tudo em todo o lado
Ainda não vi «Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo». Mas vi «Indiana Jones e o Templo Perdido» mais de duzentas vezes. Sem exagero. Quando andava na quarta classe, chegava a casa, pegava na cassete VHS e via o filme. Todos os dias. Todos. Os. Dias. E obrigava toda a gente que estivesse comigo a ver o filme também. Sei as falas de cor. Os gritos, as danças, os sustos, os arrotos, um, de um tipo após chuchar um escaravelho ao jantar, os abraços. Voltar a ver o miúdo a abraçar o Indiana Jones é voltar a ser o miúdo que andava na quarta classe, que chegava a casa, que pegava na cassete VHS e que via o filme. Todos os dias. E tomar consciência de que isto da vida passa rápido como o raio. «Fortune and glory, kid. Fortune and glory.»
o joker somos nós
Arthur Fleck é um homem sozinho, triste, desapontado, deslocado, marginal, louco, puro e real. Arthur Fleck é Joker. O Joker somos nós.
Arthur Fleck não encaixa na sociedade. É um homem que grita sem ser ouvido, e, precisamente por gritar sem ser ouvido, grita para dentro de si, onde faz eco, pois o dentro é tão grande e tão vazio. E o vazio ocupa-lhe tanto espaço que, quando inflama, sai por todo o lado e atropela toda a gente. Pela boca, pelos olhos, pelos dedos, quem ama, quem odeia, quem não conhece.
É por isso que Joker, o filme (e Joker, o palhaço) nos deixa tão desconfortáveis. Joker, o palhaço, sofre da doença de rir em descontrolo, mesmo em momentos inoportunos. Joker, o filme, faz-nos rir em descontrolo, mesmo em momentos inoportunos. Quando ele ri no metro, quando ele vai contra a porta no hospital, quando ele mata em casa. É nestes momentos, e em tantos outros, que vestimos a pele (e a doença) de Joker, o palhaço. Rimos, metemos a mão à frente da boca e pedimos perdão pelo riso. É isto que acontece. Sempre. Por nos sentirmos a trair os nossos alicerces do bom e do mau, por não os sabermos distinguir e, até mesmo, por os negarmos.
Joker, o palhaço, faz o que grande parte de nós, em algum momento, em algum lugar, gostaria de fazer – por se sentir deslocado, por não poder mais. Joker, o palhaço, vai lá aquele sítio sombrio da nossa cabeça e diz olá. E nós adeus, dizemos olá de volta e ficamos nestas voltas inquietas à volta de nós mesmos. Isso incomoda-nos. Não gostamos que se saiba, não queremos que ninguém saiba. Mas sentimos, muitas vezes, o mesmo e temos, muitas vezes, o medo.
Olhamos Joker, o palhaço, e olhamo-nos ao espelho – e lá estamos nós, carregadinhos de maquilhagem. Joker, o filme, é uma obra-prima porque nos agarra pelas entranhas e faz o que quer com elas e connosco, porque nos inquieta e nos engana, porque nos atira à cara com uma prestação brilhante de Joaquin Phoenix – o Óscar não chega. Joker, o filme, brinca connosco. Joker, o palhaço, é o brinquedo. Somos nós a piada. O Joker somos nós.
rami rhapsody
Um filme fraco, uma interpretação brilhante. Um filme que não valeria 5 minutos se não houvesse Rami Malek. Uma interpretação digna de Óscar para um filme digno de pouquíssima coisa.
É impossível (voltar a) ser Freddie Mercury, mas Malek assusta na forma como está tão perto de negar essa impossibilidade. O jeito de andar, de cantar, de mexer, de olhar, de quase tudo roça a perfeição. A história é conhecida, talvez por isso não haja qualquer surpresa ou perturbação que me tenha feito aplaudir o filme.
Tudo acontece a correr e quase nada é aprofundado como deveria ter sido. É um filme sobre a vida de uma lenda, não há tempo para mostrar as entranhas da vida dessa lenda, eu sei, mas deveria haver. E, devendo, não deveria ter havido filme. É um resumo de Wikipédia, vá. Mas o Malek, caraças, quase me fez acreditar no renascimento do Freddie.
Bohemian Rhapsody não é um filme. Rami Malek é o filme. E nada mais interessa, pelo menos, para mim.
pretos e brancos
Pretos e brancos a preto e branco. Não é a cor que define uma pessoa. Não é a cor que define um actor. Não é a cor que recebe um óscar.
Se há revolta na terra dos filmes por haver mais brancos a vencer óscares do que pretos, é porque (talvez por um assombro qualquer da realidade ou, até mesmo, por um temor lunático da lógica) tem havido mais brancos a representar melhor do que pretos. Mas é a primeira vez que penso nisto, eu não vejo brancos nem pretos, vejo actores, bons, maus, gordos, magros, altos, baixos, bonitos, feios, apenas actores, acho que é disso que se trata quando se fala de cinema. Pretos e brancos? Não, nem no resto da vida. Humanos, de várias cores e tonalidades, mas sem cor ou tonalidade que os defina ou que os sujeite a um tratamento diferente.
Os olhos de quem vê pretos e brancos, os olhos de quem vê mais brancos a receber óscares do que pretos, os olhos de quem organiza manifestações e boicotes tendo por base a cor dos candidatos, nomeados, vencedores e vencidos, os olhos de quem vê pretos e brancos são, tão simplesmente, olhos que olham a preto e branco, colocados num cérebro que pensa a preto e branco, por cima de uma boca que fala a preto e branco e por dentro de um vazio que existe (assustadoramente) a preto e branco.
O racismo é uma coisa linda, é a origem do preto e do branco, é o epicentro da dualidade, é o efeito da junção de dois contrários. Como o arco-íris.