sem pregões
Duas douradas, uma escalada, outra não. Choco e lula. Corvina e sardinha de mão em mão. Meu amiguinho, obrigada. E lá vai ela agradecendo, enquanto amanha mais uma pescada. Terças, quintas e sábados, lá está ela na sua banca a vender o peixe que lá tem. Sempre bem apregoada, entre gente que vai e gente que vem. E a gente faz fila e espera pela sua vez. Quantos carapaus? Hoje, levo três, vai lá o meu filho almoçar. E lá vão os três carapaus, acabadinhos de pescar. Ela de um lado para o outro, a ouvir, a falar, a sorrir, a escamar. Tem contas apontadas nos azulejos azuis da sua banca por cima de um Santo António, uma Nossa Senhora e um telemóvel. Cento e vinte e quatro mais cento e quarenta e um dá duzentos e sessenta e cinco. Cento e dezasseis mais duzentos e catorze dá trezentos e trinta. Contas certas, rezas feitas, telefonemas atendidos. Diga, diga. Está guardado, não se preocupe. E, por entre toda aquela algazarra que lá vai dentro, lá vai ela fazendo contas, vendendo, rezando. E o tempo lá vai passando. Este é para levar ao forno, aquele é para grelhar, o outro ainda não sei. São todos para levar. Peixe fresquinho, acabadinho de chegar. Tem companhia, a mulher. Outra que a ajuda a atender, a preparar, a receber. Em silêncio, ali na sombra, sem se notar. Cabelo esbranquiçado e apanhado, para não estorvar. Voltemos a ela. Cabelo loiro, um pouco apanhado também, e lá vai ela atendendo a tal gente que vai, a tal gente que vem. Sorri assim quase por vergonha. É tímida – pelo menos, parece. Tem sempre palavras serenas para quem chega. Não faz alaridos, não berra. Destoa, até, um pouco das colegas que lá tem a vender o mesmo peixe, que não é o mesmo peixe, que ela. Ou a fruta. Ou os legumes. Ou as plantas. Ou as ervas. Ou o que for. Melões, cenouras, batatas, tomates, feijão, alecrim. Tudo em torno dela. Ela em torno de mim. Duas douradas, uma escalada, outra não. Choco e lula. Corvina e sardinha de mão em mão.
rock and roll leiria
Ele é do rock. Desce e sobe ruas como se subisse e descesse escalas no braço da sua guitarra. A rua, por agora, é sua e é o palco. Sem guitarra e sem escalas. Tudo na sua cabeça. E na minha. De cor e salteado, por aí, por todo o lado, cabelo grisalho e comprido ao vento, sentindo o tempo, marcando o tempo. Batida acelerada, como o passo, andar seguro, mas não severo, com aquela ginga do rock and roll, dos músicos dos outros tempos que agora existem a lembrar e a conversar e a ouvir o que lhes foi a existência. Olho para ele e vejo épicos solos numa Fender ou numa Gibson. Uma maravilha. Também o poderia ver numa Tama ou numa Pearl, sete tambores, quatro tarolas, três bombos, vinte pratos. Outra maravilha. Mas, por qualquer razão da minha visão, lá está ele com uma guitarra amarrada ao pescoço. Parece que procura alguém que o acompanhe no riff que criou para a sua vida. Como se procurasse alguém para o acompanhar na sua despedida. Já não é novo, já tem as suas entradas e as suas conversas de tempos que só ele e outros como ele viveram. Mas ainda está aí para as curvas e contra-curvas que a vida certamente lhe vai apresentando. Como a idade. Filipes, Farmácia, Arquivo, Centro de Saúde. Lá vai ele, mais amiúde. Como os Xutos. Mas sozinho e sem pontapés. Cabelo sempre solto, calças sempre justas, conversas sempre prontas. Quando alguém o pára, ele fala e continua a falar – e parece que se ouve, outra vez, a guitarra a tocar. Antigamente é que era. Os putos não sabem. Era ele e outros tantos, ali, a viver a vida louca das canções. Mas os putos sabem, claro que sabem, e sabe ele também, mesmo sabendo que antigamente também era – tal como é ainda hoje. É o que eu penso que ele pensa – a vida é que já lhe foge. Mas ele é do rock. O que lhe interessa isso da vida, mesmo que, tendo em conta o que ela é, ela já lhe ande fugida? Claro que nada. Ele continua a tocar, guitarra ou bateria, e continua a passear, a ser e a rockar por Leiria.
flor
Ele existe nesta cidade como tantos outros como ele existem em tantas cidades. Bem vestido, geralmente de calças de fato, de sapatos e de camisa branca, anda por entre as multidões vendendo flores, tentando, de certa maneira, acordar corações, juntar amores. E algum dinheirito para si e para a sua família, imagino. Não o conheço, não lhe sei a vida. Mas, quando o vejo, soa-me sempre a despedida. Tem um olhar triste que parece não querer ser outro – é aquele que ele tem e é aquele que está condenado a ter para o resto da sua existência, como se fosse um mártir daquilo que faz. Parece que as flores que carrega são pesadas como a consciência que traz ou como a saudade que sente sabe-se lá de quem, sabe-se lá de onde, talvez do pai e da mãe, talvez do país. Por vezes, há quem lhe pergunte. Ele não diz. Guarda as palavras para si, talvez por vergonha do erro ao dizê-las numa língua que não é a sua, talvez, simplesmente, por não as querer dizer – não tem de as dizer. Basta-lhe a rua. Só pergunta à gente se a gente quer flor. Mais nada. Anda vagabundo com vários ramos, como se fosse um chefe de mesa deambulando, vendendo amor. Meia dose, meia dúzia do que for. Vai a festas, vai a ruas, vai a todo o lado desde que haja gente a conversar, a jantar, a namorar. Vai a todo o lado, é de todo o lado, talvez por não se saber encontrar, talvez por não ser deste lugar. Mas, mesmo não sendo, faz parte dele. Este lugar não existe da mesma maneira se ele não existir também. Faz parte da cidade, da calçada, do dia e da noite, das brincadeiras e dos engates. Por vezes, até faz parte das palavras preconceituosas, dos espinhos das suas rosas, e dos ataques. Mesmo assim, talvez ele até seja feliz. Talvez o rosto que aparenta não seja reflexo do que sente. Se calhar ele até tenta ou, para ele, a felicidade é uma coisa diferente. E ele lá anda, sempre discreto, contornando vidas e conversas e bebidas e sem pressas. Devagarinho, fazendo a sua vida ao seu jeito. Pela sua cidade, com as suas rosas ao peito.
pela vida, cidade
Anda pela cidade devagar, como se a cidade só andasse se ele andasse também, como se ela não pudesse respirar, como se ele fosse os pulmões que ela tem. E ele fala assim, envergonhado, com medo de falar, vai-se chegando aos outros encurvado, numa forma tremida que parece venerar. Anda pela cidade às escondidas, como se ninguém o visse e toda a gente o encontrasse, como se ele se despedisse e logo depois se mostrasse a quem está aqui e ali, numa esplanada, a quem anda a passear, a quem faz nada, a quem faz o nada durar. Anda pela cidade como se andasse pelos corredores da sua casa, pôr a mesa, mudar de canal, vestir o pijama, ler o jornal, e lá anda ele com os talheres e o comando, a flanela, o papel e o vai-se andando que a vida vai passando, e não é que a vida passa? E nem sempre é alegria, e nem sempre é desgraça. É o dia que ele vê e que ele tem, é o fim de tarde, o fim de dia, o fim de um filho de um pai e de uma mãe. Quem são, por onde andam, e ele por aqui, pelas ruas que desandam, pelo sorriso que, lá de vez em quando, sorri. Anda pela cidade parecendo assim, um caminhante cumprindo uma promessa de quem anda sem fim, sem promessa alguma, só com a crença numa espécie de doença que parece que o aproxima da loucura. Caminha e, por caminhos, vai sendo quem ele é, uma espécie de peregrino, um menino apregoando a fé. Anda pela cidade parecendo pedinte, lotarias, raspadinhas, sendo ouvinte de sins e de nãos, muito mais de nãos, e das ladainhas que ele diz para aceitar uns e outros, não infeliz, também não contente, parecendo assim, por um triz, ser gente. Anda pela cidade parecendo perdido, magrinho, olhar alto e no chão, conhecendo as pedras por onde anda, um homem sozinho numa banda com trombones, tambores, oboés, tudo calado rente aos pés num guarda-chuva fechado, pendurado à espera dela. Mesmo sem previsão, ele anda com ele à mão e não se desfaz da vontade que se acomoda. Ele e ele, a vida, e anda a roda.
maringá menino
Há tanto tempo que ele anda por cá, que eu o vejo por aqui a caminhar. A sua casa é o Maringá. É sempre onde ele está, quando o quero encontrar. Nunca fui ter com ele, não sei como se chama, nunca lhe disse nada. Sei que, para mim, aquele lugar, para ele, é morada. Ele faz parte da cidade. Toda a gente o conhece, mas parece que ninguém lhe dá um nome ou uma medalha que ele merece ter apenas por ser. É que ele faz parte dali, ele é ali, mesmo sem saber – julgo eu que ele não sabe. Eu só vejo de fora e imagino. Ele passa por mim, como passou agora, como se fosse um menino. A cara é igualzinha à do Robin Williams – ou eu é que vejo na cara dele a cara de alguém de quem eu gosto para que ele, de certa maneira, se aproxime de mim. A culpa não é dele, eu é que sou assim. E ele é como é, obviamente. Num lugar dele, com tanta gente. Com tantas lojas, tantos corredores, tantas portas, tantos amores que são família. Tudo é casa, ele é mobília. Ele por ali, a cuidar de tudo o que lá está. Vai às raspadinhas ver se alguma tem prémio, na esperança de que alguém a tivesse raspado e, sem atenção, não tivesse reparado e a tivesse atirado para o chão. Se, algum dia, alguma tiver, se ele encontrar os milhões que procura, o que irá ele fazer? Alguma loucura? Ele já é visto como louco. Nenhuma loucura seria maior do que aquela que lhe dão. Ele vive bem com pouco. Nós é que não. Certamente, ele não faria nada. Olharia a raspadinha premiada, sorriria e seguiria com a sua vida. Que vida é essa que ele tem? Sempre cheio de pressa, como quem estivesse muito ocupado a cumprir um horário. Rica vida a deste quase milionário que anda por aí. O rosto diz ternura e o rosto sorri um sorriso leve, a passar por despercebido. Ele vive a vida breve, de cabelo comprido. Parece um fantasma – não lhe ouvimos os passos nem a voz. Os gestos são escassos, o resto somos nós. Faz parte da paisagem, confunde-se com tudo o que nela permanece. E lá anda ele em viagem, a pé, pela vida que lhe aparece.
ao canto do outono
À esquina do Inverno, vem o frio e ela também. Ali, junto à rodoviária, bem no centro da cidade que nos tem. Ao fundo da avenida, lá está ela com as castanhas, dando calor à vida. Quem lá passa, lá a escuta. Ali, entre o castelo e o rio, na sua luta. E apregoa como um desafio. Meia dúzia, mais uma ou duas. E, se não mata a fome, mata o frio. As castanhas e as dores? Todas suas. Mas também as alegrias, as vidas e os dias que ela conta e que lhe dão a ouvir. Dos adultos, as coisas banais. Das crianças, palavras a rir. Um carro que se empurra e que fica ali quietinho. E o fogareiro de duas asas, dormindo sobre as brasas, ali quentinho. Naquela curva, junto à passadeira. Vai passando a vida, e ela, de vez em quando, na brincadeira. Sorri e ri tantas vezes, talvez para esquecer ou para enganar o esquecimento. Ela lá sabe, e ele lá arde. Com o tempo. E ela também, a mulher que apregoa ao fim da tarde. Ao pé de um canteiro lá faz o dia, entre gente que passa de compras na mão. Faz parte da moldura que é já poesia, em folhas de jornal com que embrulha o coração. E lá estão as pessoas, acompanhadas, sozinhas. Quem quer quentes e boas, quentinhas? Rosto maroto, cabelo branquinho, parece um garoto, mas já velhinho. Talvez tenha tido a vida que sempre quis, talvez não. Não sei se é feliz, mas as vidas que ela diz ainda cá estão. Carrega-as no carrinho, mas não as diz assim a ninguém – estão num lugar distante. Parece levar a vida de mansinho, ao de leve no seu carrinho, a mágoa que transporta a miséria ambulante. E, quando eu passo por ela, vem aquele cheirinho bom de uma castanha à janela debruçada sobre um naperon. Há casa antiga naquele lugar, naquele cantinho que já é seu. Uma sala de estar, um rádio a tocar e um tecto feito de céu. A porta está sempre aberta, venha quem vier por bem. A rua nunca deserta, há sempre alguém. E eu não sei quem está ali, nem quem lhe passa ali ao lado. Pedacinhos de Ary. Quem sabe a desventura do seu fado?
ele, alguém, telefonia
Não sei quem é, nunca o vi – não sei se existe alguém que já o tenha visto. Mas ele existe e, se eu o oiço, também eu existo. Na verdade, nunca o ouvi – o que me leva à dúvida lógica de se alguma vez eu existi. Oiço, isso sim, o que ele põe a tocar. Diria que é para mim, mas é para toda a gente que por ali vai a passar. Ou só para ele – nem toda a gente vive só para os outros, para mostrar. Sábado de manhã e lá está o senhor, ou a prova sonora de que, de facto, o senhor está, com o rádio sintonizado, certamente com amor, algures entre o chuvisco e as canções, entre as palavras e os trovões, mas numa espécie de som bordado que faz daquela manhã, naquele lugar, um espacinho bom onde estar. Olhando a porta, assim do fundo das escadas, um chapéu de palha pendurado e uns pedaços de pano – um Tom Sawyer escondido. E ele em nenhum lado, talvez lá dentro, fechado, desumano. Ou perdido. Como se apenas comunicasse assim, através do éter da telefonia. Lá, do meio do jardim, durante o dia. Nem é bem jardim, é casa velha e um pomar, coisas a chegar ao fim, e o rádio a tocar. Nem sempre é melodia. De vez em quando, é chinfrineira. A vizinhança bem queria mas, naquela manhã daquele dia, parece a feira. Contrasta com o castelo e com o verde que se vê, com os passarinhos que cantam, com o jornal que se lê. E está tudo bem com isso – pelo menos, parece estar. É como se houvesse o compromisso de, naquela manhã daquele dia, o rádio tocar. E não se ouve mais nada. Só, de vez em quando, o cão a ladrar – uma espécie de locutor que mantém o ouvinte no ar. Tudo ali é quase Kusturica, quase Chopin. E tudo ali fica, naquela manhã. É como se fosse uma ilha e, à volta, a cidade que é o mar. Um chinfrim de maravilha logo ao acordar. Eles fazem parte daquela paisagem – ele, que não o vejo, a casa e o barulho. Há também uma garagem, quase de certeza com entulho: ferramentas e pó, tudo ao calhas, um homem só e um rádio com falhas. Uma algazarra, naquela casa deserta. Um grito de garra, com notícias à hora certa.
todos os nomes daqueles dois
Um e outro ao lado de um e do outro. Sempre os dois, lado a lado – como na canção, meu amor, mas não tão longe. Sempre perto, um e outro, naquela rua antiga desta cidade, aquela direita que não é, como todas as outras que, sendo assim, não são. Num extremo, o terreiro. No outro, a sé. No meio, quase a meio, mais ou menos a meio, fazendo uma esquina que se inclina para a praça, eles os dois, num lugar aonde se chega pelo cheiro, ou melhor, pelo aroma – talvez dê um ar mais verdadeiro daquilo que aquele cheiro é. Quem chega, entra e vê. Um e outro ao lado de um e do outro, ambos em pé. Bom dia, ou boa tarde, como está, prazer em vê-lo. E parece um regresso a um passado antigo (como todos os passados dignos de serem recordados – como se houvesse falta de dignidade na recordação de outros que acabaram de acontecer), daqueles dos reis e dos cavalos, dos servos e dos rendilhados nas saudações. Serão irmãos, são irmãos, se não forem irmãos, são na mesma, tais são as parecenças em tudo aquilo que mostram: corpo, que tem mãos, pernas, olhos, cabeça, e comportamento, que tem cuidado, reverência, velhice e quase continência em quase submissão. Um e outro ao lado de um e do outro. Sempre os dois. Ali, atrás do balcão. Não os vejo noutro lugar. Também não os procuro – não tenho de os procurar. Mas nunca os vi noutro lugar. Se calhar, eles também não. Eles existem ali, vivem ali, são ali. E aquele lugar, tendo sido de tanta gente, é agora, mais do que deles, eles. Aquele lugar, com tudo o que aquele lugar tem, é um e o outro. Nem sei como se chamam – nem sei se interessa, na verdade. Talvez tenha interesse, isso sim, não saber como se chamam – não lhes saber os nomes é saber-lhes todos os nomes, não lhes saber as vidas é saber-lhes todas as vidas. Eles são eles os dois. Sem tirar nem pôr. Tudo um imenso amor por aquilo que estão a fazer – que é, mais do que acto, potência do que estão a ser. Talvez sejam apenas um. Olho para eles e são dois mas, se um não está, o outro, estando ali, é como se não estivesse. Eles são ali. Pelo menos, é o que me parece.
barbie pantera
Lá vai, lá vem, o baloiço pela mão do pai, a menina pela mão da mãe. A mãe não está ali, apenas o pai a baloiçar a menina que sorri, e a mãe noutro lugar. A mão é só para dizer que a mãe, mesmo não estando, é como se estivesse a ser a menina baloiçando. Mas ela está sem ela, só com o pai, com mais ninguém. Talvez a mãe esteja à janela a ser menina também. Mas não sei dela, não a vejo. No parque, só a criança. O pai dá-lhe um beijo e a menina balança. Para a frente e para trás, para trás e para a frente, o balanço que o pai faz deixa a menina contente. Ela de cor-de-rosinha, ele de preto-escuridão. Uma princesa florzinha, um barbudo mauzão. Calças justas e rasgadas. Tatuagens e pulseiras. Correntes, brincos e espadas. Botas, anéis e caveiras. Leggings coloridas, bandolete nos cabelos. Palavras decididas e feridas nos cotovelos. Não as vejo, mas invento. Ela não pára sossegada. Parece nuvem, parece vento e parece já cansada. Vamos, já é hora, temos de ir almoçar. E a menina parece agora ter mais vontade de brincar. E ele, autoridade, deixa a menina brincar. Ele já teve aquela idade, ele também está a baloiçar. Com sapatilhas de luzes e revista da Barbie na mão. Na pele, desenhos de cruzes. Só falta a distorção. Volta a ser puto feliz, lembra aquilo que ele era. No dedo, um pequeno nariz. Nos ouvidos, Pantera. E toda aquela beleza, que ele lembra com ternura, dá o colinho à princesa enquanto ouve Sepultura. Mas é tudo normal. O baloiço vai e vem. De um lado, as forças do mal. Do outro, as forças do bem. Ali, no mundo inteiro, uma espécie de batalha entre um bonzinho metaleiro e uma rebelde pirralha. Na minha alma há um baloiço que está sempre a baloiçar. E eu vejo e eu oiço o que eu quiser inventar. E uma menina bonita sobre ele sempre a brincar. Se a corda se parte um dia (teria alguma piada), era uma vez a folia, fica a menina sossegada. Cá por mim eu mudo a corda. Ela não cai, não dói, não nada. Se a menina caísse, mais valia não escrever e esperar pela velhice, baloiçar-se sem querer. Mudar a corda era fácil, mas ela tem de crescer.
cortejo de um homem só
Ele sai de casa bem vestido, fato engomado, mãos nos bolsos ao comprido, como se fosse cantar o fado. Não canta, pouco fala, só um bom dia ou um boa tarde de vez em quando, em surdina, e lá vai ele andando, virando a esquina. Sempre muito direitinho e elegante, como se desfilasse devagarinho numa rua de Paris e, durante, assim de mansinho, fosse feliz. Não sei se é, nem sequer sei se parece, não dá bem para dizer, lá vai ele a pé e, quando vai, quase adormece, assim sem querer. Parece que vai num cortejo de despedida, sem caixão, talvez só o corpo que passeia. Lá vai ele pisando o chão, pisando a vida, calçada, terra, estrada, areia. De vez em quando, quando há, pára os passos, vê o que está, gente na escola, outra lá fora a falar, putos a jogar à bola, homens a trabalhar. Faz a vistoria às obras dali, como se fosse um fiscal de capacete amarelo, isso não é daí, aquilo está errado, mais para a esquerda, mais para o outro lado, e ao fundo o castelo. As mãos já não estão nos bolsos, agora atrás das costas direitas, um bocadinho curvadas, sempre estreitas. Por vezes, só imagina, julgo eu. Por vezes, só vê as tais ruas de Paris com as tais pessoas engomadas como ele num passeio que julga ser o seu. E ele feliz ou infeliz, não sei bem, não dá bem para dizer, lá vai, lá vem, lá anda a viver. Ali perto do fim, assumindo que ele vem para toda a gente, lá vai ele vivendo assim, lentamente. Talvez tenha vivido a correr, passando pela vida de raspão, e agora o que sente é só a vontade de ser o que lhe diz o coração. Ele ouve o peito, sorri, sem se perceber, e continua a direito, ali, só a ver. Como se esperasse o que lhe resta, e o que lhe resta é morrer. Mas sem pensar nela, na morte, que pensar nela traz mãos frias e má sorte. E ele assim deve andar, não pensando que ela vem nem sequer que ela existe. O que lhe interessa é caminhar, se ele começar a pensar, começa a ficar triste. Não vejo tristeza no meu vizinho. Vejo só delicadeza num homem que anda sozinho.
uma canção do medo
A escuridão magoa. Mais do que uma bolada na cara ou um pontapé nos tomates. A escuridão, que nem sequer nos toca, tem o incrível talento para nos deixar estendidos numa valeta. Quando estamos com ela, quando ela nos tem, não tem mais nada, não temos mais ninguém. Estamos inteiramente dentro do escuro, que é incerto, indefinido, indeterminado, desconhecido e que, pela certeza de toda esta incerteza, nos faz ter medo. E o medo, por muito que nos digam que faz parte de quem é inteligente, é bem capaz de nos partir, destruir, como faz com tanta gente. A escuridão traz o medo num carrinho de bebé. Tão pequenino que parece, tão grande que ele é. A escuridão tem outro talento além da força. A escuridão é sempre uma coisa e o seu oposto. A escuridão é sempre o monstro e a formiga, apenas sendo o monstro ou a formiga quando deixa de ser escuridão. Mas, sendo escuridão, é sempre maior do que é na realidade, porque é sempre monstro e formiga, nunca só um.
Nós estamos na escuridão. E o medo já não vem de carrinho, vem pela mão. Tudo o que lá está – que é tudo o que nos tem – é muito menos do que aquilo que imaginamos. É a imaginação que nos trama, o idealizar que há ali qualquer coisa que é chama, que nos chama. E nós vamos, acreditamos no que imaginamos, e a imaginação é real como um corpo ou um sonho. E está lá o monstro, a formiga, as famílias dos dois, os passados e futuros dos dois, os sonhos dos dois, as conversas dos dois, as fodas dos dois, e depois? Depois não há razão, pelo menos enquanto houver escuridão. Mas há pele, há guerra, há mel, há terra, há chão, há sorte, há não, há morte. À escuridão, nada lhe falta, por pouco ou nada que ela tenha. Quietinha no seu canto, completamente alastrada em nós, a escuridão não faz barulho, grita como se toda ela fosse voz. Não mexe uma palha, deixa-se estar à espera da canalha que venha brincar. E claro que a canalha, que somos nós, vem sempre. A gritar.
Desejamos a escuridão na exacta medida em que a negamos. Somos todos gente feliz nos cafés, nas ruas e nas redes sociais. A escuridão não nos existe. Jamais! Mas assim que pagamos a bica, cruzamos olhares ou bloqueamos o telemóvel, lá vem ela, essa galdéria escondida, trincar-nos as ilusões. Nós, que andamos por aí a fingir nas entrelinhas da vida, esquecemo-nos de ouvir a nossa batida. Vivemos vidas que não são as nossas, vestimos roupas que não temos, usamos máscaras que nos tapam da cabeça aos pés. Eu não sei como sou. E tu, sabes como és? Verdadeiramente, sem merdas, sem adjectivos com caracteres contados para a bio do Instagram ou do Facebook. Realmente, sem maquilhagem, sem photoshop, sem mamas, sem abdominais. Eu não sei para onde vou. E tu, sabes para onde vais?
Há qualquer coisa de atracção na escuridão. Eu sei, cedo-lhe tantas vezes. E tardo-me em sair de lá, culpa minha, claro, que a escuridão não existe sozinha, só com gente que a veja. A escuridão parece que beija. Com dentes. Aleija. Eu acho que sinto. E tu, sentes? A escuridão é uma espécie de materialização do futuro. Sabemos o que é, mas não sabemos o que tem. Olhamos, pensamos, imaginamos, mas não vamos além. Não conseguimos, não sabemos, e seguimos e logo vemos. A escuridão tem tudo o que julgamos que ela tem. É por isso que nos intimida, que nos faz sentir ainda mais sós. A escuridão é a nossa vida. A escuridão somos nós.
, texto na Grotta #5 (edição Letras Lavadas).
não é a vida, nem é a morte
Sou eu e não sei quem sou. Apenas sei que não sou este que me mostro aos outros. Também não sei bem se sou este que me mostro a mim mesmo. Sei que sou qualquer coisa de intermédio ou qualquer coisa de absoluto que ainda não descobri. É difícil definir-me quando me sinto bem e mal de tanta forma diferente, como tanta gente. Por isso, a nossa dimensão é ser polivalente nisto das emoções.
Tanto jogo na baliza como no desespero – um homem normal, portanto, com carimbo no passaporte. Feliz e miserável como qualquer homem normal. Insignificante, também. E extraordinário. Tenho um esqueleto que sustenta aquilo que eu julgo ser o meu corpo. Nele, ajeita-se um fato e uma gravata do tempo da outra senhora – a que morava em minha casa mas que, por razões corriqueiras de um tiro nos cornos, deixou de morar (dão-nos tantas coisas, dão-nos beijos, dão-nos pão. dão-nos marujos de papelão, dão-nos balas). Bem amarrados aos ossinhos que compõem os pés, uns sapatos gastos pelas calçadas da existência. Cá em cima, um crânio com dois olhos azuis e um ou outro pensamento que espeta os cornos no destino – a grande maioria deles irrelevante e, até mesmo, ordinária. O meu nariz é grande e a minha boca é pequena. As minhas orelhas são duas orelhas, apenas, nem grandes nem pequenas, nem finas nem gordas, nem fascistas nem outra coisa qualquer. Sei lá o que dizer das minhas orelhas, não vejo grande interesse em fazer-lhes uma descrição. Nos ossos da mão esquerda, nada. Nos da mão direita, gente (dão-nos gente, mas não nos dão o animal).
Gente que há na minha vida e que, por isso, lhe pertence. Gente com quem me cruzo no café, na recepção do edifício onde faço terapia, no caminho para o lixo, em qualquer lugar por onde eu passe. Gente que vive nas entrelinhas da minha vida, nem a meio-campo nem a ponta-de-lança, gente que é falso 9 e baralha a linha defensiva do adversário. Eu sou o adversário, e esta gente, que me existe por acaso, é minha família.
Chama-se Álvaro e é barbeiro. Olhos claros, mãos antigas, um avião e um violino. Pouco cabelo e muita conversa. De dinheiros e de poleiros, de escolas e de vidas. Das muitas que me disse, só me contou a sua. “Dão-nos um nome e um jornal”, diz. Nasceu, cresceu e foi palhaço “do nosso corpo mais adiante, aquele que não se vê e chega longe, percebe?”. “Para organizar já o enterro, deixem-me pôr já o nariz vermelho”. Está bem, senhor Álvaro. Fez rir, andou em terras, aldeias, cidades, países, bem vestidinho, com embutidos de diamante. “Mas o riso é o choro com outra voz, sabe, e eles, que lá estão no camarote, dão-nos aplausos mas angústia, dão-nos um sonho, mas só um sonho, dão-nos um esquife feito de ferro”. Esmurrou o patrão, quis matá-lo, esteve preso. A forma da alma que o procura era ele próprio. Hoje, não procura ninguém. Deixa-se estar, quieto, baixinho, para que o corpo não pareça o que é de verdade. Fez-me a barba, e uma cabeça presa à cintura. À homem.
Dão-nos um cravo preso à cabeça, agora bem fresquinha pelo corte. Eu cortei caminho e cheguei mais cedo do que o previsto. E lá está ele. Eu não o vejo, ele não me vê. Não sei quem é, não sabe quem sou. Mas ele sabe que eu vou, que passo por ele sem parar, ao entrar e ao sair. Não faz, nem faria, sentido ficar. Ele está ali para ver passar, e eu nem chego a estar. Todas as quartas-feiras de todas as semanas, para pentearmos um macaco, dois minutos antes das sete, toco à campainha e passo. Digo-lhe boa tarde e espero pelo elevador. Dão-nos um pente e um espelho, e um pacote de tabaco, e eu penteio-me, e eu fumo. Dão-nos a capa do evangelho, e eu leio. Ele responde de volta, como um eco de personagens de assombro, e espera por ninguém. Está ali, quieto, olhando, quieto, estando. Somos vazios despovoados, é o que é, que adormecemos no seu ombro. É sempre, todas as quartas-feiras de todas as semanas, a última, dois minutos antes das sete, e a primeira, oito minutos antes das oito, pessoa que me liga à realidade dos outros. No quarto piso, tenho terapia. Lá, a realidade é a minha, só a minha, escura, sombria e funda de mão dada com quem visita comigo esse meu lugar. Temos fantasmas tão educados… Subo ao rés-do-chão, vindo do quarto piso, e ele lá continua. Não sei quem ele é, não sabe quem eu sou. Mas ele está, sempre, faz parte do processo de entrada e de saída do Inferno (outra palavra para o medo). De passagem.
Culpa da vida, que me faz isto. O que é isto, sequer? Deixo-me de metafísicas e vou comer. Um bifana e meia-dose de vulgaridade, por favor. Está bem, pode ser sopa da pedra. Sento-me ao balcão, junto de peludos regos de camionistas e de exagerados tacões de putas, e contemplo. Não deveria contemplar, faz mal aos olhos e não nos soa na memória da nossa história sem enredo. Mas contemplo os sabores, os cheiros, as coisas e as realidades que roçam as vidas que ali existem na mesma medida que existe quem está ali. E há um que existe mais, parece-me. Não lhe conheço o nome. Pode ser João, Fernando ou Aladino. Pode ser qualquer coisa, que pouco me importa. Mas, podendo ser qualquer coisa, é um filósofo. Ele é Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche, Platão, Voltaire e Sartre. Ele serve bifanas e sopas da pedra como quem pensa na morte, serve camionistas e putas como quem olha longamente para o abismo. Não deveria contemplar. Volto à estrada, como eles e elas. Dão-nos um bolo que é a história, mas eu como a bifana, ainda. E vou, agora sim.
Encostadinho à direita, mãos nos bolsos e olhos no chão, como mandam as regras de quem sofre. Connosco, quando estamos sós. Os felizes vão na faixa da esquerda e os idiotas na do meio. Na verdade, os idiotas, para jamais nos parecermos, não vão na faixa do meio, estão na faixa do meio, moram na faixa do meio. Tenho a certeza. Têm lá casa, um T2 com garagem e arrecadação. E código postal próprio. Dormem lá, fazem o almoço, o jantar, estendem a roupa na marquise e passam pelas brasas, com as cabeleiras das avós, no sofá da sala. Penteiam-nos os crânios ermos e, ao fim-de-semana, fazem-se uns furos na parede do corredor para pendurar uns quadros e uns grelhados mistos para ver a bola. Pagam IMI e tudo, levado à cena num teatro. Tenho a certeza.
Tenho lá eu a certeza de alguma coisa. Dão-nos bilhetes para o céu e pouco mais. Estou para aqui a enganar-me para quê? Para tirarmos o retrato? Dão-nos um barco e um chapéu. Certeza? Só a de que duvido de tudo, sem pecado e sem inocência. Da roupa que visto de manhã à existência de deus, da mão que devo usar para abrir a porta ao pé que devo usar para enxotar o gato. Dão-nos um prémio de ser assim e eu tenho o prémio tatuado nos cavalos que me galopam o dia inteiro no peito, sim, o sempre, esse cabrão. Refugio-me no sono para dar corda à nossa ausência, mas gostava de me refugiar no vazio. Mas nem conheço o vazio. Dão-nos a honra de manequim, mas sem roupa. Sou sempre tudo em todo o lado e esse ser tudo em todo o lado faz com que eu não seja, faz com que eu apenas esteja. Não decido por dúvida e por medo de errar. Mas vou errando. Não por duvidar, mas por deixar que a dúvida seja a minha corrente. Eu não sou, vou sendo. Talvez.
A dona Fernanda é que deixou de ser. Foi embora, partiu. E, com ela, foram embora, partiram, pedaços da minha infância onde não vem a nossa idade. O bibe, a plasticina, o recreio, a dança, o colinho, a sestinha. Mais um relógio e um calendário. Não sei por que razão me lembrei dela, apenas lembrei, sem qualquer associação, pelo menos consciente, a um sítio, a um cheiro ou a um som. Lembrei, apenas. A dona Fernanda deu-me sorrisos, palmadas e corações. A dona Fernanda deu-me aconchego. Eu pouco lhe dei para o muito que dela recebi. Dei-lhe choros, birras e inquietações. Sem saber, dei-lhe outros tantos corações. Eu não sabia. Ela sabia. Ela sentia. Hoje, sinto eu. Muito. A dona Fernanda chamava-me “olhinho azul”. Eu chamava-a, simplesmente, dona Fernanda. Hoje, ela já não me chama. Hoje, eu ainda a chamo. Mas ela já não me ouve. A dona Fernanda foi embora. Partiu. Mas os corações ficam comigo. Em pedaços.
Fica a memória, que tem a forma de uma cidade. Valha-me isso, essa galdéria que tanto me anima como me cospe. É tramado ter memória. É tramado não ter memória. Dão-nos um mapa imaginário, e é tramado, pronto. Que pessimismo chato. Tenho de parar com isto. Já páro, só mais um bocadinho de memória. É que me parece que é ela que comanda a vida do senhor que me existe à frente todos os dias no mesmo lugar. Lembrei-me dele porque tropecei nele. Agora mesmo, não o vi. Logo ele, que está sempre cá. E digo que é a memória, e não o sonho – como diz o poema – porque acho que ele já não sonha. O sonho deve ter-lhe morrido no instante em que lhe morreu um camarada por estilhaços de uma granada no meio do mato. Angola ou Guiné, escuridão de certeza. Ainda hoje. A guerra, raízes, hastes e corola, ou qualquer outra coisa muito pior, fervilha-lhe nos gestos, corre-lhe no sangue que lhe corre pelo corpo inteiro, nas pernas que não falham um passo, nas mãos que não falham uma reza, na boca que não falha uma passa do charuto que chupa todos os dias sentado num pequeno muro de pedra. Tem o batalhão inteiro a caminhar com ele e o dever patriótico de cumprir a missão diária que lhe dá razão aos dias. Não sai da rotina, não muda o trajecto. Só quando chega a mãe, que lhe pede ajuda com os sacos das compras, é que ele despe a farda e sorri, cospe o charuto e fala, larga o tempo e ganha cor. Ela vai embora, ele volta. E volta às voltas que a memória lhe dá. Angola ou Guiné, mais um letreiro que promete. Escuridão de certeza. Amor de mãe.
Mãe. A minha mãe. É tão bonito dizer “a minha mãe”. É como dizer poesia em apenas três palavras. A minha mãe. Talvez “a minha mãe” seja a única poesia que há no mundo inteiro, a única poesia que realmente interessa dizer, a única poesia que deu origem a isto tudo que nos é e que nos tem. A minha mãe. Eu, que amo palavras mais do que amo a vida, trocaria todas elas para dizer, até à eternidade, “a minha mãe”. A minha mãe é berço e leito, a minha mãe é a minha noite onde me deito. A minha mãe é grito e carinho, a minha mãe é o meu próprio ninho. A minha mãe é luta e choro, a minha mãe é ouro. A minha mãe é Freud e Vitorino, a minha mãe é o seu destino. A minha mãe é terra e verdade, a minha mãe é a mãe da saudade. A minha mãe é beijo e abraço, a minha mãe é mãe de um palhaço. A minha mãe é come a sopa e cuidado com o frio, a minha mãe é tens mesmo o meu feitio. A minha mãe é mãe-galinha, a minha mãe é minha. A minha mãe é preocupação, a minha mãe é exagero do coração. A minha mãe é princípio, meio e fim, a minha mãe é igualzinha a mim. A minha mãe é riso e melancolia, a minha mãe dá-me cabo do juízo, e o que eu lhe dou é poesia. E uma alma para ir à escola.
Não dou mais porque não sei. Continuo o caminho na estrada fria, clarinho por fora, nublado por dentro. Como um palhaço ou uma flor. Extremamente feliz a quem olha, extremamente triste a quem olha um bocadinho mais. Sigo o caminho e só vejo gentes, sigo o caminho e só me vejo a mim, eu e eu. Estas gentes dão-nos um lírio e um canivete, e pouco mais. Estas gentes só existem em mim, em mais lado nenhum, iguais. Dizer-lhes adeus – tem de ser, está a ficar tarde – é dizer adeus a mim mesmo. E eu nunca fui bom a dizer adeus. Por não gostar ou por não ter jeito, não faço ideia. Por não assumir que há fim ou por não assumir que o fim nunca haverá, não sei. Mas digo adeus muitas vezes, por obrigação ou por vontade, tem dias. Hoje, é um dia. Cada adeus, bem ou mal dito, bem ou mal feito, é o princípio de uma outra coisa qualquer, de um poema.
sozinha, a velhinha
Não está sozinha, a velhinha – está com o medo. Acompanhada por esse morte-certa-ou-talvez-nada que é o medo. Companheiro o dia inteiro que a faz estar, não sozinha, mas sem gente que se sente onde a velhinha tem a mão. Ninguém – talvez por ter medo, também. Ou é o medo que tem a gente, e a velhinha não sente e julga ser a multidão?
ele que vai
Não sei o que é, mas diria cancro. Ou solidão, que me parece pior. Pode ser uma união de ambos, como o uísque e o cigarro que devora todos os dias à mesma hora naquele café. Os olhos estão sempre longe, nem sequer olham o que leva à boca. A boca tem a abertura exacta para a dimensão do ponta do cigarro e da ponta do copo. E a sua vida, não sabendo eu o que é, parece-me andar na ponta do fim. Sendo uma coisa ou outra, nunca deixa de parecer uma coisa e outra. Que lhe devoram a vida.
ela à janela
Sábado de manhã, àquela hora, naquela rua, nesta posição, ela está à janela. Tem roupa lavada a esconder-lhe a curiosidade, estendida – ela, a roupa e a curiosidade – à janela. Quieta nos braços, inquieta na vigilância, ela ronda certeira a rua inteira, de uma ponta à outra, quem entra, quem sai, quem passa e quem fica. Fica ela ali, sossegada, escondida, alerta da vida. Nada passa sem que ela saiba, nada acontece sem que os seus olhos registem. Sábado de manhã, àquela hora, naquela rua – ela escondida – aconteceu isto assim assim, passou fulano, ficou beltrano e bateu o sol na roupa estendida.
mulher antes da partida
Compra o tempo com um cigarro. Vai às compras mas, antes de entrar, já está a comprar. Sacos vazios no carrinho, olhos vazios atrás dos óculos. A preparação passa pela tranquilidade de um cigarro ao sol, a olhar sabe-se lá para onde, talvez para dentro, que é dentro que temos a necessidade de um bafo de cinco minutos que nos ajude a acalmar a vida. Bem vestida, ela – não a vida, chega de tarde, não todas, mas sempre às quatro e vinte. Encosta-se à parede para ser desenhada ou para estar mais perto do cinzeiro, não sei, talvez ela saiba que a olham olhando sabe-se lá para onde, talvez para dentro, talvez não saiba e só quer é facilidade neste processo de queimada. Nunca a vejo no regresso, sempre na partida, ou melhor, no que lhe antecede a partida, no cigarro e na pose, nos sacos vazios e nos olhos que, para dentro, olham cá fora, neste processo de vida, mulher antes da partida.
a senhora que demora
Os meus primeiros brinquedos foram comprados aqui. Não sei se era esta a senhora que atendia a minha tia Nhanha, a tia que me mimava a infância, mas era aqui, nesta papelaria, que os meus primeiros brinquedos ganhavam dono.
Esta senhora seria a mesma, hoje parece ter sido mesmo. Ternurenta, lá de cima e lá de dentro, pelo sotaque com que diz bom dia, cá estamos, graças a deus e obrigado, esta senhora não sai dali porque é ali que ela é. Saindo, deixa de ser, e até o espaço deixa de estar. Acompanhada, muitas vezes, por outra senhora, mais nova mas mais antiga, esta, mais velha mas mais agora, recebe cada cliente de braços abertos no olhar.
Passa os dias à espera que entre alguém e há sempre alguém que passa e que não entra. Entre cadernos, peluches, jornais e porta-chaves, ela existe na demora do tempo que passa, na lentidão dos dias, na espuma das horas. Sempre que lá entro, entro só por entrar. Só quero sentir dentro a alegria de voltar a brincar.
não era fado-canção II
Um tirinho até ao fim. Vão-se os sonhos e as danças, já não há rosa nem algodão, e as crianças só nas lembranças daquilo que lhes resta do coração. Já não há “beija, beija”, há “trabalha, trabalha, paga, paga”, e tudo não passa de tralha que se acumula e estraga na ida e volta do cacilheiro, e tudo parece metade porque, na verdade, nada é inteiro. Ele trabalhava, ela trabalhava, e a vida andava como deus queria (assumindo que deus existe além da eucaristia). Trabalho-casa, casa-trabalho, e o ganha-pão ganhava-migalha. No chão, um cão e um pirralho. Nos pratos, palha. “Mas tudo melhora”, dizia ele. “Vou lá fora fumar”. Ele não fuma, chora, ele estava a chorar. E ela, à panela, via a novela entre aventais. Ele voltava e ainda fumava, não fumava, chorava cada vez mais. Ele homem, ela mulher, um cão e um filho. Tudo perfeito, família, dinheiro, alegria. Só faltava premir o gatilho. Perfeição? Não, ironia. Ilusões desfeitas aos trambolhões assim que viram que a cidade, afinal, não lhes dava sanidade, pelo menos, mental. Mas era melhor viver doente, lutando, do que voltar ao antigamente, desistindo. “Cá ando”, dizia ela, “resistindo”. Estrangeiro? Talvez fosse solução, mas não havia dinheiro nem para pôr na boca de um cego uma canção. “Ai que saudades das festas e romarias, dos seus amigos que ele um dia cá deixou, porque lá fora as amizades são estranhas, há bem poucas alegrias para quem tanto trabalhou”. Não era fado-canção, era o passado do bailinho, do corridinho e do malhão.
não era fado-canção I
“Danças o bailinho, o corridinho e o malhão, valha ao menos isso para alegrar o coração”. Como se a noite fosse um dia inteiro. Tão lindo que era, tão puro que parecia mas, por puro que parecesse e por lindo que fosse, tinha amarrado ao coração o cabrão do fado. E tudo existia e tudo era triste e tudo era blá-blá-blá entre os pingos da chuva de uma dança, de um passo à frente, de um passo ao lado, de um sorriso que, de vez em quando, era preciso, mas que não era sorriso nem era estado. De toda a maneira, ouvia-se Dino Meira. E a felicidade, ou lá o que é essa coisa intermitente que nos sinaliza a vida, lá andava de mão em mão, de ombro em ombro, de anca em anca. Um aproximar de boca, um fugir de vinho, e ela louca, e ele, devagarinho, acompanhando a dança, e uma criança ou duas ou dezenas delas corriam pelo alcatrão, e ouviam-se beatas que tricotavam as vidas escondidas dos donos dos pés que pisavam o chão. Havia luz e escuridão, pipocas e fritos, bifanas e gritos, joões e joanas, sebastiões e anas e nomes que não rimavam, mas que eram nomes de crianças que corriam e brincavam e se escondiam na igreja e ouviam “beija, beija” e coravam e sorriam e beijavam a boca de cada um. A dela sabia a rosa e a dele, em poesia feita em prosa, sabia ao doce do algodão mas, no fundo, bem à flor dos dentes, sabiam as duas bocas às bocas pré-adolescentes com travo àquela coisa da paixão. Coisa mais linda, mais pura e mais mais que havia entre aqueles dois seres tão seres que não seriam mais.
o porteiro de passagem
Eu não o vejo, ele não me vê. Não sei quem é, não sabe quem sou. Mas ele sabe que eu vou, que passo por ele sem parar, ao entrar e ao sair. Não faz, nem faria, sentido ficar. Ele está ali para ver passar, e eu nem chego a estar.
Todas as quartas-feiras de todas as semanas, dois minutos antes das sete, toco à campainha e passo. Digo-lhe boa tarde e espero pelo elevador. Ele responde de volta, como um eco, e espera por ninguém. Está ali, quieto, olhando, quieto, estando.
É sempre, todas as quartas-feiras de todas as semanas, a última, dois minutos antes das sete, e a primeira, oito minutos antes das oito, pessoa que me liga à realidade dos outros. No quarto piso, tenho terapia. Lá, a realidade é a minha, só a minha, escura, sombria e funda de mão dada com quem visita comigo esse meu lugar.
Subo ao rés-do-chão, vindo do quarto piso, e ele lá continua. Não sei quem ele é, não sabe quem eu sou. Mas ele está, sempre, faz parte do processo de entrada e de saída do Inferno. De passagem.
o filósofo da benedita
Ir ao Bigodes é mais do que enfardar uma bifana cheia de mostarda, maionese e gorduras várias. Ir ao Bigodes é mais do que chafurdar numa sopa da pedra carregadinha de tralha boa. Ir ao Bigodes é, também – e essencialmente – sentar-se ao balcão, junto de peludos regos de camionistas e de exagerados tacões de putas, e contemplar. Contemplar os sabores, os cheiros, as coisas e as realidades que roçam as vidas que ali existem na mesma medida que existe quem existe na Nacional 1, de passagem. Como na vida, na verdade.
No Bigodes, há quem contemple eternamente. Não lhe conheço o nome. Pode ser João, Fernando ou Aladino. Pode ser qualquer coisa, que pouco me importa. Mas, podendo ser qualquer coisa, é apenas uma: filósofo. O Filósofo da Benedita. Ele é Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche, Platão, Voltaire e Sartre. Ele serve bifanas e sopas da pedra como quem pensa na morte, serve camionistas e putas como quem olha longamente para o abismo.
É o habitual, por favor. O quê?
o soldado que não voltou
Memória. É ela, parece-me, que lhe comanda a vida. Não é o sonho, como diz a canção. O sonho deve ter-lhe morrido no instante em que lhe morreu um camarada por estilhaços de uma granada no meio do mato. Angola ou Guiné, escuridão de certeza absoluta. Ainda hoje.
A guerra, ou qualquer outra coisa muito pior, fervilha-lhe nos gestos, corre-lhe no sangue que lhe corre pelo corpo inteiro, nas pernas que não falham um passo, nas mãos que não falham uma reza, na boca que não falha uma passa do charuto que chupa todos os dias sentado num pequeno muro de pedra. Tem o batalhão inteiro a caminhar com ele e o dever patriótico de cumprir a missão diária que lhe dá razão aos dias.
Não sai da rotina, não muda o trajecto. Só quando chega a mãe, que lhe pede ajuda com os sacos das compras, é que ele despe a farda e sorri, cospe o charuto e fala, larga o tempo e ganha cor. Ela vai embora, ele volta. E volta às voltas que a memória lhe dá. Angola ou Guiné. Oeiras, 2019. Amor de mãe.
guerra
José Manuel Castro Feliciano ou Zé Manel para os amigos ou Feliciano para os camaradas da caserna onde assentou praça e costados e balas e bofetadas naquela guerra antiga mas real que lhe matou amigos no corpo e amigos na cabeça, estes que morreram de cabeça foram os que morreram de verdade, morreram estando vivos, morreram para eles e morreram para os outros que os conheciam de outra forma que não desta que os faz estar enterrados nos lençóis, com tiques nas mãos e comprimidos na mesa-de-cabeceira e na goela, coitados, morreram e agora são outras pessoas, outros cidadãos, outros homens que não nasceram do útero da mulher mas sim do ventre de uma guerra antiga mas real, sacana da guerra, puta da guerra, guerra da guerra. Feliciano sobreviveu sem maleitas no corpo nem na cabeça. Eu não. Esta história é sobre mim.
Eu sou um tipo normal, chamam-me pelo nome e tenho para cima de muitos anos. Para dizer a verdade, nem eu sei a minha idade, a memória já não é a melhor e o cartão do cidadão já não o tenho, perdi-o quando andei à caça de leões ali no pátio da velha com o filho deficiente em casa, coitadinho do puto que não tem culpa nenhuma que deus lhe tenha dado mais baba do que aos outros, mas a vida é mesmo assim, e lá está a velha a tomar conta do puto que não é puto, porque já tem para cima de muitos anos, precisamente a minha idade, quem diria, digo eu que estava à caça de leões ali no pátio da velha quando perdi o cartão do cidadão e nunca mais o achei porque nunca mais o procurei, que se lixe o cartão, que se lixe o cidadão que o que interessa é a nota, que se lixe quem eu sou que o que interessa é a minha história.
Tudo começou em mil novecentos e troca o passo, estava eu todo contente a emborcar copos de água da torneira quando, por obra e graça do espírito santo, que é um santo sem corpo e só com espírito, como diz o próprio nome, vi a melhor moça do mundo, e eu digo moça e não digo gaja porque eu sou um gajo bem-educado, nossa senhora de Fátima, meu deus do céu, que moça linda e afinada, com tudo no sítio, tim tim por tim tim, nem mais um centímetro para baixo, para baixo, para baixo, ai para baixo, nem menos um centímetro para cima, para cima, para cima, ai para cima, que era mesmo para cima que eu estava a ir, não só na imaginação como também na, na, na, na, até fico gago só de pensar. Mas tenho de continuar que tenho uma história para contar.
Olhei para ela e imaginei todas as coisas possíveis e impossíveis que lhe poderia fazer, qualquer uma mais javarda do que a outra, mas em que havia eu de pensar? Sou um homem, os homens têm este tique de levar tudo para lá e é para lá que eu vou, deixo-me levar sem medos que a vida é para ser vivida e não podemos estar a pôr barreiras à nossa imaginação, já nos bastam aquelas que nos põem na comida e nos impostos, sacanas, que eu mato-os a todos, mas não posso. E fui. Fui, pronto, que posso eu dizer? Fui, ela levou-me pela mão sem sequer se mexer, estava quietinha, nem deu por mim, quase nunca ninguém dá, mas ela nem sequer tocou com os olhos no meu corpo, nem com os olhos nem com nada, mas pronto, e eu ali fiquei a imaginar tudo o que poderia fazer e refazer a uma gaja, perdão, a uma moça, que nem sequer tinha conhecimento da minha existência. Existência pobre, mas existência.
Estava eu nestes preparos mentais quando, de um momento para o outro, sem quê nem para quê, zás, a moça boa cai de boca no lancil do passeio. Pumba, escangalhou a fronha toda. Só me apeteceu chorar, mas como sou um homem de barba rija e testa grossa, não chorei. Fiquei ali especado, de olhos abertos e boca aberta. E ela deitada, de cara espalmada no alcatrão. Que desperdício. Mas estranhei. Isto de as moças caírem ao chão e não gritarem não é de moças, é de homens. Oh, caraças, queres ver que esta moça bem boa afinal é um homem? Cruzes credo, xô xô xô, brrr que me arrepiei todo, desde a ponta da espinha à ponta do sapatinho de verniz que muito estimava na altura e muito estimo ainda hoje, engraxadinho todos os sábados de manhã, sem falta, enquanto se grelha um peixinho-espada e a minha Amélia aspira a sala.
Na altura, já tinha Amélia, mas também tinha olhos, e foi por isso que vi a moça boa que, afinal, tudo levava a crer que fosse um homem. Cheguei-me ao pé dela, ou dele, e uma poça de vermelho começou a circundar-lhe a cabeça. Era sangue, pois claro que era sangue, estou bem fodido, agora a moça morreu-me aqui à minha frente, e só eu é que vi, parece que toda a gente desapareceu. E agora estou aqui sozinho, acorde menina, acorde, parece mesmo uma menina, com um corpinho tão bem feito e um rabinho tão empinado, nem sei como tive a coragem e a estupidez de pensar que esta delícia dos deuses tinha pila e maçã-de-Adão. Mas esta beleza não se mexia. Coitadinhos dos seios encostados ao chão, coitadinhas das pernas rijinhas todas amarfanhadas de arranhões. Não te apaixones agora, pá, que esta não é hora para um gajo se apaixonar, primeiro porque a moça está morta, e depois porque, se por alguma razão, não estiver, precisa de uma ambulância e não de um ramo de flores. Cedi à razão e gritei com todas as forças da minha goela. Veio a ambulância. Perguntaram-me o que se tinha passado, não soube responder e levaram-me com eles. Mais ninguém apareceu. No mundo, só morava eu, aquele docinho escangalhado e os dois toninhos da ambulância.
Fui com eles. O caminho era esguio e sinuoso. Batemos em pedras e caímos em buracos. Capotámos duas vezes e despistámo-nos seis. Quando chegámos ao destino, o Hospital Doutor de nome importante, a gaja já não era gaja e eu já não era eu. Só os toninhos da ambulância é que continuavam toninhos da ambulância, com as barrigas salientes e os bonés vermelhos estilo Robbialac. Eu era um mosquito e a moça era um mata-moscas. Zás. Matou-me e eu acordei de rajada. Sem ar, sem moça, sem ambulância, sem Amélia, sem nada. Foi tudo um sonho e eu não gosto de sonhos, cabrões dos sonhos, vêm mansinhos pela noite, escorregam-me pela nuca e enroscam-se bem cá dentro da mioleira, porra, que dor de cabeça. A culpa é do Feliciano, que tem amigos mortos da cabeça. Vou dançar.
Ilustração de João Pedro Coutinho