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ele, alguém, telefonia

Comentários (0) cada um é muita gente, contos

Não sei quem é, nunca o vi – não sei se existe alguém que já o tenha visto. Mas ele existe e, se eu o oiço, também eu existo. Na verdade, nunca o ouvi – o que me leva à dúvida lógica de se alguma vez eu existi. Oiço, isso sim, o que ele põe a tocar. Diria que é para mim, mas é para toda a gente que por ali vai a passar. Ou só para ele – nem toda a gente vive só para os outros, para mostrar. Sábado de manhã e lá está o senhor, ou a prova sonora de que, de facto, o senhor está, com o rádio sintonizado, certamente com amor, algures entre o chuvisco e as canções, entre as palavras e os trovões, mas numa espécie de som bordado que faz daquela manhã, naquele lugar, um espacinho bom onde estar. Olhando a porta, assim do fundo das escadas, um chapéu de palha pendurado e uns pedaços de pano – um Tom Sawyer escondido. E ele em nenhum lado, talvez lá dentro, fechado, desumano. Ou perdido. Como se apenas comunicasse assim, através do éter da telefonia. Lá, do meio do jardim, durante o dia. Nem é bem jardim, é casa velha e um pomar, coisas a chegar ao fim, e o rádio a tocar. Nem sempre é melodia. De vez em quando, é chinfrineira. A vizinhança bem queria mas, naquela manhã daquele dia, parece a feira. Contrasta com o castelo e com o verde que se vê, com os passarinhos que cantam, com o jornal que se lê. E está tudo bem com isso – pelo menos, parece estar. É como se houvesse o compromisso de, naquela manhã daquele dia, o rádio tocar. E não se ouve mais nada. Só, de vez em quando, o cão a ladrar – uma espécie de locutor que mantém o ouvinte no ar. Tudo ali é quase Kusturica, quase Chopin. E tudo ali fica, naquela manhã. É como se fosse uma ilha e, à volta, a cidade que é o mar. Um chinfrim de maravilha logo ao acordar. Eles fazem parte daquela paisagem – ele, que não o vejo, a casa e o barulho. Há também uma garagem, quase de certeza com entulho: ferramentas e pó, tudo ao calhas, um homem só e um rádio com falhas. Uma algazarra, naquela casa deserta. Um grito de garra, com notícias à hora certa.

Jornal de Leiria

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