capitão artur
PRAIA DO OSSO DA BALEIA
Eram sete. Resta um, Artur. Com a ideia de facilitar o acesso à Praia do Osso da Baleia, foi criada uma comissão de sete homens. Em 1977, começou a abrir-se caminho. Devagarinho, só aos sábados, mas com vontade de ver aquele sonho transformado em realidade. Artur orientava, e muita gente vinha, e toda a gente trabalhava. O almoço era por conta de Artur, e Artur conta que era um convívio bonito de se ver. Hoje, vê o caminho até à praia e não vê ninguém que o ajudou. Há gente que já não está, e a que está “não sabe quem sou, não sabe que fui eu que fiz isto”. Há mágoa, mas o orgulho é maior. “Dantes, vinha-se de carro de bois ou de tractor”. Ou a pé, para os mais aventureiros. “Eu vinha a pé. Só comecei a vir de tractor em 1968, quando a minha mãe me deu autorização”. Em 1969, Artur apanhou o barco para Angola. Esteve na guerra, mas não a viu. “Foi a vida melhor que eu tive. Nunca fui destacado para lado nenhum, nunca tive nenhum dissabor”. A única dor que sentiu foi depois de ter dado sangue para ajudar uns camaradas vítimas de um acidente. “Fecha a mão, abre a mão, fecha a mão, abre a mão… Aquilo era uma garrafa de cerveja cheia de sangue. Depois, deram-me uma bifana mas, nos dias seguintes, o corpo mordia-me por todo o lado. Com o tempo, lá recuperei. Deram-me um louvor e 15 dias de férias”. Voltou ao quartel e, mais tarde, voltou à terra. Teve uma empresa de cerâmica e outra de materiais de construção. Pelo caminho, abriu caminho até à praia. “Tomara eu ter essa idade e voltar atrás, mas o tempo não volta”. Eram sete. Resta um, Artur.
[uma parceria com a Rede Cultura Leiria 2027]capitão acácio
PRAIA DO BALEAL
“O mar era tudo para mim. Hoje, já não tenho capacidade para nada”. Acácio foi pescador, mariscador e nadador salvador. Apanhou robalos, douradas, percebes e gente. Hoje, apanha memórias que lhe navegam dentro. Lembra-se de ser menino e de ir com o pai para a pesca. Era feliz. Mas também se lembra de ser menino e de ir com medo para a escola. Era triste. Acácio sofria bullying. “Na altura, ainda não havia essa palavra, mas os mais velhos insultavam-me e batiam-me. Chegaram a atirar-me a bicicleta pela ribanceira abaixo”. Mas Acácio não caiu. Trocou a escola pelo pai e a matemática pelo mar. As contas, essas, foi fazendo-as ao longo da pesca. Havia dias em que apanhava mais de 200kg de percebes. Hoje, o limite é de 20kg por pessoa. “Ganhei dinheiro, mas também ganhei muitos sustos. Um deles veio numa onda que me foi buscar à rocha e me arrastou. Rasgou-me o fato, as costas, os braços e as pernas”. Foram elas que o traíram numa queda a transportar peixe no Prainha, o restaurante de família construído pelo pai há 60 anos. Foi operado, mas uma embolia pulmonar quase lhe tirou a vida. “O que me salvou foi eu ter os pulmões tão saudáveis por ter nadado tantos anos”. Sobreviveu, mas ficou parado. Das pernas e do que lhe ia dentro. “Eu chorava, chorava, chorava… Cheguei a ter consulta de Psiquiatria marcada, mas pensei: «tu és mais forte do que isto tudo». Fui dar umas voltas junto ao mar e atirei os problemas para trás das costas”. O mar foi mesmo tudo para Acácio. A vida, a queda e até a sua terapia.
[uma parceria com a Rede Cultura Leiria 2027]capitão albino
PRAIA DE SANTA CRUZ
Tinha 13 anos quando se atirou ao mar, pela primeira vez, para salvar alguém. Ela, uma miúda, estava aflita. Ele, um miúdo, também. Mas ele conseguiu, ela sorriu e cada um voltou à sua vida. A dele, na praia, começou ainda bebé. “A minha mãe costurava as barracas, o meu pai alugava-as. Aos três anos, já aqui estava com eles, a comer a papinha e a dormir a sesta”. O seu pai era o que Albino seria durante a vida toda, banheiro. “Às seis da manhã, já andava a montar as barracas e a limpar a praia”. Eram mais de 300 metros de extensão de areia e mais uns quantos de extensão de mar. Sempre que lá ia, tinha de voltar. E voltou sempre, cansado, mas com gente que se afligia e quase lá ia ficando. Houve um homem que ficou. “O mar estava bravo – como sempre está nesta praia – e o homem estava estranho. Entrou no mar, mas eu chamei-o. Duas vezes entrou, duas vezes saiu. Pediu-me desculpa. À terceira, foi e já não conseguiu sair. Alguém o trouxe e ele acabou por ficar. Acho que aquele homem ia com aquela vontade de não voltar”. Albino entristece ao lembrar esta história, mas a memória dá-lhe mais alegrias do que tristezas. “Salvei muita gente e fiz muitas amizades”. Tantas vezes contra a corrente, Albino sente saudades. Das ondas, mas também das canções que chegou a tocar em bailaricos para pôr gente a dançar. Os corpos ondulavam e Albino, de certa maneira, lá voltava a ir ao mar.
[uma parceria com a Rede Cultura Leiria 2027]capitão antónio
PRAIA DE SÃO MARTINHO DO PORTO
“Ovos, açúcar, fermento e farinha. É assim que eu faço, à maneira antiga”. À maneira de António Pedro, na antiga Pastelaria Concha, ambos nascidos nos anos 50. “A massa brioche deve ser sempre feita de um dia para o outro”, e parece que foi ontem que António aqui entrou. Tinha 13 anos quando veio aprender com os pasteleiros que, no Verão, vinham de Lisboa ajudar no negócio. Um deles, o Gonçalves, “era um artista, fazia rosas de caramelo como eu nunca vi ninguém fazer”. E ele, o António, foi aprendendo, até que chegou o dia de tomar conta da pastelaria. Tinha 20 anos, e já não era preciso ninguém de Lisboa. Havia António, de São Martinho do Porto. E, com ele, pastéis de nata, tranças, areias, bolachas, palmiers e outras maravilhas que eram uma delícia “para a malta que vinha da Green Hill, às cinco e seis da manhã, já com os copos – ainda saí com o rolo para dar na carola de um ou outro”. São muitos os que fazem fila para entrar – “nesta altura do Verão, chegamos a atender mil pessoas por dia”. O de António Pedro começava às quatro da manhã e terminava à meia-noite. Agora, o horário é outro, que António já está reformado, mas o gosto é o mesmo. É por isso que continua a vir, a vestir o avental, a pôr o chapéu de pasteleiro, a amassar, a enfornar e a deixar toda a gente que lá vai com vontade de voltar. À sua maneira, ao seu lugar.
[uma parceria com a Rede Cultura Leiria 2027]capitão manuel
PRAIA DA AREIA BRANCA
Não é capitão, é herói. Sem capa e sem vaidade, Manuel Marques salvou a vida a muita gente. “Eu só queria que ninguém morresse, bastava-me ouvir um obrigado”. Ouviu muitos, tantos, que, ao recordá-los, o mar parece ganhar ondas nos olhos velhos que o olham. “Um dia de mar bravo, estava bandeira vermelha, e dois irmãos vão ao mar. «Ó mano, salva-te que eu vou morrer», dizia um. «Aqui ninguém morre», disse eu, e trouxe-os, um em cada mão, para terra”. Em cada mão, também, uma medalha de tantas que guarda em casa. Dizem Coragem, Abnegação e Humanidade, palavras recebidas por “actos de salvação marítima e de socorros a náufragos”. O que se sente ao ser-se herói? “É bonito, sinto-me feliz. O meu corpo serviu para trabalhar”. Salvando gente, abrindo guarda-sóis, preparando as barracas, cuidando da praia. Manuel era banheiro. O título de Nadador Salvador só o ganhou em 1959, quando fez o curso – o primeiro em Portugal, “no ano da inauguração do Cristo Rei”. Os braços, abertos às gentes que salvava, também se abriam às algas que ia buscar ao fundo do mar… “e a algumas senhoras que se demoravam na água”, sorri Manuel, o “malandro jeitoso” daqueles tempos. Sorrindo, e lembrando, Manuel é banheiro outra vez, sendo herói. Desta areia, deste mar.
[uma parceria com a Rede Cultura Leiria 2027]capitão alberto
LAGOA DE ÓBIDOS / PRAIA DA FOZ DO ARELHO
Alberto sempre sonhou ser pescador. Na escola primária, o primeiro trabalho manual que fez foi um barco de cortiça. Não queria ser jogador de futebol, nem polícia, nem professor. “Queria ser pescador”. E foi, e ainda é. Por influência do avô, que o levava para a Lagoa e o ensinava a apanhar amêijoas, berbigões e mexilhões que depois serviam de complemento ao almoço que a avó lhes vinha trazer. Aos 16 anos, comprou um barco. Deu-lhe o nome de ALGOJA – as primeiras sílabas de Alberto Gonçalves Jacinto. Mais tarde, com as suas mãos, deu vida ao BEGOTO – o mesmo jogo de palavras em sílabas diferentes. “Fui eu que o fiz quando saí da tropa. Estive em Mafra pouco tempo, mas adorei – era motorista”. Mas nunca deixou de ser capitão. De lagoa, nunca de mar – “nunca senti o entusiasmo, e aqui é mais sossegado”. O mais próximo que esteve dele, do mar, trabalhando, foi ali ao lado, na Praia da Foz do Arelho, há uns 30 anos. “Vendia amêijoa, berbigão, caranguejo, pevides, tremoços, amendoins… Gostava muito, mas voltei para aqui”. É aqui que se sente feliz. “Todas as manhãs venho à Lagoa. Tiro uns caranguejos, vejo as artes das enguias e, à tarde, vou trabalhar”. Alberto faz manutenção de máquinas numa empresa aqui perto. Já trabalhou numa cerâmica, é agricultor, canalizador, percebe de mecânica e até ensina, mesmo não tendo ido longe nos estudos, biólogos e professores sobre a sua arte. Já apanhou alguns sustos na pesca, mas apanha mais caranguejo. Aqui, nesta Lagoa que conhece como as palmas das suas mãos.
[uma parceria com a Rede Cultura Leiria 2027]capitã orlanda
PRAIA DA NAZARÉ
“Ó mãe, não sei se sou capaz”, lamentou Orlanda, ainda menina, quando a mãe lhe sugeriu tomar conta do seu negócio de arrendamento de quartos e apartamentos. “Pegas nesta plaquinha, sentas-te ali e perguntas às pessoas se procuram um lugar onde ficar”, respondeu-lhe a mãe. “Pela minha mãe, eu fazia tudo”. Então fez e então ficou – já lá vão 36 anos. A vergonha passou e ela começou a ganhar um gosto que nunca mais a largou. “Hoje é disto que eu vivo e não me vejo a viver de mais nada”. O trabalho dá-lhe tudo o que lhe é importante – “algum dinheirinho” e tantas lágrimas, todas elas de alegria pelas amizades que vai criando com os hóspedes. “Quando se vão embora, ou choram eles ou choro eu”, diz, chorando. Encosta as costas das mãos aos olhos, enxuga as tais alegrias e volta a sorrir. Sorri mais nos três meses de Verão e na Passagem de Ano, no Carnaval e na Páscoa, quando há mais gente à procura de estadia. A dela é sempre ali, na sua terra, com a sua gente, arrendando apartamentos, quartos, rooms, chambres e zimmer. Alegria incluída.
[uma parceria com a Rede Cultura Leiria 2027]capitão orlando
PRAIA DA VIEIRA
Amor de Mãe. Orlando Faustino tem o nome da sua primeira embarcação tatuado no braço forte e choroso da memória. O nome vinha dos antigos donos, e assim ficou. E Orlando fica longe quando lembra a sua infância junto da mãe e do seu amor, junto do pai e das suas redes. Orlando foi apanhado por este ofício ainda criança – “tinha uns seis ou sete anitos” quando começou a fazer redes e a ajudar o pai na pesca do camarão. O barco era pequeno, Orlando também, e os medos da mãe eram maiores por ver os dois amores entregues à pesca e ao mar. Por vezes, acompanhava o coro que se ajoelhava na areia a rezar para que os pescadores marinheiros voltassem bem. Orlando e o seu pai sempre voltaram. E sempre se acompanharam nestas andanças, mesmo quando, ainda menino, com 11 anos, Orlando foi trabalhar no vidro. Aos 17, de corpo e mãos já calejados, mudou-se para a metalurgia, onde limpou limas e fez a contabilidade da empresa. Veio a guerra, veio a tropa e, quando veio o fim, veio o sonho da emigração, mas o Exército disse-lhe que não. Ficou por cá, desfez-se o sonho e fez-se marido. Voltou a fazer-se ao mar, pescando e fazendo redes. Remendou algumas como remendou a vontade de aventura sendo bilheteiro do cinema, dirigente do clube e secretário da biblioteca da terra. “Como diz o outro, só estou bem onde não estou”, a não ser que esteja onde sempre esteve. No mar.
[uma parceria com a Rede Cultura Leiria 2027]capitão quiaios
PRAIA DO PEDRÓGÃO
Quem conhece a Praia do Pedrógão, conhece Manuel. Foi lá que ele nasceu, foi lá que ele cresceu e é lá que ele quer continuar a viver e a trabalhar até não conseguir mais. “Nunca pensei sair daqui. E, se ainda não saí, já não saio”, diz, e continua. “Meteu-se-me na cabeça desenvolver a minha terra, e acho que tenho conseguido”. Parece que sim. Pelo jeito como as pessoas lhe falam e pelo jeito como os lugares, calados, dizem as memórias que guardam. O café Casino, que abriu quando tinha 17 anos, é uma espécie de ponto de encontro para as gentes que passam pela praia. As esplanadas, há pouco tempo destruídas pelo temporal e agora renascidas por Manuel, são lugar de peixe à mesa e pés na areia. A discoteca Stressless também diz memórias, mas é Manuel quem não quer lembrar. “Evito lá entrar, é um choque muito grande”, quase chora. Agora, é só um esqueleto do que foi. Ele, tendo sido tanto, é feliz. Levanta-se às quatro da manhã e vai para o mar. Pega no barco e nunca sabe quando volta. Por vezes, até faz para se demorar, preferindo, à terra, o mar. “É uma paixão minha”, volta a sorrir. Ao voltar, traz robalo, linguado, raia, pregado, dourada e cansaço. Mas tudo passa quando veste o avental e se põe ao grelhador. Há dias em que só o deixa à noite. “É amor. Faço tudo com amor”.
[uma parceria com a Rede Cultura Leiria 2027]capitã lurdes
PRAIA DE SÃO PEDRO DE MOEL
“E tem sido assim uma vida”. As palavras são de Maria de Lurdes; a vida, sendo também a sua, é a de São Pedro de Moel. Aquela praça junto à praia não seria a mesma sem ela, que faz dela sua casa desde 1975. Na altura, trabalhava como contínua na Escola Primária da Pocariça durante a semana e, aos fins-de-semana e feriados, vinha a São Pedro vender tremoços, pevides, amendoins, pinhões, bolos e merendeiras. E foi vindo, e foi ficando, e hoje já ninguém lá vai sem passar por ela, sem pedir um euro de tremoços – dos mais rijinhos -, um bolinho bem cozido e um saco pequeno de pinhões, se faz favor. “Dois e trinta, três e trinta, quatro e trinta, aqui tem, obrigada, até amanhã”. Parece que foi ontem que chegou ali, sorri lembrando ao fazer as contas ao tempo que ali está. A conta dá 46 anos, mais uma mão-cheia de pevides para compor. Lembra os primeiros tempos, lembra as crianças que deixou na escola e que hoje a deixam emocionada por a visitarem já adultas. “Tenho muitas saudades das crianças”, quase chora. Mas agora não se vê noutro lugar. “Quero continuar aqui. Eu, sem São Pedro, acho que deliro”. São Pedro, sem ela, não seria.
[uma parceria com a Rede Cultura Leiria 2027]