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pandemia
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da cegueira (da estupidez)

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Eu tenho uma almofada. É uma almofada. É mesmo uma almofada. Não há dúvida nenhuma. Vem uma pessoa e diz que aquela almofada não é uma almofada, mas sim uma carrinha de caixa aberta. Atenção, é uma almofada, mas a pessoa diz que é uma carrinha de caixa aberta. Como é que eu convenço a pessoa de que a almofada é uma almofada e não uma carrinha de caixa aberta? Eu mostro-lhe a almofada, a pessoa não é cega, a pessoa vê que é uma almofada, vê que é um objecto fofinho, uma espécie de saco estofado para assento, para encosto da cabeça ou para fins decorativos, é uma almofada, caraças, não há dúvida nenhuma de que é uma almofada. Mas aquela pessoa, vendo uma almofada, diz que é uma carrinha de caixa aberta. Como é que se discute, como é que se debate, como é que se conversa com uma pessoa destas? Pronto, é assim que me sinto sempre que me aparece um idiota xenófobo, homofóbico, racista, machista, anti-máscara (em separado ou acumulando, tanto faz) à frente. Não consigo. É difícil. É impossível debater, discutir, conversar com pessoas que são paredes. Mesmo assim, continuo a achar que é debatendo, discutindo, conversando e, essencialmente, deixando que esta gente debata, discuta e converse para que todas as pessoas que olham para uma almofada e vêem uma almofada saibam quem é esta gente que não é cega, mas que é cega e tenta cegar os outros através da estupidez.

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estar longe

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Há um grande equívoco nisto do vírus: a promoção do distanciamento social. Um engano. Não é o distanciamento social que devemos incentivar, pedir, desejar até. É o distanciamento físico. Físico. Devemos evitar a aproximação de corpos, sim, não a aproximação de conversas, ideias, discussões, carinhos, preocupações, vontades. Os cartazes de rua e as manchetes de jornal não deveriam obrigar ao afastamento social, mas sim à aproximação social. O afastamento de mãos, de braços, de bocas, sim, tudo bem, que é isso que, de facto, transmite o vírus. O afastamento de tudo o resto que há além disso, não, que é tudo o resto que há além disso que transmite o que somos. Acho mesmo que deveria haver, ao contrário da errada medida que é imposta, um incentivo à aproximação social. Nunca, aliás, foi tão necessário, tão indispensável, tão essencial aproximarmo-nos uns dos outros. Estamos longe, caraças, cada vez mais longe. E claro que não falo da aproximação de peles, que isso é o menos importante quando nos tocamos. Distanciamento físico de dois metros, aceito, distanciamento social de menos dois, a ponto de, não só tocarmos, mas entrarmos no outro, irmos lá dentro, sem tocar, e falar, perguntar, ouvir, acariciar e existir, quero. Aproximemo-nos socialmente, mesmo sem tocar, que o vírus só nos afasta dos corpos, não daquilo que temos dentro, e que nos faz ser. E sonhar.

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uma luta no escuro

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Uma luta no escuro. Luzes apagadas, olhos vendados. O inimigo está, mas não o vemos. Não lhe sentimos o cheiro, sequer. Mas está. E levamos golpes vindos não sabemos de onde. Não lhe sabemos a forma nem o tamanho. Não lhe conhecemos os truques nem as fraquezas. Estamos às escuras, em constante estado de alerta perante tudo, até mesmo o nada. É a angústia de não saber, é a ansiedade de sofrer. É respirar desconfiando do futuro. É mais do que o medo de combater. É o medo do escuro.

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já éramos sozinhos

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Nós não temos vontade de estar com os outros. Nós temos é medo de estar sozinhos. Os outros, na verdade, na crua e triste verdade, já pouco existiam para nós. Apenas estavam, apenas faziam figura de corpo presente na nossa necessidade primária de aconchego e aprovação. Já éramos sozinhos, mas não estávamos sozinhos. Os outros davam-nos essa ilusão de companhia. Eram eles, não éramos nós. Não precisávamos de nos olharmos dentro para ver quem realmente éramos, somos, virtudes, belezas, maravilhas, mas defeitos, rugas, medos, traumas, guerras e lixo, também. Agora, que nos obrigam à clausura, fechamos a porta, abrimos os olhos e só estamos nós. E só somos nós. E estar, e ser, connosco, dá medo. Não são os outros, somos nós.

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perto, longe

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Nós já estávamos isolados. Colados aos ecrãs, fechados em avatares, muralhados por um individualismo egocêntrico. Nós já evitávamos as pessoas de carne e osso sem nickname. Nós já tínhamos substituído o toque pelo touch, o beijo pelo like e o abraço pelo scroll. Já não havia convívio, havia scroll. Já não havia gosto de ti, havia swipe right. Já não havia ajuda, havia hashtags. Hoje, há um olá à beira de ser trocado por um adeus. Nós já estávamos isolados. Só não queríamos saber. Trancados em nós mesmos, longe dos outros.

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uma só criatura

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Um único homem, uma só criatura, transmitiu um vírus que, em 102 dias (1 Dezembro 2019 – 12 Março 2020), atingiu 130.164 pessoas, matando 4.754. Tudo começou num único homem, numa só criatura. Mais do que qualquer outra análise que possamos fazer, este contágio galopante mostra-nos a influência que cada ser individual tem em milhares de milhões. Um, em 102 dias, contagiou 130.164 pessoas. Um, sozinho, fez estremecer o planeta, fechar fronteiras, monitorizar governos, segregar pessoas, amedrontar consciências, trancar portas, esvaziar esperanças. A influência de um único homem, a consequência da acção de uma só criatura, na vida do mundo inteiro. Eu, tu, que somos um único homem, uma só criatura, temos o poder de atingir e condicionar o comportamento de 7 mil milhões de pessoas. É assustador. Eu, tu, somos a borboleta que bate asas na China e causa uma tragédia no mundo inteiro. É aterrador. Desta vez, foi o vírus errado, o Covid19. Imagina quando for amor. É possível.

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