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portugal em câmara-ardente

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É com profundo pesar que se lamenta o falecimento de Portugal. O seu corpo estará em câmara-ardente em todas as capelas mortuárias frequentadas pelas gentes que, impotentes, viram o fogo comer-lhes a vida.

Todos os anos, Portugal falece. Todos os anos, Portugal renasce. E é deste jeito ciclicamente moribundo que Portugal existe — ou melhor, que vai existindo (querido gerúndio que diz tanto de nós — é cá, mais do que em qualquer outra terra do globo, que se vai existindo, que se vai andando, que se vai fazendo, até morrendo). Não é, portanto, de estranhar, que Portugal tenha sido (vá sendo) vítima desta doença prolongada.

A missa de corpo presente terá (vai tendo) lugar em todas as igrejas do território, no entanto, de nada irá valer se as orações ficarem pelas orações, caindo — como sempre caem — no saco vazio das boas intenções.

Informa-se (vai-se informando) todos os que pretendam prestar as suas homenagens que o façam através dos livros de condolências existentes nos órgãos de comunicação social e nas redes sociais, com poses tristes, gravatas negras, fotografias fortes, olhos vermelhos, palavras mecânicas, hashtags e soluções fáceis para combater este constante falecimento.

A família enlutada cumpre (vai cumprindo) a dolorosa obrigação repetitiva do luto, chorando agora em directo e sendo esquecida depois. E é esquecendo que o país se repete.

Fica a saudade. Vai ficando.

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a repetição do conforto

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“Nada é mais certo neste mundo do que a morte e os impostos”. A frase é de Benjamin Franklin e vem provar algo de muito evidente: Benjamin Franklin nunca esteve em Portugal. Cá, há duas coisas mais certas do que a morte e os impostos: os incêndios e as cheias.

E, com essa certeza, vem outra: a de que vai continuar a haver portugueses especialistas nos incêndios e nas cheias.

Este ano, os incêndios atacaram o nosso país de forma dramática. Infelizmente, há deles que continuam e outros que talvez venham a atacar. No entanto, esta semana, choveu. Muito. Especialmente em Lisboa, provocando cheias. E claro que este contraste tão temporalmente próximo veio pôr a nu uma das mais vincadas características dos portugueses: o refilanço. Mas fundamentado, claro, sempre fundamentado.

Claro que isto não é exclusivo dos portugueses, mas a nossa queda para o fado e para o drama dá outra graça (e tragédia — que estes andam sempre de mão dada) a isto.

As razões são simples, dizemos nós: incêndios “porque as matas não são limpas” e “porque a floresta foi mal plantada”. Cheias “porque os esgotos estão entupidos” e “porque as ruas estão mal feitas”. Soluções? Mais simples ainda. Para os incêndios: “pôr os militares a limpar as matas” e “responsabilizar os proprietários”. Para as cheias: “obrigar as pessoas a limpar as ruas” e “controlar as barragens”.

Todos os anos, desde o ano de 1143, que Portugal tem incêndios e tem cheias. Não tinha antes porque antes não havia Portugal. E todos os anos, desde esse ano, que há portugueses a elaborarem teses de doutoramento do bitaite sobre os incêndios e sobre as cheias.

Temos todas as razões e soluções na ponta da língua, quase como se já estivessem engatilhadas desde o último evento deste tipo. Depois, é só disparar. E andamos neste círculo vicioso, nesta lenga-lenga de crítica, que nunca muda e que nunca faz mudar.

Mas talvez seja essa a nossa vontade. Que nunca mude. Quase como se precisássemos dos incêndios e das cheias para podermos mostrar que sabemos por que razão acontecem e qual a solução para que deixem de acontecer.

Mas será mesmo (só) isto? Ou estaremos reféns destes eventos por nos darem o conforto da sua previsibilidade? Falar de incêndios e de cheias em Portugal é quase como falar do jogo da nossa equipa. Sabemos tudo. Quem marca os livres, quem põe o fogo e quem entope os esgotos. Golo.

Sair do conforto é que não. Esmiuçar os incêndios e as cheias, sim, por favor, todos os anos. Sabemo-los de cor. Discutir, de forma constante, qualquer outro tema que nos coloque fora de pé é que já não dá jeito. As nossas opiniões repetem-se a cada ano não porque a História se repete, mas porque nós repetimos a História.

Opinar sobre os incêndios e sobre as cheias poderá ser uma espécie de tapar o sol (e a chuva) com a peneira da nossa falta de conversa e de coragem. Evitando silêncios que nos embaraçam e disparando conversas repetitivas que nos tornam seres humanos repetitivos. E, para isto da repetição, já nos bastam os impostos. E a morte.

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