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o meu gato

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Há dias em que me apetece atirá-lo pela janela. Eu moro no sétimo andar. Há dias em que me apetece atirar-me pela janela. Ele mora no sétimo andar, comigo.

O meu gato faz muita merda. Adora cabos, sofás e cortinados. Morde-me as pernas e arranha-me os braços. Adora os atacadores das minhas sapatilhas e qualquer pedaço de tecido das minhas meias. Gosta de testar a gravidade com os meus livros. Envergonha-me no veterinário. É esquisito com a areia e com a água. Está, neste preciso momento, em cima do teclaijwodhreerioeoiore doftgddddjbhfgggt computadkhfdijjjj. Não me deixa fazer a cama em condições e larga pêlo em sítios cuja existência eu desconhecia. Fez-me ser sócio premium de todas as lavandarias de Lisboa. Pôs-me a dormir na sala para arejar o quarto. Fez-me gastar salários para ele ficar bem depois de operações, vacinas e pequenos cristais que lhe doíam horrores. Nunca se queixou. Apercebi-me. Talvez ele me tenha dito. Não sei, tenho quase a certeza. Não falamos a mesma língua, mas comunicamos. Ele não percebe patavina do que lhe digo – falo mais com ele do que com gente -, mas ele percebe tudo o que sinto quando lhe digo. Eu não faço ideia o que ele quer dizer com aqueles olhares e miares e palmadas de patinhas, mas sei exactamente o que ele sente quando me diz.

Ele brinca comigo sempre que eu chego a casa. Ronrona encaixado na concha que faço com as mãos e encosta-se à parede a pedir números de circo. Encosto o braço à parede e ele salta. Faz outra vez. Outra vez. E outra vez. Eu escondo-me e ele procura-me. Vou à cozinha e, quando volto, tenho cinco quilos e tal a abalroarem-me as pernas. Recompõe-se, foge e esconde-se debaixo da cama. Com a cauda de fora. Eu finjo que não o vejo e chamo por ele – que ridículo, ele não percebe, mas percebe perfeitamente, e ele brinca e eu brinco também, e somos felizes assim, que ridículo, quero ser ridículo sendo feliz e ser ridículo fazendo-o feliz. Sempre que vou à casa de banho, ele vai também. Ora espera por mim, ora espero por ele. Sai a correr e eu levanto-lhe a voz para tapar o que fez. Ele volta atrás e tapa o que fez. Sempre. Deita-se ao meu lado, ao fundo da cama, e adormece agarrado à minha perna. Mexo a perna e ele morde-me os dedos com aqueles dentinhos afiados pelo diabo. Quero atirá-lo pela janela. Levanto a voz e pára. Lambe como que beijando. Encosta-se mais e adormece. Ressona e mexe-se muito. Acordo com a língua dele no meu nariz. Ronrona-me no peito e o meu peito ronrona também. Fica especado a ver-me tomar banho e mia desalmado sempre que abro uma lata de atum. Vai para a janela ver as pombas e as pessoas. Faz muito bem de bibelô em frente à televisão.

O meu gato passa muito tempo sozinho e eu sozinho sem ele. Isto da solidão com saudade é uma merda também, mas ele faz sempre questão de me dizer, não dizendo, que me ama sempre que me vê. Eu digo o mesmo e ele ouve, eu digo-lhe que já venho e que se porte bem e ele ouve sempre. E responde. Não faço ideia o quê, mas responde.

Ele não faz anos hoje nem há hoje dia do gato ou do animal. Também não morreu – o elogio não é obrigatório apenas quando se morre. Ele existe comigo e isso basta-me para que lhe escreva coisas que ele, não percebendo, ouve todos os dias. Continuo no sétimo andar. Ele faz-me continuar.

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