somos todos
E eu que pensava que o mundo não me colocaria à prova além das banalidades que me foi apresentando ao longo da vida, como os desgostos amorosos, as mortes de familiares e amigos ou as derrotas do Benfica. Mais coisa, menos coisa, mais dor, menos dor, seriam coisas que acabariam por surgir de forma inevitável na minha vida, sabia que sim, sabia que as iria apanhar a qualquer momento, estava, de certa forma, preparado para elas. Mas esta coisa que agora apanhei pela frente é coisa que não vinha em nenhuma previsão, até porque não sei que coisa é, como é, de onde vem nem como combater. É o desconhecido que bate à porta e entra sem eu a abrir. A porta está trancada, como as portas de toda a gente, mas o desconhecido bate à minha e bate a todas, e entra, e fica aqui a pairar nas nossas casas, nas nossas roupas, nas nossas cabeças. E não fazemos a mínima ideia do que seja. Não é nenhum ultramar – que eu não vivi, não é nenhuma fome – que eu não senti, não é nenhuma doença – que eu não tive. Não. E o sofrimento não é o mesmo. É outro. É outra coisa. E digo isto sentado no sofá e não entrincheirado no meio do mato com uma g3 e o cheiro a morte, com mesa farta e não com uma sardinha para cinco, saudável e não numa cama do IPO com uma agulha a injectar-me químicos na veia. Eu sei. Estou em casa, confortável, com comida, saúde, tecto, cama, amor, carinho, playstation e vinho. Nada me coloca na mesma situação dos meus pais quando tinham fome, dos meus tios quando foram à guerra nem de tanta gente que tem um cabrão de um tumor para destruir. Coloca-me no desconhecido, à prova de mim mesmo. Sou eu o mundo. Somos todos.
o soldado que não voltou
Memória. É ela, parece-me, que lhe comanda a vida. Não é o sonho, como diz a canção. O sonho deve ter-lhe morrido no instante em que lhe morreu um camarada por estilhaços de uma granada no meio do mato. Angola ou Guiné, escuridão de certeza absoluta. Ainda hoje.
A guerra, ou qualquer outra coisa muito pior, fervilha-lhe nos gestos, corre-lhe no sangue que lhe corre pelo corpo inteiro, nas pernas que não falham um passo, nas mãos que não falham uma reza, na boca que não falha uma passa do charuto que chupa todos os dias sentado num pequeno muro de pedra. Tem o batalhão inteiro a caminhar com ele e o dever patriótico de cumprir a missão diária que lhe dá razão aos dias.
Não sai da rotina, não muda o trajecto. Só quando chega a mãe, que lhe pede ajuda com os sacos das compras, é que ele despe a farda e sorri, cospe o charuto e fala, larga o tempo e ganha cor. Ela vai embora, ele volta. E volta às voltas que a memória lhe dá. Angola ou Guiné. Oeiras, 2019. Amor de mãe.
declarações de guerra
Não é um livro, é um estilhaço de granada. “Declarações de Guerra” conta, em carne viva, as vidas de ex-combatentes portugueses no Ultramar. As vidas que foram e as que ficaram, ditas por eles mesmos, furriéis, soldados, cabos, alferes, sargentos, todos eles destroçados por uma guerra que não era deles. Ficaram-lhes as vidas que já nem vidas são. Ficaram ninguém.
Um trabalho excepcional de Vasco Luís Curado que esventrou o politicamente correcto para dar voz a quem não queremos dar ouvidos.
guerra
José Manuel Castro Feliciano ou Zé Manel para os amigos ou Feliciano para os camaradas da caserna onde assentou praça e costados e balas e bofetadas naquela guerra antiga mas real que lhe matou amigos no corpo e amigos na cabeça, estes que morreram de cabeça foram os que morreram de verdade, morreram estando vivos, morreram para eles e morreram para os outros que os conheciam de outra forma que não desta que os faz estar enterrados nos lençóis, com tiques nas mãos e comprimidos na mesa-de-cabeceira e na goela, coitados, morreram e agora são outras pessoas, outros cidadãos, outros homens que não nasceram do útero da mulher mas sim do ventre de uma guerra antiga mas real, sacana da guerra, puta da guerra, guerra da guerra. Feliciano sobreviveu sem maleitas no corpo nem na cabeça. Eu não. Esta história é sobre mim.
Eu sou um tipo normal, chamam-me pelo nome e tenho para cima de muitos anos. Para dizer a verdade, nem eu sei a minha idade, a memória já não é a melhor e o cartão do cidadão já não o tenho, perdi-o quando andei à caça de leões ali no pátio da velha com o filho deficiente em casa, coitadinho do puto que não tem culpa nenhuma que deus lhe tenha dado mais baba do que aos outros, mas a vida é mesmo assim, e lá está a velha a tomar conta do puto que não é puto, porque já tem para cima de muitos anos, precisamente a minha idade, quem diria, digo eu que estava à caça de leões ali no pátio da velha quando perdi o cartão do cidadão e nunca mais o achei porque nunca mais o procurei, que se lixe o cartão, que se lixe o cidadão que o que interessa é a nota, que se lixe quem eu sou que o que interessa é a minha história.
Tudo começou em mil novecentos e troca o passo, estava eu todo contente a emborcar copos de água da torneira quando, por obra e graça do espírito santo, que é um santo sem corpo e só com espírito, como diz o próprio nome, vi a melhor moça do mundo, e eu digo moça e não digo gaja porque eu sou um gajo bem-educado, nossa senhora de Fátima, meu deus do céu, que moça linda e afinada, com tudo no sítio, tim tim por tim tim, nem mais um centímetro para baixo, para baixo, para baixo, ai para baixo, nem menos um centímetro para cima, para cima, para cima, ai para cima, que era mesmo para cima que eu estava a ir, não só na imaginação como também na, na, na, na, até fico gago só de pensar. Mas tenho de continuar que tenho uma história para contar.
Olhei para ela e imaginei todas as coisas possíveis e impossíveis que lhe poderia fazer, qualquer uma mais javarda do que a outra, mas em que havia eu de pensar? Sou um homem, os homens têm este tique de levar tudo para lá e é para lá que eu vou, deixo-me levar sem medos que a vida é para ser vivida e não podemos estar a pôr barreiras à nossa imaginação, já nos bastam aquelas que nos põem na comida e nos impostos, sacanas, que eu mato-os a todos, mas não posso. E fui. Fui, pronto, que posso eu dizer? Fui, ela levou-me pela mão sem sequer se mexer, estava quietinha, nem deu por mim, quase nunca ninguém dá, mas ela nem sequer tocou com os olhos no meu corpo, nem com os olhos nem com nada, mas pronto, e eu ali fiquei a imaginar tudo o que poderia fazer e refazer a uma gaja, perdão, a uma moça, que nem sequer tinha conhecimento da minha existência. Existência pobre, mas existência.
Estava eu nestes preparos mentais quando, de um momento para o outro, sem quê nem para quê, zás, a moça boa cai de boca no lancil do passeio. Pumba, escangalhou a fronha toda. Só me apeteceu chorar, mas como sou um homem de barba rija e testa grossa, não chorei. Fiquei ali especado, de olhos abertos e boca aberta. E ela deitada, de cara espalmada no alcatrão. Que desperdício. Mas estranhei. Isto de as moças caírem ao chão e não gritarem não é de moças, é de homens. Oh, caraças, queres ver que esta moça bem boa afinal é um homem? Cruzes credo, xô xô xô, brrr que me arrepiei todo, desde a ponta da espinha à ponta do sapatinho de verniz que muito estimava na altura e muito estimo ainda hoje, engraxadinho todos os sábados de manhã, sem falta, enquanto se grelha um peixinho-espada e a minha Amélia aspira a sala.
Na altura, já tinha Amélia, mas também tinha olhos, e foi por isso que vi a moça boa que, afinal, tudo levava a crer que fosse um homem. Cheguei-me ao pé dela, ou dele, e uma poça de vermelho começou a circundar-lhe a cabeça. Era sangue, pois claro que era sangue, estou bem fodido, agora a moça morreu-me aqui à minha frente, e só eu é que vi, parece que toda a gente desapareceu. E agora estou aqui sozinho, acorde menina, acorde, parece mesmo uma menina, com um corpinho tão bem feito e um rabinho tão empinado, nem sei como tive a coragem e a estupidez de pensar que esta delícia dos deuses tinha pila e maçã-de-Adão. Mas esta beleza não se mexia. Coitadinhos dos seios encostados ao chão, coitadinhas das pernas rijinhas todas amarfanhadas de arranhões. Não te apaixones agora, pá, que esta não é hora para um gajo se apaixonar, primeiro porque a moça está morta, e depois porque, se por alguma razão, não estiver, precisa de uma ambulância e não de um ramo de flores. Cedi à razão e gritei com todas as forças da minha goela. Veio a ambulância. Perguntaram-me o que se tinha passado, não soube responder e levaram-me com eles. Mais ninguém apareceu. No mundo, só morava eu, aquele docinho escangalhado e os dois toninhos da ambulância.
Fui com eles. O caminho era esguio e sinuoso. Batemos em pedras e caímos em buracos. Capotámos duas vezes e despistámo-nos seis. Quando chegámos ao destino, o Hospital Doutor de nome importante, a gaja já não era gaja e eu já não era eu. Só os toninhos da ambulância é que continuavam toninhos da ambulância, com as barrigas salientes e os bonés vermelhos estilo Robbialac. Eu era um mosquito e a moça era um mata-moscas. Zás. Matou-me e eu acordei de rajada. Sem ar, sem moça, sem ambulância, sem Amélia, sem nada. Foi tudo um sonho e eu não gosto de sonhos, cabrões dos sonhos, vêm mansinhos pela noite, escorregam-me pela nuca e enroscam-se bem cá dentro da mioleira, porra, que dor de cabeça. A culpa é do Feliciano, que tem amigos mortos da cabeça. Vou dançar.
Ilustração de João Pedro Coutinho