não era fado-canção II
Um tirinho até ao fim. Vão-se os sonhos e as danças, já não há rosa nem algodão, e as crianças só nas lembranças daquilo que lhes resta do coração. Já não há “beija, beija”, há “trabalha, trabalha, paga, paga”, e tudo não passa de tralha que se acumula e estraga na ida e volta do cacilheiro, e tudo parece metade porque, na verdade, nada é inteiro. Ele trabalhava, ela trabalhava, e a vida andava como deus queria (assumindo que deus existe além da eucaristia). Trabalho-casa, casa-trabalho, e o ganha-pão ganhava-migalha. No chão, um cão e um pirralho. Nos pratos, palha. “Mas tudo melhora”, dizia ele. “Vou lá fora fumar”. Ele não fuma, chora, ele estava a chorar. E ela, à panela, via a novela entre aventais. Ele voltava e ainda fumava, não fumava, chorava cada vez mais. Ele homem, ela mulher, um cão e um filho. Tudo perfeito, família, dinheiro, alegria. Só faltava premir o gatilho. Perfeição? Não, ironia. Ilusões desfeitas aos trambolhões assim que viram que a cidade, afinal, não lhes dava sanidade, pelo menos, mental. Mas era melhor viver doente, lutando, do que voltar ao antigamente, desistindo. “Cá ando”, dizia ela, “resistindo”. Estrangeiro? Talvez fosse solução, mas não havia dinheiro nem para pôr na boca de um cego uma canção. “Ai que saudades das festas e romarias, dos seus amigos que ele um dia cá deixou, porque lá fora as amizades são estranhas, há bem poucas alegrias para quem tanto trabalhou”. Não era fado-canção, era o passado do bailinho, do corridinho e do malhão.
não era fado-canção I
“Danças o bailinho, o corridinho e o malhão, valha ao menos isso para alegrar o coração”. Como se a noite fosse um dia inteiro. Tão lindo que era, tão puro que parecia mas, por puro que parecesse e por lindo que fosse, tinha amarrado ao coração o cabrão do fado. E tudo existia e tudo era triste e tudo era blá-blá-blá entre os pingos da chuva de uma dança, de um passo à frente, de um passo ao lado, de um sorriso que, de vez em quando, era preciso, mas que não era sorriso nem era estado. De toda a maneira, ouvia-se Dino Meira. E a felicidade, ou lá o que é essa coisa intermitente que nos sinaliza a vida, lá andava de mão em mão, de ombro em ombro, de anca em anca. Um aproximar de boca, um fugir de vinho, e ela louca, e ele, devagarinho, acompanhando a dança, e uma criança ou duas ou dezenas delas corriam pelo alcatrão, e ouviam-se beatas que tricotavam as vidas escondidas dos donos dos pés que pisavam o chão. Havia luz e escuridão, pipocas e fritos, bifanas e gritos, joões e joanas, sebastiões e anas e nomes que não rimavam, mas que eram nomes de crianças que corriam e brincavam e se escondiam na igreja e ouviam “beija, beija” e coravam e sorriam e beijavam a boca de cada um. A dela sabia a rosa e a dele, em poesia feita em prosa, sabia ao doce do algodão mas, no fundo, bem à flor dos dentes, sabiam as duas bocas às bocas pré-adolescentes com travo àquela coisa da paixão. Coisa mais linda, mais pura e mais mais que havia entre aqueles dois seres tão seres que não seriam mais.