vontades. É dar de caras com fantasmas que ainda existem, dormindo, e, devagarinho, dizer-lhes acordem, acordem, vamos brincar àquele jogo do chorando e rindo, combater memórias como se fosse dança, ir ao chão como nas histórias sem vitórias, sem vingança. Criança que me sinto neste parque infantil do terror, do medo, da culpa, do amor e do ciúme. De tudo o que há de certo e de errado, que este aperto é como lume, e eu queimado. Voltar a Lisboa é ir por um caminho sujo com destino à luz clarinha, ao céu, ao rio quase mar. Mas ainda volto devagarinho, que esta dor ainda é minha, e ainda me custa voltar.

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estar longe

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Há um grande equívoco nisto do vírus: a promoção do distanciamento social. Um engano. Não é o distanciamento social que devemos incentivar, pedir, desejar até. É o distanciamento físico. Físico. Devemos evitar a aproximação de corpos, sim, não a aproximação de conversas, ideias, discussões, carinhos, preocupações, vontades. Os cartazes de rua e as manchetes de jornal não deveriam obrigar ao afastamento social, mas sim à aproximação social. O afastamento de mãos, de braços, de bocas, sim, tudo bem, que é isso que, de facto, transmite o vírus. O afastamento de tudo o resto que há além disso, não, que é tudo o resto que há além disso que transmite o que somos. Acho mesmo que deveria haver, ao contrário da errada medida que é imposta, um incentivo à aproximação social. Nunca, aliás, foi tão necessário, tão indispensável, tão essencial aproximarmo-nos uns dos outros. Estamos longe, caraças, cada vez mais longe. E claro que não falo da aproximação de peles, que isso é o menos importante quando nos tocamos. Distanciamento físico de dois metros, aceito, distanciamento social de menos dois, a ponto de, não só tocarmos, mas entrarmos no outro, irmos lá dentro, sem tocar, e falar, perguntar, ouvir, acariciar e existir, quero. Aproximemo-nos socialmente, mesmo sem tocar, que o vírus só nos afasta dos corpos, não daquilo que temos dentro, e que nos faz ser. E sonhar.

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não consigo a vida

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Preciso de ajuda, assim não consigo a vida. Há quase três anos que disse estas palavras, por esta ordem, com esta boca. Preciso de ajuda, assim não consigo a vida. Nem ver, nem ouvir, nem tocar, nem brincar, nem sorrir, nem estar, nem ser. A vida, não conseguia a vida. Ela mesma, eu próprio. A sala de consultório sempre me intimidou um pouco. O silêncio, as estantes carregadas de livros, os cadeirões ao fundo, junto à janela. Pouco a pouco, fui deixando de dar por ela – como se fosse ela o que eu sou. Nela, ou em mim, fui dizendo palavras que eram palavras, crenças e fantasmas. Na penumbra dela, ou na escuridão de mim, dei-me a mão e permiti-me entrar, mexer, escavar, cheirar, tocar, lutar, provar, cuspir, engolir, morder, gritar. Não tem sido uma maravilha, não, mas tem sido uma descoberta, de porta aberta, pela ilha que eu sou, em que me tornei. Não sei por onde vou, não sei para onde vou, sei que vou, isso sei. Mais nada. Tenho, ainda, muita lama nos meus pés, muita merda que me chama e me seduz a ser errado. Mas também acho que tenho, que estranho, coisas bonitas em todo o lado. E é o que me faz continuar, saber que eu posso ser quem quero ser, sabendo, primeiro, o que me há no interior – e o que é isto do querer. Acho que há amor. É só voltar a aprender.

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só de olhos fechados

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Deveria haver um Tinder só connosco. Com mais ninguém. Só nós mesmos. Nem outras mulheres, nem outros homens. Só a mulher ou o homem que nós somos, que cada um de nós é. Cada um, por inteiro, embora partido – só está aqui quem está partido – à procura de si mesmo. Não à procura de alguém para uma foda, mas à procura de alguém – que somos nós – para uma conchinha. Seria tudo, e o tudo, pelo pouco que nos temos dado, poderia ser tão pouco como um tanto de um olá, de um sorriso ou de um olhar. Não precisamos de muito mais quando o que nos damos é tão menos. Haveria uma app, igualzinha à outra, mas invertida, mas obrigatória, com pesquisa imediata. A distância máxima seria a mínima, a localização seria aqui, cá dentro. Em loop, apenas nós. André, 35 anos, a 0km daqui. Fotos em tronco nu, fotos com um gato e fotos a realçar os olhos azuis. Mas todas a preto, sem se verem o tronco, o gato nem os olhos. Só faríamos swipe right se estivéssemos dispostos a ver o escuro. Só haveria match se estivéssemos dispostos a ver o escuro além do escuro. Apesar de tudo o que envolve um primeiro encontro – da ilusão ao medo, do prazer à queda. Um blind date de realidade – que só de olhos fechados nos conseguimos olhar, tocar e ser. Com verdade.

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feitos de escuro

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Somos seres feitos de escuro. Seres sós. Os tecidos, os órgãos e os sistemas do nosso corpo são apenas coisa irrelevante que nos limita o constante do futuro, não são nós.

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