a minha tia carminda
A minha tia Carminda foi a mulher triste mais alegre que eu conheci. Viu morrer-lhe pessoas que lhe nasceram, outras que a viram nascer, tantas que cresceram com ela, muitas que ela ajudou a crescer, todas de sangue próximo. Longe, nada. Tudo lhe aconteceu dentro, como as lágrimas que guardava só para ela – só podia guardar, nunca as vi na sua pele fim de tarde desde sempre, sendo o sempre só o pouco que eu recordo. Mas não se pode guardar tudo o que se tem por não se ter, por isso, ela só podia chorar sozinha, era a única forma que tinha de chorar sem mostrar. A tristeza não é fraca para ficar só no destruído quentinho do peito. Tem de cair dos olhos e mostrar aos outros que se sofre e que se é triste. Ela nunca mostrou nada disso, sentimentos demasiado imensos que ela tratava lá como bem entendia, com os ares do campo e com as fés do deus. Connosco, os que lhe dizem adeus e os que não conseguiram dizer, sempre sorriu e sempre brincou. E nós, pobres tristes afundados em depressões de emprego ou de amores passageiros, sorríamos e brincávamos. Fracas dores as nossas para a ternura e alegria que nasciam das dores dela. A minha tia Carminda foi a mulher triste mais alegre que eu conheci. Talvez por isso, agora, a tristeza seja mais triste um bocadinho.
a dona conceição
Foi embora a dona Conceição.
E eu fui com ela, pelo menos parte de mim, aquela parte inteira da infância que teima em se hospedar nas entranhas da memória. Foi embora a dona Conceição. E o Dinis foi com ela, o papagaio tagarela que me falava sempre que, pelas mãos dos meus pais, ou à revelia das mãos deles, me via a espreitá-lo da porta e lhe falava e me escondia e lhe tornava a falar e me tornava a esconder, esperando que ele me espreitasse e me falasse e não se escondesse. Ele estava ali, sempre ali, naquele corredor misturado de sombra e amarelo, naquele corredor que corria para muitos lados e que hoje está perpetuamente parado no lugar onde estão estas palavras. Corria para a cozinha gigante do hotel, a copa, parque infantil dos grandes onde os pequenos comiam pão com manteiga e bebiam leite, naquela mesa grande cheia de tachos e panelas e pratos e colheres e farinhas e açúcares e nenúfares, talvez não fossem nenúfares, talvez o sonho, que é memória, me dê invenções ao pensamento, mas tanto faz, era coisas boas que lá havia, era tudo em tudo grande, e eu por lá andava, pequeno, por onde andavam os grandes, que foram os meus pais e os meus tios, os meus primos e eu próprio, mais tarde, depois de ser pequeno como era neste tempo de que me lembro agora. Corria lá para fora e demorava pouco, queria conhecer o muito que estava dentro do hotel, tanto muito, tanto tanto que eu nunca o encontrei. Aos pedacinhos, toquei-lhe os dedos, mas pouco mais. E a dona Conceição por lá andava, vestida com um daqueles trapos antigos de quem manda em casas e em cozinhas, de cabelo branco e voz das típicas avós que sentem mais do que falam (eram os olhos que a denunciavam, e eles sorriam). E ela sorria. E eu sorria para ela e o meu irmão sorria para ela e os meus pais sorriam para ela e falavam, os grandes, das coisas dos passados que lá viveram, das coisas dos passados naquele hotel, casa grande onde os meus pais fizeram vida e deram vida às vidas deles, no primeiro olá, no primeiro encontro, no primeiro beijo, ali, num hotel de praia e de pinhal, com a melhor vista para o melhor pôr-do-sol do mundo, ao fundo, ao fundinho da rua, na areia e no mar de São Pedro de Moel. E eu e o meu irmão, que ainda sorríamos, andávamos por ali como se aquilo fosse o céu e como se o céu fosse nosso, e era o céu, e era mesmo nosso. E tinha pingue-pongue, e tinha sofás que faziam dormir, e tinha cortinas de filmes de cinema, e tinha uma televisão que dava os Jogos Olímpicos, e tinha um bar com garrafas e vinhos e batatas fritas, e tinha tapetes no chão, e tinha alcatifas, e tinha labirintos para lugares que nunca descobrimos. No céu, havia chocolates. Era a dona Conceição que os tinha e que os dava, a mim e ao meu irmão, ele não gostava, não fazia mal, eu ficava com os chocolates que a dona Conceição lhe dava. Ainda os tenho comigo. Foi embora a dona Conceição. E nós fomos com ela. Fecharam-se as cortinas, calou-se o papagaio, taparam-se as janelas e os labirintos e as salas e a cozinha, e foi tudo comido pelas sombras. Hoje, não há hotel nem há mais nada, só aquela parte inteira da infância que teima em se hospedar nas entranhas da memória.
Foi embora a dona Conceição. E eu, que sou toda a gente que a lembra, fui com ela.