josé carlos
, com as mãos nos bolsos e os pés em todo o lado, José Carlos desconcertava os nervos dos outros. Mas já era normal. José Carlos é que não era. Ou talvez fosse, não se sabe, é impossível saber-se. Era visto como o maluquinho da aldeia, e ganhou esse estatuto pelo simples facto de fazer as coisas de forma diferente do resto da gente. Muito diferente. Sentia uma adoração imensa por Afonso, uma adoração de amigo impossível de descrever, uma adoração de sangue do mesmo sangue, uma adoração de carne da mesma carne. Para isso, bastou não ser desprezado por Afonso, bastou que Afonso fosse o único a falar com ele sem se preocupar com o que as outras pessoas fossem pensar, fosse o único a brincar com ele sem qualquer tipo de gozo mal-intencionado, fosse o único a ouvi-lo quando ele precisava de falar, fosse o único a dar-lhe de comer, de beber e de vestir sem uma única réstia de caridadezinha achada superior, fosse o único a ser amigo dele, amigo mesmo amigo. O único. O seu nome revelava a sua maior anormalidade, a tendência para saber todos os poemas do poeta. De cor. Para ele, era sempre tarde, tão tarde, que a boca nunca tardava a dizer o que sentia, e o que sentia, dava-lhe um ar de um bando de pardal à solta, o puto, o puto. Já não era novo, mas a idade não era para ali chamada. Falava sempre em poesia, para este, para aquele e para todos os que não existiam. Inventava mundos e universos, via coisas e não via outras. Dançava nas ruas, corria que nem um louco, chorava que não era pouco. Ajoelhava-se perante qualquer mulher e dizia, meu amor, meu amor, meu nó de sofrimento, minha voz à procura do seu próprio lamento. E corria, corria, como um cavalo à solta, com um travo de sabor a laranja amarga e doce na mente, e uma coragem imensa de correr contra a ternura no corpo. Estava vestido com roupas que não lembravam ao diabo. Uma camisa de um naipe, as calças de outro. A roupa não jogava a bota com a perdigota. Mas ele pouco se importava. O mundo era-lhe imenso e ele era feliz assim. Feliz na sua tristeza tamanha de não pertencer àquele lugar, mas de não haver outro a que ele pertencesse tão bem como àquele. Tinha o seu mundo, diziam que ele era chalupa, maluquinho, louco, estroina, palerma. Diziam tudo mas, na verdade, pouco se sabia. Ele era isto, ele era aquilo. Ele era tudo o que diziam, por inveja ou negação, cabeçudo, dromedário, fogueira de exibição, teorema, corolário, poema de mão em mão, lãzudo, publicitário, malabarista, cabrão. Era tudo o que diziam, poeta castrado não. Apenas louco,
lágrima | romance – 2015
silvino
Silvino foi um homem às direitas, como o seu punho, que acertou em cheio no meio milhão de chicos-espertos que tiveram a ousadia de piscar o olho à senhora sua esposa que, por muito boa esposa que fosse, por muito boa roupa que passasse e por muito boa comida que cozinhasse, lá, de vez em quando, se aperaltava em excesso dos cabelos às pontas das unhas, da mini-saia ao decote, e desafiava o mais desconchavado coração que se babasse nos olhos de qualquer palerma. E ele não gostava disso.
Pudera. A mulher era dele, os cabelos eram dele, as unhas eram dele, a mini-saia era dele e o decote era dele. Eram da mulher, mas eram dele. Só ele podia olhar. E o punho que escangalhava os queixos dos habilidosos que, distraídos, se concentravam naquelas relíquias empinocadas, também era dele. Era dia sim, dia também. Noite sim, noite também. E, à tarde, também havia forrobodó. Sem alarido, que o povo é sereno. E Silvino também era, só o punho é que não. Ninguém consegue ter controlo total do seu corpo. Há quem não controle o coração, há quem não controle o punho. Aquilo acontecia-lhe assim sem mais nem menos. Sem quês nem para quês. Era com cada bujarda que o café estremecia, a televisão mudava de canal e o canal mudava de apresentador. Era impressionante.
E impressionante foi também a cabeçada que ele deu na esquina da mesa onde um copinho de uísque e um jornal se acompanhavam. Foi ela que o matou. A esquina. E os outros uísques que emborcava como quem limpava atrevidos. Eram às dúzias, às centenas, aos milhares. Naquele dia, bebeu um a mais e caiu. Deu-lhe um aperto no coração e um desaperto na boca. Soltou a língua, fraquejou as pernas e lá foi ele, com a cabeça direitinha à esquina da mesa. A pancada foi seca, apesar da vesícula encharcada. Lançou um grito mudo e catrapumba. O café parou. A televisão não mudou de canal e o canal não mudou de apresentador. Acabou-se o Silvino.
lágrima | romance – 2015
laurindinha
Ela passava o dia à janela. Viu o seu amor ir para a guerra e não o viu voltar. Mas esperava por ele como quem espera pelo futuro. Vem amanhã, vem amanhã, sempre amanhã, só amanhã. Os passarinhos eram a sua companhia. Empoleiravam-se no parapeito e ela empoleirava-se nos peitos deles. Para onde eles olhassem, ela olhava também. À procura dele. Mas ele não vinha, já se sabe. Sabia de cor todos os passos de todas as pessoas da aldeia. As horas a que saíam de casa, as horas a que chegavam, as horas a que se demoravam na praça, na florista e na escola. Dizia olá a quem vinha, dizia adeus a quem ia. Anotava brigas e negócios, encontros e desencontros. Assistia, do terceiro anel do seu parapeito, às jogatanas de rua onde as pedras eram postes de baliza. Marcava faltas, gritava, incentivava, fazia claque. Os putos não lhe ligavam patavina.
Laurindinha não era velha nem era nova. Tinha a idade do tempo e vivia bem com isso. Não se queixava. Era o bibelô da aldeia, o naperon em cima daquela antiga televisão que era a sua casa, uma casa a preto e branco com dois canais e sem comando à distância. À distância, só o seu amor.
lágrima | romance – 2015