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a ilusão da despedida

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Acabou um ano e começou outro. E, sempre que isso acontece, dizemos adeus e pedimos desejos. É fatal. E mentira.

Dissemos adeus a 2017, com balanços e listas do que nele aconteceu, do que vivemos com ele, das coisas boas, das coisas más, das coisas assim-assim. Porém, esses balanços e listas mais não são do que artimanhas que usamos para nos dar a ilusão de uma conclusão, de um fim. Arrumamos situações, factos, emoções nas respectivas listas, e, pronto, estão feitas as despedidas. Tudo arrumadinho, foi bom ou mau, adeus.

Só que não. Não está tudo arrumadinho porque não nos despedimos de verdade. Não daquilo que nos foi relevante. Culpa da memória. Raramente nos despedimos porque é quase impossível nos esquecermos do que nos foi (e continua a ser) importante. A despedida só é se a memória deixar de ser. E a memória não é coisa que deixe de ser de um dia para o outro.

Da mesma forma que os desejos que pedimos nesta altura de pouco nos valem para o ano que começa. Tudo o que pedimos nas passas que engolimos mais não são do que ilusões que nos obrigamos a tomar para conseguirmos lidar com as ilusões que nos são as despedidas. Desejamos isto, aquilo e aqueloutro, quando há outros istos, aquilos e aqueloutros que nos existem e que nós teimámos em (mal) arrumar.

Não pode ser o calendário a marcar o relógio que temos dentro. Não deve, não pode, deveria ser proibido haver um momento estipulado para nos despedirmos e pedir desejos. Não faz nem é, nunca é, sentido. Não é por ser 31 de Dezembro que tudo vai para o lixo, nem por ser 1 de Janeiro que tudo é comprado por estrear. Mas é o que tendemos a fazer (cortando a eito, cavando o nosso próprio fosso).

Apressamos a realidade e nem damos tempo às despedidas nem espaço aos desejos. É por isso que, nesta altura, nem umas nem outros são reais. Umas e outros são bem mais do que fazer listas e engolir passas. Dizer adeus e desejar é o que fazemos durante a vida inteira. Mas sem datas marcadas, que isso faz dela tudo, menos verdadeira.

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no dia seguinte, morreu

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Na noite de Natal, ninguém sofre de frio nem de saudade. Na noite de Natal, ninguém sofre de fome nem de solidão. Na noite de Natal, ninguém sofre nem morre. Aqui jaz quem não faz falta no dia seguinte.

Aqui jaz um sem-abrigo. Não se lhe sabe o nome nem se lhe conhece família. Na noite de Natal, abriram-lhe os portões para uma refeição quente e uma noite tranquila. Apareceu na televisão. Agora, aparece no chão. O seu corpo será velado por ninguém porque os portões fecharam depois da ceia e as casas de cartão não dão audiência.

Aqui jaz um animal. Ou o que resta dele, no que resta da berma da estrada. Na noite de Natal, recebeu o quente de quem o queria para aquecer os pés e o ego. Apareceu no Facebook e no Instagram. Agora, aparece na caixa aberta da carrinha da junta de freguesia. Questão de saúde pública. O seu corpo será velado apenas se for feito scroll.

Aqui jaz uma velha. Morreu como viveu desde que lhe foi o marido. Sozinha. Na noite de Natal, abriu a porta para a companhia de voluntárias que lhe aqueceram a casa e a solidão. Apareceu no jornal. Agora, nem no café aparece. Não sai de casa desde esse dia porque ninguém lhe toca à campainha para saber, sequer, se ela está lá. O seu corpo será velado quando o cheiro chegar à casa dos vizinhos.

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culpa de ninguém

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Era tão boa culpa, pena ter morrido sozinha. Tancos, incêndios, legionella, Raríssimas. Em Portugal, morre a culpa, sempre a culpa, sempre só.

São estes os mais recentes casos em que a culpa foi de todos e vai acabar por ser de ninguém. Foi do Exército, do Governo, do clima, das populações, do SIRESP, do hospital, dos partidos, do ministro, da directora, dos associados, de nós todos. No fim, quando tudo acabar, a culpa, que ainda anda aos caídos presa àquele e presa àquela, acabará, como manda a nossa tradição, por morrer presa a nada.

Talvez seja o espelho da personalidade de um povo que, assim que descobre injustiça, cerra os dentes, cria petições, fecha os punhos, faz manifestações, sai à rua, grita, denuncia. No entanto, passada essa excitaçãozinha inicial, vem a realidade que nos é habitual, e a culpa lá se vai esquecendo e diluindo e apagando, até que morre. Só. De ninguém.

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rip famoso que era um génio

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É com extremo pesar que se anuncia a morte de um famoso. Pelos serviços prestados ao país e ao mundo, o famoso será sepultado com honras de Estado em todas as redes sociais e será lembrado por toda a gente como um génio na sua área

Todos lembram os bons momentos que passaram com ele e os ensinamentos que ele teve a bondade e o altruísmo de lhes transmitir. Todos escrevem frases tristes. Todos publicam emojis com lágrimas. Todos vomitam RIP.

“O mundo está mais pobre”, “O céu ganhou uma estrela”, “Até sempre, meu amor”, “Perdi um amigo”, “Descansa em paz”, “A vida é tão injusta” são as mais usadas. As razões para tal são complexas: pela sua imensa profundidade dramática e pelo facto de servirem para qualquer pessoa — na verdade, até para quem não é famoso (mas, sendo, o prestígio de quem as escreve aumenta — e o número de likes também).

O mundo fica sempre mais pobre, o céu ganha sempre uma estrela, ele é sempre amor até sempre, perdemos sempre um amigo, ele descansa sempre em paz e a vida é sempre tão injusta. Sempre, só que nunca.

Hoje, o famoso deixa de ser e a nossa vida continua. A dele não. Morto, chorado e enterrado, o que vai sempre acaba e o que fica sempre acaba por esquecer.

[artigo publicado no jornal público a 29 de novembro de 2017]

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a morte do artista

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Kevin Spacey, Terry Richardson, Louis CK. Morre o artista, não morre a arte.

Por vezes, a morte é mais morte se não for literal. Kevin Spacey, não morrendo, morreu para o que fazia. Foi afastado da série House of Cards, despedido da Netflix, viu cancelada a sua homenagem nos Grammy e também a sua participação no filme Gore, já em pós-produção. Além disso – pior do que isso – tem o seu nome na lama da praça pública.

Mas, morrendo Kevin Spacey, não morre Francis Underwood (House of Cards), não morre Prot (K-Pax), não morre Lester Burnham (American Beauty) nem morre Verbal (The Usual Suspects). Morre o artista, não morre a arte.

Terry Richardson, outro artista que morreu por não ter sido humano. Morreu para a arte, mas não lhe morreu a arte. Foi afastado da Vogue e impedido de trabalhar na GQ, Vanity Fair e outras conceituadas revistas do grupo Condé Nast. Além disso, qualquer trabalho de Terry que ainda não tenha sido publicado, muito provavelmente não será.

Mas, morrendo Terry Richardson, não morrem as icónicas fotografias que tirou a Miley Cyrus, Jared Leto, Macaulay Culkin ou Beyoncé. Morre o artista, não morre a arte.

Louis CK, mais um grande em arte que foi pequeno em humanidade. Morreu para a arte de fazer rir, mas não lhe morreu a persona que nos faz, de facto, rir. E pensar. Consequências? Viu a estreia do seu novo filme, I Love You, Daddy, adiada indefinidamente e os seus especiais para o Netflix foram cancelados.

Mas, morrendo Louis CK, não morrem as suas análises pormenorizadas e carregadinhas de sarcasmo e pontaria dos pormenores da vida, não morre o Louie, não morre o Hilarious nem morre o Oh My God.

Kevin Spacey, Terry Richardson e Louis CK, três corpos que serão velados enquanto lhes existirem os corpos. Foram eles, os corpos, que fizeram deles artistas, mas também foram eles, os corpos, que lhes puseram um fim. As almas, essas, estão destruídas. Resta-lhes (resta-nos) a sua arte.

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aqui jaz quem não interessa

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Entre 17 de Agosto de 2017, data do ataque terrorista em Barcelona, e 31 de Outubro de 2017, data do ataque terrorista em Nova Iorque, houve 183 ataques terroristas em todo o mundo, 147 com vítimas mortais.

Em Barcelona, morreram 16 pessoas. Em Nova Iorque, morreram oito. Em todas as cidades que não interessam – porque pouco ou nada se falou delas, morreram 1353 pessoas. Mil trezentas e cinquenta e três.

Entre Barcelona e Nova Iorque, houve ataques terroristas (com mortos que não interessam – porque pouco ou nada se falou deles) em Arauca, Riosucio, Bujumbura, Semdinli, Mindanao, Djibo, Bagdade, Latakia, Península do Sinai, Gashua, Damasco, Samarra, Maluso, Turku, Acayucan, Maiduguri, Waddan, Lashkar Gah, Al Anbar, Kousséri, Cabul, Timbuktu, Kirkuk, Tall’Afar, Helmand, Mogadíscio, Khasavyurt, Kaspiysk, Dar’a, Sirnak, Ekeremor, Lice, Mandera, Jalalabad, Hamah, Dikwa, Lamu, Sirte, Tiaret, Karachi, Cukurca, Kismayo, Najaf, Kidal, Hakkari, Tegucigalpa, Srinagar, Ngala, Baidoa, Bingol, Siirt, Anantnag, Jos, Ramadi, Beledweyne, Arish, Mazar-e Sharif, Miraflores, Nasiriyah, Yala, Candaar, Deir ez-Zur, Ghormach, Mossul, Qamishli, Chamam, Trai, Tambopata, Yenagoa, Kanker, Agri, As Salamiyah, Chihuahua, Kano, Ar Raqqah, Al Haqlaniyah, Legaspi, Misratah, Yuksekova, Diyarbakir, Jeddah, Beni, Quetta, Mombaça, Ghazni, Gardez, Kiev, Manama e Banki. Também houve em Las Vegas. 58 mortos. Mas o terrorista foi um homem branco e norte-americano. Por essa óbvia razão, “não foi terrorismo, foi demência”, disse Trump.

O cortejo fúnebre vai decorrendo, assim, por aquela parte do mundo que não interessa – porque não é a Europa nem os Estados Unidos da América –, num ruído que mal nos chega, porque deste lado achamos que aqueles mortos nunca sequer foram vivos. E hoje, dia 2 de Novembro de 2017, é o dia deles. Ou será o nosso?

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web summiu, é com tristeza

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É com tristeza que se lamenta a morte da tecnologia em Portugal. A última vez que foi vista com vida foi esta quinta-feira, dia 9 de Novembro, na zona do Parque das Nações, em Lisboa.

O funeral será realizado em local e data a anunciar, logo assim que se obtiver a certidão de óbito, com um prazo de emissão a depender de cada conservatória. Em média, 15 dias úteis, contados a partir do pagamento da taxa de emissão do documento.

Esta mudança de morada (da vida para a morte) seguirá o seu percurso habitual, sendo necessário ir à Loja do Cidadão às 6h para conseguir senha que permitirá ser atendido às 11h no primeiro departamento, o das Finanças. Segue-se o departamento da Segurança Social, o da Água, o da Electricidade, o do Gás, o da Televisão e o da Internet. Pelas 18h, o pedido de mudança de morada já terá entrado no sistema.

De esperar que o percurso entre a igreja e o cemitério não sofra qualquer percalço a nível de trânsito. Se houver acidente, haverá uma catrefada de papéis a preencher, em duplicado e com uma caneta. Se a carrinha funerária estacionar em sítio indevido, será necessário ligar para a EMEL, ficar em lista de espera, desesperar, desligar, fazer o download da app, abrir a app, ver que a app não funciona, fechar a app, voltar a ligar para a EMEL, voltar a ficar em lista de espera, voltar a desesperar e por aí fora.

Em princípio, o funeral não será realizado em dia de eleições. No entanto, se isso acontecer, o mais provável é haver pouca gente nesta última homenagem à vítima, visto que só é possível votar num único sítio e de uma única forma, no local da sua residência e rabiscando um papel.

Rezemos, ainda, para que o tempo ajude. As previsões meteorológicas apontam para temperaturas que raramente se verificam. Rezar, não sendo, parece ser a única solução.

A quem não possa estar presente no funeral e pretenda colmatar a sua ausência com um donativo monetário, poderá fazer transferência bancária, mas só de segunda a sexta-feira, até às 15h.

Qualquer informação adicional será comunicada no prazo máximo de 30 dias úteis. Por carta.

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o mês da morte de 2017

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Tinha uma vida inteira pela frente. Partiu cedo demais. Paz à sua alma. O corpo, porém, continua por cá, vegetando pelos corredores dos dias.

É a alma que interessa nisto da vida, nada mais, e é por isso que se declara, em pleno mês de Outubro, o fim de 2017, malogrado ano comum do calendário gregoriano.

2017 morreu porque Portugal viajou no tempo. E tempo é coisa que nos falta.

No Porto, mais especificamente no Tribunal da Relação, houve um regresso ao ano de 1886. Foi no Código Penal desse ano que os juízes se basearam para justificar a violência doméstica de que uma mulher foi alvo, após ter traído o marido. Houve um outro regresso, no mesmo acórdão, aos tempos idos descritos no Antigo Testamento. Sim, a Bíblia também foi consultada para tomar uma decisão jurídica. Morreu 2017 e morrem dezenas de mulheres às mãos (fechadas) da violência doméstica, todos os anos em Portugal.

Em Leiria, Portugal regressou ao século XII, quando ainda não havia Pinhal do Rei. Culpem-se os incendiários, o governo, o SIRESP e os eucaliptos. Morreu 2017 e morreram 700 anos de fauna, flora e História.

Em Lisboa, a viagem temporal não foi ao passado, mas sim ao futuro, um não muito longínquo (nem melhor), 2050, por aí, onde as máquinas ocupam os lugares dos seres humanos fazendo, entre outras coisas, discursos desprovidos de humanidade e empatia. A máquina chama-se António Costa e, nas suas palavras/códigos binários sobre a tragédia das chamas, demonstrou a sensibilidade de um sistema operativo. Morreu 2017 e morreu gente que não foi protegida pelo Estado. Viagem ao futuro ou ao passado?

O cortejo fúnebre do corpo fará o seu percurso até ao dia 31 de Dezembro, voltando a sofrer, com toda a certeza, alguns desvios temporais. A alma, essa, morreu este mês. Enquanto isso, nós aguardamos, sem alma e com expectativa, que ano nos trará o dia 1 de Janeiro. E cá vamos vivendo, sem tempo.

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portugal em câmara-ardente

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É com profundo pesar que se lamenta o falecimento de Portugal. O seu corpo estará em câmara-ardente em todas as capelas mortuárias frequentadas pelas gentes que, impotentes, viram o fogo comer-lhes a vida.

Todos os anos, Portugal falece. Todos os anos, Portugal renasce. E é deste jeito ciclicamente moribundo que Portugal existe — ou melhor, que vai existindo (querido gerúndio que diz tanto de nós — é cá, mais do que em qualquer outra terra do globo, que se vai existindo, que se vai andando, que se vai fazendo, até morrendo). Não é, portanto, de estranhar, que Portugal tenha sido (vá sendo) vítima desta doença prolongada.

A missa de corpo presente terá (vai tendo) lugar em todas as igrejas do território, no entanto, de nada irá valer se as orações ficarem pelas orações, caindo — como sempre caem — no saco vazio das boas intenções.

Informa-se (vai-se informando) todos os que pretendam prestar as suas homenagens que o façam através dos livros de condolências existentes nos órgãos de comunicação social e nas redes sociais, com poses tristes, gravatas negras, fotografias fortes, olhos vermelhos, palavras mecânicas, hashtags e soluções fáceis para combater este constante falecimento.

A família enlutada cumpre (vai cumprindo) a dolorosa obrigação repetitiva do luto, chorando agora em directo e sendo esquecida depois. E é esquecendo que o país se repete.

Fica a saudade. Vai ficando.

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temos de falar sobre o papa

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“A ciência é muito clara sobre as alterações climáticas. Quem as nega, será julgado pela História.” Há duas conclusões a tirar desta declaração do Papa Francisco. A primeira: ele tem razão. A segunda: ele está na cadeira errada.

As alterações climáticas são reais e estão a deixar-nos à beirinha da extinção. É verdade. Mas também é verdade que ter o Papa do lado da ciência vai contra o livro de estilo da igreja católica. Não faz sentido o seu líder basear a sua opinião na ciência. É uma contradição, valha-me deus (tal como esta, vinda de um ateu praticante).

“A religião é o ópio do povo”, dizia Hegel, na introdução de uma das suas obras. Eu digo o mesmo, mesmo não sendo Hegel, mesmo sendo povo. Qualquer que seja a religião, é baseada em invenção, suposição, mentira. Os factos estão do lado da ciência.

No entanto, neste mundo dominado pela ciência, é um homem da religião que a vem defender. Não um homem qualquer, o líder. Enquanto o “líder do mundo livre” nega os factos, o “líder do mundo imaginário” alerta para eles. E não apenas factos científicos. Se o Papa condena o racismo, Trump incentiva-o; se o Papa recomenda que a igreja acolha os homossexuais sem os julgar, Trump repele o casamento gay. Nestes e noutros temas, tanto o Papa como Trump parecem defender o oposto do que as suas “pátrias” defendem (ficariam tão melhor se trocassem de cadeiras).

Não deixa de ser curiosa esta troca de papéis num mundo cada vez mais dominado pela ciência. É ela quem tem a bola, mas quem parece controlar o jogo é o irracionalismo, o medo, o preconceito, a ignorância. O líder do mundo tecnológico controla, cuspindo fogo; o líder do mundo fantástico joga de vez em quando, usando os neurónios.

O Papa Francisco deveria ser o vilão. Mas não é fácil odiá-lo (como devem ser odiados os vilões). É fácil odiar o Bin Laden, o Frankenstein e o Scar. É fácil odiar o Rei Claudius, o Kim Jong-Un e a Cersei Lannister. Até era fácil odiar o Papa Bento XVI — um líder perfeitamente representativo da igreja que liderava. Não é fácil, porém, odiar o Papa Francisco. Porque, mesmo representando o lado da religião, é um líder bom, simpático, ponderado, compreensivo, amável, tolerante e, essencialmente, humano.

Humanidade, venha ela de que lado vier, talvez seja o que nos esteja em falta. Não para que se encontre quem odiar, mas para que continue a haver História. Sem julgamentos. Mesmo com papéis trocados.

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ninguém morre de cancro

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“Há que dizer-se das coisas / o somenos que elas são. / Se for um copo é um copo / se for um cão é um cão”. Menos se for um cancro, Ary. Nesse caso, é uma doença prolongada.

Em Portugal, não se morre de cancro. Morre-se de “doença prolongada”. Porque dizer cancro é dizer realidade e a realidade aleija muito. E ninguém se quer aleijar.

“Morreu vítima de doença prolongada”, ouve-se e lê-se nos órgãos de comunicação social. João, Fátima, Henrique, o nome é irrelevante, a doença não. Mas parece ser, já que não se diz qual é. Talvez seja essa a ideia, não dizer “cancro” para que o cancro não nos possa ouvir e esquecer-se de nós, desaparecer e deixar-nos tranquilos – e vivos – na nossa vidinha.

Para isso, refugiamo-nos na “doença prolongada”. O eufemismo faz parte do vocabulário de uma língua e usamo-lo como mecanismo de suavizar uma palavra ou expressão que possa ser desagradável. “Se sentimos necessidade de usar eufemismos para falar da morte é porque, na cultura a que pertencemos, evitar a palavra é um sinal de respeito pela dor do nosso interlocutor dos falecidos”, diz o lexicólogo e professor João Paulo Silvestre. Certo. Mas defendo o contrário, e pela mesma razão.

Dizer “doença prolongada” não respeita, funciona como um cobertor de coisa vaga que relativiza a sua importância, que atenua a realidade e que coloca a vítima no biombo do indefinido.

Há pudor nos órgãos de comunicação social que não os deixa dizer que o João, a Fátima ou o Henrique morreram de cancro. E há ironia nesse pudor. Abre-se o telejornal com a vítima da doença prolongada e continua-se o telejornal com a imagem de uma criança lavada em sangue por um bombardeamento na Síria.

Parece uma história de crianças, esta que nos contam diariamente, ao apresentar- nos o cancro como uma espécie de Voldemort, “aquele cujo nome não deve ser pronunciado”. Mas negar o nome é como negar a doença. Não dizendo, não a faz desaparecer. Dizendo, não a multiplica. E, das duas, uma: escondemo-nos no eufemismo ou encaramos a realidade. E a realidade é que, na vida, não há magia.

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a repetição do conforto

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“Nada é mais certo neste mundo do que a morte e os impostos”. A frase é de Benjamin Franklin e vem provar algo de muito evidente: Benjamin Franklin nunca esteve em Portugal. Cá, há duas coisas mais certas do que a morte e os impostos: os incêndios e as cheias.

E, com essa certeza, vem outra: a de que vai continuar a haver portugueses especialistas nos incêndios e nas cheias.

Este ano, os incêndios atacaram o nosso país de forma dramática. Infelizmente, há deles que continuam e outros que talvez venham a atacar. No entanto, esta semana, choveu. Muito. Especialmente em Lisboa, provocando cheias. E claro que este contraste tão temporalmente próximo veio pôr a nu uma das mais vincadas características dos portugueses: o refilanço. Mas fundamentado, claro, sempre fundamentado.

Claro que isto não é exclusivo dos portugueses, mas a nossa queda para o fado e para o drama dá outra graça (e tragédia — que estes andam sempre de mão dada) a isto.

As razões são simples, dizemos nós: incêndios “porque as matas não são limpas” e “porque a floresta foi mal plantada”. Cheias “porque os esgotos estão entupidos” e “porque as ruas estão mal feitas”. Soluções? Mais simples ainda. Para os incêndios: “pôr os militares a limpar as matas” e “responsabilizar os proprietários”. Para as cheias: “obrigar as pessoas a limpar as ruas” e “controlar as barragens”.

Todos os anos, desde o ano de 1143, que Portugal tem incêndios e tem cheias. Não tinha antes porque antes não havia Portugal. E todos os anos, desde esse ano, que há portugueses a elaborarem teses de doutoramento do bitaite sobre os incêndios e sobre as cheias.

Temos todas as razões e soluções na ponta da língua, quase como se já estivessem engatilhadas desde o último evento deste tipo. Depois, é só disparar. E andamos neste círculo vicioso, nesta lenga-lenga de crítica, que nunca muda e que nunca faz mudar.

Mas talvez seja essa a nossa vontade. Que nunca mude. Quase como se precisássemos dos incêndios e das cheias para podermos mostrar que sabemos por que razão acontecem e qual a solução para que deixem de acontecer.

Mas será mesmo (só) isto? Ou estaremos reféns destes eventos por nos darem o conforto da sua previsibilidade? Falar de incêndios e de cheias em Portugal é quase como falar do jogo da nossa equipa. Sabemos tudo. Quem marca os livres, quem põe o fogo e quem entope os esgotos. Golo.

Sair do conforto é que não. Esmiuçar os incêndios e as cheias, sim, por favor, todos os anos. Sabemo-los de cor. Discutir, de forma constante, qualquer outro tema que nos coloque fora de pé é que já não dá jeito. As nossas opiniões repetem-se a cada ano não porque a História se repete, mas porque nós repetimos a História.

Opinar sobre os incêndios e sobre as cheias poderá ser uma espécie de tapar o sol (e a chuva) com a peneira da nossa falta de conversa e de coragem. Evitando silêncios que nos embaraçam e disparando conversas repetitivas que nos tornam seres humanos repetitivos. E, para isto da repetição, já nos bastam os impostos. E a morte.

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a morte do silêncio

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Numa sociedade de movimento, espectáculo e ruído, é difícil termos instantes de silêncio. Raras vezes convivemos com ele — por obrigação ou por vontade. É assim que ele se torna num corpo estranho para nós. E ignoramo-lo. Sem razão. A sociedade é ruído. É por isso que o silêncio é tão necessário.

“Ouve-me, ouve o meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa. Capta essa outra coisa de que na verdade falo porque eu mesma não posso”. A Clarice Lispector fala e nós devemos falar com ela. Mas sem falar, que, falando, acabamos com ele.

Ele é o silêncio e ele está a morrer. Pelo menos em parte das homenagens realizadas em Portugal. Em cada “minuto de silêncio” de louvor às vítimas dos incêndios, dos ataques terroristas ou de qualquer outra tragédia, o minuto é de aplausos, e os aplausos são de tudo menos de silêncio.

Aplaudir é outra forma de homenagem, é certo, uma espécie de levantar a cabeça, de mostrar que nada nos abate, um olhar e andar em frente. Nada contra. Mas tudo errado. Aplaudimos quando deveríamos silenciar. E porquê? Por gosto pelas palmas ou por medo do silêncio?

O silêncio traz a reflexão obrigatória, o mergulho no vazio que nos obriga a estarmos sozinhos connosco, com os nossos pensamentos, com a nossa profundidade. O momento já é delicado — homenagear alguém. Acrescentar, a esse momento, a sensibilidade de estarmos connosco talvez nos deixe desconfortáveis.

Associamos o silêncio à solidão e essa solidão adensa-se no contraste de estarmos rodeados de gente — como sempre estamos nestas homenagens públicas. As palmas, por sua vez, talvez sejam as palavras que não dizemos, as conversas que não temos com essa gente, que preenchem este vazio interior que há em todos os que lá estão.

Silêncio e solidão, dois conceitos e estados dos quais parecemos fugir a sete pés. Não por serem intrinsecamente maus, mas por nos obrigarem à companhia que talvez mais nos atormente hoje em dia, nós próprios. Fugimos de nós. E esta fuga merece um minuto de silêncio, não de aplausos.

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a banalidade do mal

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Quando Adolf Eichmann foi julgado em Israel, Hannah Arendt estava lá – como correspondente da New Yorker. Esperava ver um monstro, mas viu “um homem normal, um simples funcionário público que cumpriu os seus deveres enquanto responsável máximo das deportações dos judeus para os campos de extermínio”.

Eichmann “apenas” agiu segundo o que acreditava ser o seu dever. Nunca reflectiu sobre o Bem ou o Mal que as suas acções pudessem causar. Não foi capaz de fazer um julgamento moral das suas atitudes – se fez, fez o julgamento errado. O Mal tornou-se, assim, banal. É o que diz a filósofa alemã e é o que nos mostra a sociedade.

De certa forma, o Mal continua banal em nós. Uma marcha do Ku-Klux-Klan apoiada pelo Presidente dos Estados Unidos é só mais uma notícia de abertura de telejornal, um ataque terrorista do Estado Islâmico é uma simples nota de rodapé. O constante bombardeamento informativo sobre guerras, doenças, injustiças, fome, assassinatos tornou-nos anestesiados perante o Mal. Não que não o reconheçamos, não que não o sintamos, mas a verdade é que o banalizámos. De tanto o vermos, de tanto o termos à nossa frente, ele acabou por fazer parte da nossa vida.

O Mal entra-nos mente adentro com uma facilidade infantil. E nós deixamos que isso aconteça – até lhe abrimos a porta. Quando nos apercebemos, já ele é mobília. E, ao fazer-lhe isso, estamos a fazer uma única coisa: a faltar-lhe ao respeito.

E essa falta de respeito talvez nasça da falta de seriedade com que o encaramos, da falta de profundidade com que o discutimos – talvez, até, da falta de profundidade com que discutimos a vida toda. Será que nos interrogamos o suficiente? Ou estaremos a engolir tudo o que nos põem no prato sem fazer grandes perguntas?

Agora somos nós que estamos cá, incapazes de resistir às ordens desta sociedade do banal – o que nos torna, também, um bocadinho Eichmann, desumanos e superficiais, meros “funcionários públicos” que cumprem os seus deveres. Sem pensar.

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antagonista, o nosso herói

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Mais do que de heróis, precisamos de vilões. E o mundo tem-nos dado alguns. De Herodes a Gengis Khan, de Calígula a Hitler, das segundas-feiras a qualquer árbitro de futebol, são muitos os antagonistas que se nos opõem. E isso não deixa de ser estranho.

O antagonista é aquele que se opõe a algo. Não tem de ser uma pessoa, não tem, sequer, de ser um ser. Pode ser uma ideia, pode ser uma emoção, pode ser o que for, desde que represente a força opositora contra a qual o protagonista tem de lutar. E esta luta protagonista vs. antagonista é uma luta de sempre, nascida da luta dicotómica que nos vai existindo ao longo da existência entre o bem e o mal.

Mas isto do bem e do mal existe verdadeiramente? E seremos nós protagonistas ou antagonistas? Estaremos confinados a tais definições? Existindo, sendo ou estando, há sempre um antagonista.

Na ficção, é ele a alavanca que faz o herói ser herói. O que seria do Batman sem o Joker? Qual seria a importância do homem-morcego se o palhaço não fosse tão complexo no poder que exerce? O Batman não seria tão herói se o Joker não fosse tão vilão. E, quem fala do Joker, fala do Darth Vader, do Hannibal Lecter, do Lex Luthor e de tantos outros.

“Quem luta contra nós reforça os nossos nervos e aguça as nossas habilidades. O nosso antagonista é quem mais nos ajuda”. A frase é de Edmund Burke, filósofo e político emblemático do século XVIII, e reforça esta ideia: a de que o antagonista é essencial para o desenrolar da história que, no caso da realidade, se chama vida.

A vida está carregadinha deles. Os Estados Unidos, por exemplo, são exímios na arte da criação de vilões. Rússia, Iraque, Al Qaeda ou Estado Islâmico são apenas alguns do vasto leque que lhes permite manter-se como a maior potência mundial e líder do “mundo livre” – um estatuto que alcançou após um dos momentos mais sangrentos – e de maior desenvolvimento tecnológico – da História Mundial, a Segunda Grande Guerra. Aliás, os EUA não só investem na luta como também – e talvez essencialmente – na manutenção de um alvo a abater.

Ser herói per se não existe, ser herói sem vilão é ser não-herói. É o antagonista que faz o protagonista. Está escrito em todos os (bons) manuais de guionismo – “Numa história, deve ser o antagonista a comandar as operações. O protagonista apenas reage à acção do antagonista” – Robert McKee, um dos gurus da escrita de guião.

Talvez por isso o mundo gire tanto em torno do opositor, do mau, do vilão. Basta ligar a televisão e, mais do que explicações, procuramos culpados. Ter um antagonista declarado ajuda-nos a apontar armas a um alvo específico, tendo um objectivo. A ausência de objectivo deixa-nos ao deus dará. Precisamos do ódio para nos equilibrar o amor. Precisamos do não para nos equilibrar o sim. Precisamos desta certeza de equilíbrio universal.

E o universo português é paradigmático desta importância vital do antagonista. O nosso sangue melancólico talvez ajude, na medida em que nos coloca constantemente em situação de vítima perante o outro, seja ele o governo, o patrão, o árbitro ou a saudade. Não nos faltam antagonistas para combater. Só nos falta sermos heróis. É o nosso fado.

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a realidade e o golfinho

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“O novo bebé-golfinho do Zoomarine promete ser uma das principais atracções do Parque nos próximos tempos. Hoje, mostramos-lhe imagens exclusivas do seu nascimento”. Esta foi a última notícia de um bloco informativo num dos nossos canais de televisão.

A notícia do nascimento de um golfinho é um clássico dos telejornais portugueses. Depois das notícias que nos fazem ter vergonha do ser humano, eis que surge, como luzinha optimista ao fundo do túnel, a informação de que nasceu um golfinho.

Todos estamos a par do carácter jornalístico deste acontecimento e todos estamos a par da raridade deste fenómeno da natureza: o nascimento de um animal. E, por isso, devemos agradecer a todos os intervenientes: ao carácter, ao jornalismo, à raridade, ao fenómeno, à natureza e ao animal.

No entanto, o agradecimento que eu proponho é um agradecimento sincero, sem ironias. Saber do nascimento do golfinho ajuda-nos a lidar com esta coisa da realidade que, muitas vezes, nos envergonha. Esta notícia, não sendo notícia, funciona como uma almofada para a nossa sanidade. “Calma, o mundo não está assim tão mal. O Kim Jong-un está a brincar com mísseis e o Maduro está a torturar gente que não gosta dele, mas nasceu um golfinho! E é tão lindo”…

O golfinho é o airbag que a comunicação social nos dá sempre que batemos de frente com a realidade. E, quem diz golfinho, diz panda, foca, gato ou cão. E, quem diz realidade, diz apocalipse.

Eu digo que isto sempre aconteceu e que sempre vai acontecer. É vital que o ser humano tenha este escape à realidade que se lhe apresenta. Agora, faz sentido esse escape ser proporcionado por um meio de comunicação social cujo objectivo é, ou deveria ser, divulgar uma informação de interesse público? O nascimento de um golfinho é, sequer, uma informação de interesse público? Se sim, é almofada suficiente para nos proporcionar esse escape à realidade? Não faço ideia.

A verdade é que é interesse nosso não nos cingirmos a uma realidade onde se brinca com mísseis e se tortura gente. Essa realidade existe e deve ser encarada, mas há outras realidades que nos são urgentes para que possamos sobreviver com saúde mental. O nascimento do golfinho (ou do panda, da foca, do gato ou do cão) é uma delas. E isso é serviço público.

E não é de estranhar que estas notícias de fuga à realidade sejam, na sua grande maioria, sobre animais. Talvez por uma necessidade de aproximação à nossa origem, talvez por serem eles os representantes de uma pureza e ingenuidade que estamos a perder, talvez por outras razões que se relacionem com a nossa forma de relação com os outros.

“A compaixão para com os animais é das mais nobres virtudes da natureza humana”, disse Darwin. Talvez o jornalismo, cada vez mais criticado por ser uma montra da realidade violenta – tornando-nos apáticos e quase imunes à compaixão -, nos esteja a equilibrar a mente ao mostrar-nos que, afinal, ainda podemos sentir que o mundo não está assim tão mal.

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a felicidade do suicídio

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“Tristeza não tem fim, felicidade sim”. Lêem-se as palavras de Vinicius de Moraes e ouve-se a melodia de Tom Jobim. Da felicidade, porém, nem um sinal.

Definição de suicídio no Dicionário da Língua Portuguesa: “substantivo masculino| acto ou efeito de suicidar-se; tirar a própria vida”.

Chester Bennington, vocalista dos Linkin Park, suicidou-se este mês. Por ser figura pública, muito se falou sobre a sua morte e sobre as razões que o levaram a cometer tal acto. O músico parecia ter (e talvez tivesse) uma vida perfeita: sucesso profissional, família, amigos, fama e dinheiro. Para muitos, a definição de felicidade. Mas o que é isso da felicidade?

A felicidade é a cenoura à frente do burro. A sociedade é quem está em cima do burro a segurar na cenoura. Sobramos nós e o burro. A associação é lógica – não preciso de a dizer.

A cada instante, a sociedade acena-nos a cenoura com o objectivo de nos fazer salivar e ir atrás dela. No entanto, nunca a apanhamos. A cenoura continuará à frente dos nossos olhos, e nós sem lhe conseguirmos tocar. Compramos um telemóvel, mas há sempre um mais evoluído por ter. Conseguimos o melhor emprego, mas há sempre um que nos poderia dar um melhor salário. Conseguimos a mulher mais bonita, mas há sempre uma Mila Kunis no nosso raio de visão. A constante criação de felicidades vai formando um ciclo vicioso que se repete ad æternum.

Esta impossibilidade de alcance gera frustração. E a felicidade ali ao virar da esquina.

Mentira. Não está. Nunca está. E esta frustração de não estar bate mais forte no peito dos mais sensíveis, como os artistas, seres que escarafuncham as entranhas da sensibilidade. A maioria das pessoas reage a ponto de não se matar. A maioria. Não todas. O Chester matou-se. O Chris Cornell matou-se. Até a Marilyn Monroe se matou. Artistas.

Aliás, este “tirar a própria vida” acaba por, estando certo, estar errado. A vida, sendo nossa, não é nossa de verdade, na medida em que não a escolhemos. Não escolhemos nascer, não escolhemos o sítio onde nascemos, não escolhemos os nossos pais, não escolhemos as pessoas que nos rodeiam, não escolhemos a data nem a forma nem o local da nossa morte – pelo curso natural da vida. Temos outras escolhas ao longo da nossa existência, mas estas, as vitais, não partem da nossa vontade.

“Não podemos impedir o nosso nascimento: mas podemos corrigir esse erro (…) Quando um homem se suprime a si mesmo, ele faz a coisa mais digna de respeito. Quase conquista o direito a viver”. As palavras são de Nietzsche, o filósofo alemão que apregoava o amor à vida, mas que defendia o suicídio na altura exacta, “a morte livre, consciente, sem acaso”. Mas será que o suicídio é mesmo a única decisão livre que podemos tomar? Ou é apenas uma forma de fuga perante o vazio conceito da felicidade?

O suicídio talvez seja pregar uma partida à morte, não à vida. O suicídio talvez seja virar o tabuleiro do xadrez a meio do jogo. E agora, quem ganhou? Há, sequer, vitória quando ambos perdem?

Perdeu o Chester, o Chris (e até a Marilyn). O suicídio foi a única solução que eles encontraram para contrariar esta imposição (e ilusão) social chamada felicidade. A cenoura continua à nossa frente. E nós continuamos a olhar para ela. Salivamos, corremos, fracassamos e morremos.

“Tristeza não tem fim, felicidade” também não, porque nem chegou a ter princípio.

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emoji, coração líquido

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“Há palavras que nos beijam como se tivessem boca”. Lindo e verdade, O’Neill. Hoje, porém, além de palavras, há emojis. Há emojis que nos beijam como… Hum, não sei se isto faz sentido. Bauman, anda cá.

Esta semana, comemorou-se o Dia Mundial do Emoji, aquele bonequinho que existe online para transmitir coisas – emoções, também – às pessoas. Segundo dados oficiais do Facebook, só nesta rede social, são partilhados mais de 60 milhões de emojis diariamente. Pouca coisa, portanto. Não há estudos para o número de palavras partilhadas, mas a verdade é que o emoji está a crescer a olhos (com corações) vistos e a ganhar uma casa própria.

Quase parece que a palavra feita de letras está a ser derrotada – ou a sofrer um ataque de cócegas, vá – por um batalhão de bonequinhos amarelos. Hoje, “amo-te” diz-se com um emoji de um coração vermelhinho. Não é pior nem melhor do que “antigamente”, é diferente. É sinal dos tempos, e os tempos mudam num instante. O “antigamente” é o dia de ontem. Literalmente.

E é aqui que entra Zygmunt Bauman, filósofo e sociólogo polaco, que vem chamar ao tempo de hoje Modernidade Líquida – não mais do que um período de fluidez e vulnerabilidade das relações sociais. “Tudo o que era sólido se liquidificou”, tal como as palavras – coisas sólidas e cheias – andam a ser substituídas pelos emojis – coisas líquidas e esguias. As palavras dizem, os emojis dão a entender. As palavras vão, os emojis ficam a meio caminho.

Esta necessidade de não-apego ao outro (por necessidade de contacto constante com todos) talvez seja o motivo para o uso cada vez maior de símbolos “leves” que não comprometem nem afastam, que não beijam nem magoam, que andam ali por entre os links da chuva das relações.

O coração vermelhinho pode dizer “amo-te”, mas também pode dizer ternura, amizade ou, simplesmente, coração – o músculo. Há um não-comprometimento, quase um politicamente correcto na comunicação por emoji. Se ele for bem aceite, era precisamente isso que se queria dizer; se não, era outra coisa, a pessoa é que entendeu mal, e dá-se a volta ao “texto”. O emoji é uma palavra que dá para ser mudada a meio do jogo, é uma espécie de batota da linguagem. Só “amo-te” quer dizer “amo-te” (por muito mentira que possa ser).

“Há palavras que nos beijam como se tivessem boca”. E há emojis que nem sequer sabem o que é um beijo.

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belas e feios, ricos e pobres

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O curioso na morte é que, sobre as belas, recorda-se o pior do que foram enquanto vivas e, sobre os feios, recorda-se o quanto eles até nem eram assim tão feios. Marilyn era “toxicodependente” e “conflituosa”; al-Baghdadi era “pacífico” e “envergonhado”.

“Morreu a mais bela mulher do mundo”, escreveu Ruy Belo, assim que se soube da morte de Marilyn Monroe. Morreu o mais feio homem do mundo, escrevo eu, agora que se sabe do fim de Abu Baqr al-Baghdadi.

Nem eu sou Ruy Belo nem al-Baghdadi é Marilyn. Infelizmente para todos. Mas sou capaz de ter razão quando digo que ele era o mais feio homem do mundo.

Abu Baqr al-Baghdadi, um dos mais desumanos líderes jihadistas de sempre, era a cabeça (e a barba) do Estado Islâmico na Síria. Parece que morreu em Maio, num ataque dos russos. No entanto, só agora se confirma o seu fim — é o que diz o Observatório Sírio dos Direitos Humanos, sublinhando a informação que está a ser divulgada pela televisão iraquiana.

Apesar da pouca confiança que devemos depositar no regime russo e, essencialmente, na televisão (seja ela de que terra for), tudo indica que, de facto, Abu Baqr al-Baghdadi morreu. Como morre toda a gente, aliás. Belas e feios, ricos e pobres, assassinos e poetas.

Quando digo feio, não falo de cara nem de corpo, que isso pouco importa para a beleza, mas de alma — ou dessa coisa que faz da pessoa o que ela é de verdade, sem o preconceito básico dos sentidos. Marilyn era a mais bela mulher do mundo por ter a alma — ou essa coisa que faz da pessoa o que ela é de verdade — bela.

O curioso nas mortes das belas e dos feios é que, por uma qualquer tentativa de equilíbrio da percepção que deixam no mundo, sobre as belas, recorda-se o pior do que foram enquanto vivas e, sobre os feios, recorda-se o quanto eles até nem eram assim tão feios (nem tão porcos, nem tão maus).

Basta googlar: Marilyn era “toxicodependente”, “conflituosa” e “fez, pelo menos, 12 abortos”; al-Baghdadi era “pacífico”, “envergonhado” e “o melhor jogador de futebol da mesquita, um Messi”.

Mas há mais. O pacifista Gandhi, por exemplo, era “misógino”, “racista” e “forçava mulheres a dormir com ele”; o tirano Hitler era “sensível”, “vegetariano” e “defensor dos animais”.

Até por cá: a popular fadista Amália era “fascista”, “contrabandista” e “bêbeda”; o ditador Salazar era “um homem bom”, “simples” e “humilde”.

Os bons tornam-se maus, os maus tornam-se bons. Tanto bons (ou belas) como maus (ou feios) continuam numa dimensão quase etérea. Às belas, sabe-nos bem vê-las cair de lá do alto, atribuindo-lhes defeitos maiores do que os que temos — inveja nossa. Aos feios, perdemos o medo quando lhes damos características de gente. Somos nós que os criamos e somos nós que os fazemos cair ou levantar – como se os obrigássemos a serem humanos.

Humanos que são belos e feios, ricos e pobres, assassinos e poetas. E eu continuo sem ser Ruy Belo. Infelizmente para mim.

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