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Não me lembro de alguma vez em algum lugar ter morrido um filho da puta. Quem morre é sempre um génio, um homem de grande valor, uma grande mulher, uma personalidade ímpar, um ser humano fantástico, um ser dotado de uma inteligência brilhante, um jurista de grande gabarito, um cidadão do mundo, um nome cimeiro da cultura, uma mulher de convicções, uma voz livre da sociedade, um grande mestre da arte, um exemplo de vida, um amigo de coração gigante, qualquer coisa maravilhosa cuja morte se lamenta profundamente. Deixará saudades. O mundo fica mais pobre. E com mais filhos da puta. Se essa é condição para aqui ficar, gostaria de ser um. Não me parece muito proveitoso ser um génio na inexistência.
antes o poço da morte
Fora a crença, presente ou não. Sejamos a pessoa doente que está no poço da morte (sofrendo, sem cura). Não há volta a dar. A volta é só a que vai. Não volta. E essa volta custa-me a mim, pessoa que sou neste exercício da imaginação que não está livre de ser da realidade.
Custa-me a mim, dói-me a mim, e a única recompensa – que nunca irei sentir, é um facto – é a ausência dessa dor. E não sentir não será melhor do que sentir isto que não me deixa sentir outra coisa, nunca mais?
Quem está fora da cama, desse lado onde se discute a minha vida – que é, também, a minha morte -, quer ver-me a não morrer ou a não sofrer? A primeira afecta quem me vê, quem está fora da cama, quem, eventualmente, sofre pela minha morte, não eu. A segunda afecta-me a mim. E é aqui que está a discussão certa. Em mim, não em vocês.
Eu, que estou neste poço da morte (sofrendo, sem cura), tenho a vontade de não sofrer e a recompensa de não viver com ele. Se a morte é a solução, que seja e que seja a minha, e não a de quem não suporta a ideia a que vem amarrada a suposta culpa de me ver morrer.
Não há culpa, isso não é culpa, é egoísmo. A verdadeira morte é esta que me existe enquanto vou sofrendo sem qualquer possibilidade de não voltar a sofrer.
E não trago ninguém comigo, não se preocupem. Comigo, como eu vou, vai quem quer. Quem não quer vir, quem quer continuar a sofrer, pode ficar. Não é minha vontade decidir pelos outros. Não seja a vossa decidir por mim.
no dia seguinte, morreu
Na noite de Natal, ninguém sofre de frio nem de saudade. Na noite de Natal, ninguém sofre de fome nem de solidão. Na noite de Natal, ninguém sofre nem morre. Aqui jaz quem não faz falta no dia seguinte.
Aqui jaz um sem-abrigo. Não se lhe sabe o nome nem se lhe conhece família. Na noite de Natal, abriram-lhe os portões para uma refeição quente e uma noite tranquila. Apareceu na televisão. Agora, aparece no chão. O seu corpo será velado por ninguém porque os portões fecharam depois da ceia e as casas de cartão não dão audiência.
Aqui jaz um animal. Ou o que resta dele, no que resta da berma da estrada. Na noite de Natal, recebeu o quente de quem o queria para aquecer os pés e o ego. Apareceu no Facebook e no Instagram. Agora, aparece na caixa aberta da carrinha da junta de freguesia. Questão de saúde pública. O seu corpo será velado apenas se for feito scroll.
Aqui jaz uma velha. Morreu como viveu desde que lhe foi o marido. Sozinha. Na noite de Natal, abriu a porta para a companhia de voluntárias que lhe aqueceram a casa e a solidão. Apareceu no jornal. Agora, nem no café aparece. Não sai de casa desde esse dia porque ninguém lhe toca à campainha para saber, sequer, se ela está lá. O seu corpo será velado quando o cheiro chegar à casa dos vizinhos.
a morte do artista
Kevin Spacey, Terry Richardson, Louis CK. Morre o artista, não morre a arte.
Por vezes, a morte é mais morte se não for literal. Kevin Spacey, não morrendo, morreu para o que fazia. Foi afastado da série House of Cards, despedido da Netflix, viu cancelada a sua homenagem nos Grammy e também a sua participação no filme Gore, já em pós-produção. Além disso – pior do que isso – tem o seu nome na lama da praça pública.
Mas, morrendo Kevin Spacey, não morre Francis Underwood (House of Cards), não morre Prot (K-Pax), não morre Lester Burnham (American Beauty) nem morre Verbal (The Usual Suspects). Morre o artista, não morre a arte.
Terry Richardson, outro artista que morreu por não ter sido humano. Morreu para a arte, mas não lhe morreu a arte. Foi afastado da Vogue e impedido de trabalhar na GQ, Vanity Fair e outras conceituadas revistas do grupo Condé Nast. Além disso, qualquer trabalho de Terry que ainda não tenha sido publicado, muito provavelmente não será.
Mas, morrendo Terry Richardson, não morrem as icónicas fotografias que tirou a Miley Cyrus, Jared Leto, Macaulay Culkin ou Beyoncé. Morre o artista, não morre a arte.
Louis CK, mais um grande em arte que foi pequeno em humanidade. Morreu para a arte de fazer rir, mas não lhe morreu a persona que nos faz, de facto, rir. E pensar. Consequências? Viu a estreia do seu novo filme, I Love You, Daddy, adiada indefinidamente e os seus especiais para o Netflix foram cancelados.
Mas, morrendo Louis CK, não morrem as suas análises pormenorizadas e carregadinhas de sarcasmo e pontaria dos pormenores da vida, não morre o Louie, não morre o Hilarious nem morre o Oh My God.
Kevin Spacey, Terry Richardson e Louis CK, três corpos que serão velados enquanto lhes existirem os corpos. Foram eles, os corpos, que fizeram deles artistas, mas também foram eles, os corpos, que lhes puseram um fim. As almas, essas, estão destruídas. Resta-lhes (resta-nos) a sua arte.
ninguém morre de cancro
“Há que dizer-se das coisas / o somenos que elas são. / Se for um copo é um copo / se for um cão é um cão”. Menos se for um cancro, Ary. Nesse caso, é uma doença prolongada.
Em Portugal, não se morre de cancro. Morre-se de “doença prolongada”. Porque dizer cancro é dizer realidade e a realidade aleija muito. E ninguém se quer aleijar.
“Morreu vítima de doença prolongada”, ouve-se e lê-se nos órgãos de comunicação social. João, Fátima, Henrique, o nome é irrelevante, a doença não. Mas parece ser, já que não se diz qual é. Talvez seja essa a ideia, não dizer “cancro” para que o cancro não nos possa ouvir e esquecer-se de nós, desaparecer e deixar-nos tranquilos – e vivos – na nossa vidinha.
Para isso, refugiamo-nos na “doença prolongada”. O eufemismo faz parte do vocabulário de uma língua e usamo-lo como mecanismo de suavizar uma palavra ou expressão que possa ser desagradável. “Se sentimos necessidade de usar eufemismos para falar da morte é porque, na cultura a que pertencemos, evitar a palavra é um sinal de respeito pela dor do nosso interlocutor dos falecidos”, diz o lexicólogo e professor João Paulo Silvestre. Certo. Mas defendo o contrário, e pela mesma razão.
Dizer “doença prolongada” não respeita, funciona como um cobertor de coisa vaga que relativiza a sua importância, que atenua a realidade e que coloca a vítima no biombo do indefinido.
Há pudor nos órgãos de comunicação social que não os deixa dizer que o João, a Fátima ou o Henrique morreram de cancro. E há ironia nesse pudor. Abre-se o telejornal com a vítima da doença prolongada e continua-se o telejornal com a imagem de uma criança lavada em sangue por um bombardeamento na Síria.
Parece uma história de crianças, esta que nos contam diariamente, ao apresentar- nos o cancro como uma espécie de Voldemort, “aquele cujo nome não deve ser pronunciado”. Mas negar o nome é como negar a doença. Não dizendo, não a faz desaparecer. Dizendo, não a multiplica. E, das duas, uma: escondemo-nos no eufemismo ou encaramos a realidade. E a realidade é que, na vida, não há magia.
a morte do silêncio
Numa sociedade de movimento, espectáculo e ruído, é difícil termos instantes de silêncio. Raras vezes convivemos com ele — por obrigação ou por vontade. É assim que ele se torna num corpo estranho para nós. E ignoramo-lo. Sem razão. A sociedade é ruído. É por isso que o silêncio é tão necessário.
“Ouve-me, ouve o meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa. Capta essa outra coisa de que na verdade falo porque eu mesma não posso”. A Clarice Lispector fala e nós devemos falar com ela. Mas sem falar, que, falando, acabamos com ele.
Ele é o silêncio e ele está a morrer. Pelo menos em parte das homenagens realizadas em Portugal. Em cada “minuto de silêncio” de louvor às vítimas dos incêndios, dos ataques terroristas ou de qualquer outra tragédia, o minuto é de aplausos, e os aplausos são de tudo menos de silêncio.
Aplaudir é outra forma de homenagem, é certo, uma espécie de levantar a cabeça, de mostrar que nada nos abate, um olhar e andar em frente. Nada contra. Mas tudo errado. Aplaudimos quando deveríamos silenciar. E porquê? Por gosto pelas palmas ou por medo do silêncio?
O silêncio traz a reflexão obrigatória, o mergulho no vazio que nos obriga a estarmos sozinhos connosco, com os nossos pensamentos, com a nossa profundidade. O momento já é delicado — homenagear alguém. Acrescentar, a esse momento, a sensibilidade de estarmos connosco talvez nos deixe desconfortáveis.
Associamos o silêncio à solidão e essa solidão adensa-se no contraste de estarmos rodeados de gente — como sempre estamos nestas homenagens públicas. As palmas, por sua vez, talvez sejam as palavras que não dizemos, as conversas que não temos com essa gente, que preenchem este vazio interior que há em todos os que lá estão.
Silêncio e solidão, dois conceitos e estados dos quais parecemos fugir a sete pés. Não por serem intrinsecamente maus, mas por nos obrigarem à companhia que talvez mais nos atormente hoje em dia, nós próprios. Fugimos de nós. E esta fuga merece um minuto de silêncio, não de aplausos.
crença, a puta da doença
A morte é o gatilho para a crença, deus é o segredo (só existe no medo), nós somos a doença.
A tríade é simples e a ignorância também. Depois da morte, o que vem? Não sabemos, e, não sabendo, inventamos algo que nos mate (em vão) essa angústia. A invenção chama-se deus que é ilusão, ser todo-poderoso, criador do céu e da terra, nascido do ventre sujo do medo, do nosso medo, do medo da gente crente que é doença, criatura toda-poderosa, criadora do deus e do diabo, nascida do ventre embaciado da incerteza.
Enquanto inventamos o depois da morte, a vida vai acontecendo sem darmos conta. Ela passa e nós passamos por ela morrendo aos poucos e crendo aos muitos.
É a crença que nos faz ser a puta da doença. Nada mais há para além dela, nada mais pode haver, toda a vida é pecado, mesmo que real, toda a morte é real, mesmo que inexistente – a visão de um cego. Se deus existe, já nasceu doente.
o luto
O luto, na morte como no amor, carece da urgência do sofrimento imediato, a tempo e horas e em excesso, sempre em excesso, para que, mais tarde, quando vem a puta da saudade, ela não nos apanhar sem as forças que, sem luto, sem sofrimento excessivo como todo o sofrimento deve ser, não teríamos. A urgência do sofrimento imediato, a tempo e horas e em excesso, sempre em excesso, é colocar a vida no abismo para a morte, mas sofrer com paninhos quentes no instante imediato, sem choros nem insultos, sem gritos nem torturas, é morrer constantemente durante a vida toda, em simulado contentamento e disfarçada ansiedade, escarafunchando cada pormenor do sofrimento, sempre, que é sempre, que vem a puta da saudade.
se a religião
Se a religião, ou parte dela, ou grande parte dela, ou quase toda ela, assegura uma deslumbrante vida após a morte, ou durante a morte que, basicamente, é isso que se defende, pois bem, se é isso que a religião permite, então, aqueles que matam por ela amam as suas vítimas. Aqueles que matam por ela querem o bem das suas presas inocentes porque querem que elas morram, ou querem que elas morram porque querem o seu bem, seu, delas, não deles, porque eles continuam por cá a impor, coitados, trabalho duro e pesaroso, a vida eterna, carregadinha de paraísos, nuvens, anjos e virgens, a quem por cá anda. Matando, despacham o processo de chegada à, aleluia, aleluia, vida eterna, aleluia, aleluia, ao paraíso, aleluia, aleluia ou lá ao que existir nessa coisa infinita, aleluia, aleluia. Maravilhoso amigo o que nos deseja o prazer, o regozijo, a imortalidade, a delícia do céu da vida eterna, obrigando-nos a dizer adeus ao triste e horrível e mau e ruim inferno que é a vida que agora pisamos. Os que nos odeiam, os que nos querem matar, os filhos da puta dos terroristas que nos matam pela religião são os filhos da mãe dos altruístas que mais nos amam, que se preocupam connosco do fundo do seu tique-taque no coração. E, assim, por enquanto, por fim, daqui se lê que, ou quem nos mata é estúpido por não se matar sozinho ou somos nós que não entendemos a sua encantadora e peculiar forma de amar. De todo o modo, não querendo dizer que não ao amor, não querendo rejeitar a afeição maior que o mundo, este, vivo, tem, peço que me deixem não entender, que me deixem ser e estar e viver, ou ir vivendo e deixando viver, prefiro assim, do que compreender e matando, deixando-me morrer.
lá se foi a vida
Era a morte chegar
e eu não dar por ela.
Chegar sem aviso,
sem ser preciso
nada que me apoquentasse.
Era ela vir num repente
e me levar,
fazendo-me ficar
aqui ausente.
Que ela viesse e me levasse
e que deixasse
– como sempre o faz –
a vastidão do que ela traz:
a crueza da sina decidida.
Era a morte chegar e… Zás!
Lá se foi a vida.
desculpa escrever-te tão tarde
A verdade é que, por muito que me dedicasse a juntar as palavras da forma mais cuidada possível, nunca consegui fazer com que elas transmitissem o que eu queria dizer. Hoje, porém, decidi arriscar.
Escrevo-te mesmo sabendo que a carta não te será entregue. Escrevo-te mesmo sabendo que não terei uma resposta tua. Escrevo-te mesmo sabendo que não me vais ler. Bem vistas as coisas, nenhuma dessas acções seria necessária. Esta carta, mesmo tendo o teu nome como destinatário, é muito mais dirigida a mim do que a ti.
Faz um ano que te conheço de uma maneira diferente. Mantenho comigo as nossas brincadeiras no chão em frente à lareira de tua casa, as nossas tardes de Verão a ver a Volta a Portugal em bicicleta, as nossas discussões enquanto jogávamos computador, as nossas cúmplices saídas à noite, as nossas cervejas não autorizadas, os nossos fins de tarde a ouvir rádio no teu quarto, as nossas zangas durante as férias, as nossas picardias à mesa de snooker, as nossas aventuras na serra do Caramulo, os nossos abraços no Estádio da Luz. Mantenho comigo todas estas memórias, mas desde aquele dia em que partiste, nasceram outras. Agora, por mais estranho que pareça, sinto-te mais perto.
Todos os dias brincamos, todos os dias discutimos, todos os dias ouvimos rádio e todos os dias falamos, mesmo sabendo que, tal como acontece nesta carta, nunca chegarei até ti, nunca me irás responder e nunca sequer me irás ouvir. Mas eu insisto e, sinceramente, devo dizer que me faz bem. Eu avisei que esta carta era muito mais dirigida a mim. E como eu gostaria que ela nunca tivesse sido escrita. Desculpa escrever-te tão tarde.