barbie pantera
Lá vai, lá vem, o baloiço pela mão do pai, a menina pela mão da mãe. A mãe não está ali, apenas o pai a baloiçar a menina que sorri, e a mãe noutro lugar. A mão é só para dizer que a mãe, mesmo não estando, é como se estivesse a ser a menina baloiçando. Mas ela está sem ela, só com o pai, com mais ninguém. Talvez a mãe esteja à janela a ser menina também. Mas não sei dela, não a vejo. No parque, só a criança. O pai dá-lhe um beijo e a menina balança. Para a frente e para trás, para trás e para a frente, o balanço que o pai faz deixa a menina contente. Ela de cor-de-rosinha, ele de preto-escuridão. Uma princesa florzinha, um barbudo mauzão. Calças justas e rasgadas. Tatuagens e pulseiras. Correntes, brincos e espadas. Botas, anéis e caveiras. Leggings coloridas, bandolete nos cabelos. Palavras decididas e feridas nos cotovelos. Não as vejo, mas invento. Ela não pára sossegada. Parece nuvem, parece vento e parece já cansada. Vamos, já é hora, temos de ir almoçar. E a menina parece agora ter mais vontade de brincar. E ele, autoridade, deixa a menina brincar. Ele já teve aquela idade, ele também está a baloiçar. Com sapatilhas de luzes e revista da Barbie na mão. Na pele, desenhos de cruzes. Só falta a distorção. Volta a ser puto feliz, lembra aquilo que ele era. No dedo, um pequeno nariz. Nos ouvidos, Pantera. E toda aquela beleza, que ele lembra com ternura, dá o colinho à princesa enquanto ouve Sepultura. Mas é tudo normal. O baloiço vai e vem. De um lado, as forças do mal. Do outro, as forças do bem. Ali, no mundo inteiro, uma espécie de batalha entre um bonzinho metaleiro e uma rebelde pirralha. Na minha alma há um baloiço que está sempre a baloiçar. E eu vejo e eu oiço o que eu quiser inventar. E uma menina bonita sobre ele sempre a brincar. Se a corda se parte um dia (teria alguma piada), era uma vez a folia, fica a menina sossegada. Cá por mim eu mudo a corda. Ela não cai, não dói, não nada. Se a menina caísse, mais valia não escrever e esperar pela velhice, baloiçar-se sem querer. Mudar a corda era fácil, mas ela tem de crescer.
cortejo de um homem só
Ele sai de casa bem vestido, fato engomado, mãos nos bolsos ao comprido, como se fosse cantar o fado. Não canta, pouco fala, só um bom dia ou um boa tarde de vez em quando, em surdina, e lá vai ele andando, virando a esquina. Sempre muito direitinho e elegante, como se desfilasse devagarinho numa rua de Paris e, durante, assim de mansinho, fosse feliz. Não sei se é, nem sequer sei se parece, não dá bem para dizer, lá vai ele a pé e, quando vai, quase adormece, assim sem querer. Parece que vai num cortejo de despedida, sem caixão, talvez só o corpo que passeia. Lá vai ele pisando o chão, pisando a vida, calçada, terra, estrada, areia. De vez em quando, quando há, pára os passos, vê o que está, gente na escola, outra lá fora a falar, putos a jogar à bola, homens a trabalhar. Faz a vistoria às obras dali, como se fosse um fiscal de capacete amarelo, isso não é daí, aquilo está errado, mais para a esquerda, mais para o outro lado, e ao fundo o castelo. As mãos já não estão nos bolsos, agora atrás das costas direitas, um bocadinho curvadas, sempre estreitas. Por vezes, só imagina, julgo eu. Por vezes, só vê as tais ruas de Paris com as tais pessoas engomadas como ele num passeio que julga ser o seu. E ele feliz ou infeliz, não sei bem, não dá bem para dizer, lá vai, lá vem, lá anda a viver. Ali perto do fim, assumindo que ele vem para toda a gente, lá vai ele vivendo assim, lentamente. Talvez tenha vivido a correr, passando pela vida de raspão, e agora o que sente é só a vontade de ser o que lhe diz o coração. Ele ouve o peito, sorri, sem se perceber, e continua a direito, ali, só a ver. Como se esperasse o que lhe resta, e o que lhe resta é morrer. Mas sem pensar nela, na morte, que pensar nela traz mãos frias e má sorte. E ele assim deve andar, não pensando que ela vem nem sequer que ela existe. O que lhe interessa é caminhar, se ele começar a pensar, começa a ficar triste. Não vejo tristeza no meu vizinho. Vejo só delicadeza num homem que anda sozinho.
palavra de honra
JÁ NÃO HÁ PACIÊNCIA… para abacate. É abacate ao pequeno-almoço, abacate ao almoço, abacate ao lanche, abacate ao jantar, abacate na torrada, abacate no frango, abacate no soro da quimioterapia… Raios partam o abacate.
DETESTO… ter o nariz entupido e tomar decisões.
A IDEIA… é bastante polémica, não sei se o mundo está preparado para ela, mas cá vai: não sair da zona de conforto. Se é zona de conforto, e se conforto significa prazer, por que raio é que temos de sair de lá?
QUESTIONO-ME SE… é assim tão saudável eu questionar-me. Se não seria preferível eu andar por aí a fazer perguntas aos outros e não a mim.
ADORO… não ter o nariz entupido e tomar decisões.
LEMBRO-ME TANTAS VEZES… de jogar num campo que ainda existe, mas que o Presidente da minha terra diz que não.
DESEJO SECRETAMENTE… nada. Desejo sempre de forma pública. Um beijo, Lúcia Moniz.
TENHO SAUDADES… de ambientes que não são intimistas, de exposições que não são imersivas e de amigos que não são amigos dos seus amigos.
O MEDO QUE TIVE… quando, a 11 de Maio de 2013, vi o Roderick Miranda a aquecer… Confirmou-se.
SINTO VERGONHA ALHEIA… de quem leu este início de frase e disse vergonha alheira.
O FUTURO… a Deus pertence, claro está, visto que nem um nem outro existem.
SE EU ENCONTRAR… a palavra Liberdade no primeiro discurso de Paulo Raimundo como secretário-geral do PCP, inscrevo-me no Partido*. Até agora, ainda só encontrei as palavras Força 18 vezes e Luta 21 vezes. *10 vezes
PROMETO… uma feira medieval e uma cidade sobre rodas todos os fins-de-semana. Votem em mim!
TENHO ORGULHO… orgulho em ser uma vaca. (Assim mesmo, com dois orgulhos.) A frase não é minha. Nem de nenhuma amiga. É da Vaca Glória, da Rua Sésamo. É parte da letra de uma canção que está na minha cabeça desde os anos 90.
cultura nesta terra linda
O Jornal de Leiria insiste em dar-me voz. (Não entendo.) Desta vez, usei-a para escolher, sabiamente, a Personalidade e o Acontecimento de 2021 na área da Cultura nesta terra linda que é Portugal.
Acontecimento do Ano:
O lançamento da Lotaria do Património Cultural foi, sem dúvida, o acontecimento do ano. É certo que a Cultura não está bem, mas, sem esta raspadinha, é certo que estaria muito pior. É por isso que condeno, com bastante veemência (que é assim que eu gosto de condenar), quem diz que esta raspadinha é uma forma de deixar a Cultura à sua sorte. Nada mais errado. Está escrito na sua definição: “jogos de azar”. Nem a sorte nem a Cultura têm nada que ver com isto.
Personalidade do Ano:
Uma que são duas. Uma dupla personalidade, portanto. Uma que adora a Cultura, mas que prefere a Primark. Uma que critica o encerramento das salas de teatro, mas que nunca se sentou numa plateia. Uma que chora a morte de um escritor, mas que nunca leu um livro seu. Uma que acha que um músico merece receber mais, mas que prefere pagar-lhe em likes. Uma que vai para a rua gritar, mas só se a rua for o Instagram. Uma que fecha museus, mas que abre igrejas. Uma que se lamenta ao microfone, mas que só dá o microfone à bola. Uma dupla personalidade, portanto. E com tão pouco lá dentro.