o soldado que não voltou
Memória. É ela, parece-me, que lhe comanda a vida. Não é o sonho, como diz a canção. O sonho deve ter-lhe morrido no instante em que lhe morreu um camarada por estilhaços de uma granada no meio do mato. Angola ou Guiné, escuridão de certeza absoluta. Ainda hoje.
A guerra, ou qualquer outra coisa muito pior, fervilha-lhe nos gestos, corre-lhe no sangue que lhe corre pelo corpo inteiro, nas pernas que não falham um passo, nas mãos que não falham uma reza, na boca que não falha uma passa do charuto que chupa todos os dias sentado num pequeno muro de pedra. Tem o batalhão inteiro a caminhar com ele e o dever patriótico de cumprir a missão diária que lhe dá razão aos dias.
Não sai da rotina, não muda o trajecto. Só quando chega a mãe, que lhe pede ajuda com os sacos das compras, é que ele despe a farda e sorri, cospe o charuto e fala, larga o tempo e ganha cor. Ela vai embora, ele volta. E volta às voltas que a memória lhe dá. Angola ou Guiné. Oeiras, 2019. Amor de mãe.
domingo
O domingo é a permanente ausência do dia, a memória viva do ontem e a antecipação sofrida do amanhã, a noite que não é, o intervalo da vida, o fosso entre a ilusão e a realidade, o limbo dos corpos, o sofá das almas, o ir não ir e ficar, o ser não sendo a dormitar, o ronronar dos gatos, a ressaca dos sentidos e o snooze de os sentir, a chuva nos vidros da janela da sala, o falar e ouvir e tocar e cheirar e provar tudo a preto e branco, a televisão a médio-som, a solidão a média-luz, o passeio dos tristes, o sal da melancolia, a câmara lenta da ronha.
O domingo é de quem sonha a permanente ausência do dia.