a minha madrinha
Desde aquele dia que o meu maior objectivo de vida mudou. Desde aquele dia que, em primeiro lugar, não está o meu sucesso como artista, a minha felicidade como homem ou a minha bebedeira no Marquês todos os anos até ao fim dos meus tempos. Desde aquele dia que o meu maior objectivo de vida é fazê-la rir. Tudo o resto vem depois. Se lhe provocar um riso, um simples esgar de felicidade que lhe aliene do espírito do lugar onde o espírito está, fico feliz. Sempre que falo com ela, sinto o ar pesado pela presença de quem ela já não tem, mais pesado comigo pelas parecenças que eu e ele tínhamos. Sempre que falo com ela, sei que ela fala, também, com ele. Sempre que falo com ela, sei que falo, também, em nome e em voz dele. Aquele dia foi o dia em que ele morreu. Ele é, porque nunca nenhum deixa de ser, o filho dela. Ela é a minha madrinha. A minha madrinha é, por tudo o que nunca conseguirei dizer, minha mãe também. Eu não sou o filho, mas sim o palerma que a tenta trazer à tona do mundo através de um dos mais primários reflexos humanos, o riso. Isso não faz de mim absolutamente nada, mas faz dela uma mãe que ri. Que é assim que todas as mães deveriam ser. E esta minha, apesar de longe e apesar de não ser de verdade, é a mãe mais bonita que eu – que o meu primo – poderia desejar.
a minha tia carminda
A minha tia Carminda foi a mulher triste mais alegre que eu conheci. Viu morrer-lhe pessoas que lhe nasceram, outras que a viram nascer, tantas que cresceram com ela, muitas que ela ajudou a crescer, todas de sangue próximo. Longe, nada. Tudo lhe aconteceu dentro, como as lágrimas que guardava só para ela – só podia guardar, nunca as vi na sua pele fim de tarde desde sempre, sendo o sempre só o pouco que eu recordo. Mas não se pode guardar tudo o que se tem por não se ter, por isso, ela só podia chorar sozinha, era a única forma que tinha de chorar sem mostrar. A tristeza não é fraca para ficar só no destruído quentinho do peito. Tem de cair dos olhos e mostrar aos outros que se sofre e que se é triste. Ela nunca mostrou nada disso, sentimentos demasiado imensos que ela tratava lá como bem entendia, com os ares do campo e com as fés do deus. Connosco, os que lhe dizem adeus e os que não conseguiram dizer, sempre sorriu e sempre brincou. E nós, pobres tristes afundados em depressões de emprego ou de amores passageiros, sorríamos e brincávamos. Fracas dores as nossas para a ternura e alegria que nasciam das dores dela. A minha tia Carminda foi a mulher triste mais alegre que eu conheci. Talvez por isso, agora, a tristeza seja mais triste um bocadinho.
henrique
Foi hoje, noutro ano que não este, que tu foste embora, que tu partiste, não, que tu morreste. Não há palavrinhas bonitas nem eufemismos nem outras coisas escritas que dêem verdade ao que te aconteceu. Morrendo, porém, não deixaste de existir, de ter pai, de ter irmã, de ter mãe. Não deixaste de ter amigos e família que te velam como se fosse uma vigília da memória, por vezes, como se fosse uma história daquelas más, com lágrimas e gritos, morte, como foste capaz? E nós aqui aflitos. Foste capaz, aconteceu, e agora, para nós, ninguém te traz, mas nós esperamos e lembramos e choramos e cá estamos. Sós. E, quando a voz nos sai em gritos e clamores, só assim, só dessa maneira, resta-nos a escrita e, escrevendo, vão-se calando as dores, vai-se adiando o fim e dando à choradeira outra forma de ser aflita. Foi hoje, noutro ano que não este, que tu foste embora, que tu partiste, não, que tu morreste. Foi hoje, foi ontem e foi todos os dias que ainda não o são que tu, não falando, não ouvindo, não sentindo, foda-se, que não estando, vives na tal vigília da memória que nos parte e reparte e nos deixa na pior parte dessa história que nos vela o coração.