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cada um é muita gente
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mas tão longe

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As duas, lado a lado. Hora de almoço, um cigarro na mão e um silêncio que vai sendo intervalado com conversas que vêm de todo o lado, e elas ali, a olhar o chão. Como se procurassem um passado que já lá vai e que não volta – porque o passado nunca volta, porque, se voltasse, não seria passado, seria presente e, sendo presente, não voltaria porque o que é, é agora, nunca tendo sido antes. Mas ali estão elas, encostadas ao muro, como duas estantes, a fumar e a ouvir e a olhar e a deixar ir o corpo até o corpo parar. Cada uma de bata azul, as duas iguais – trabalharam a manhã inteira, agora não querem mais. Não durante aqueles cinco minutinhos de fumarada e de silêncio e de chão e de, por vezes, conversa que, rapidamente, se transforma, novamente, em solidão. Passaram o portão e, no estacionamento, vão sendo, naquele compasso lento, o que cada uma é de si – amigas, assim parece, e nem uma nem outra esquece aquilo que a outra é: uma bengala na vida que vai sendo consumida por um cigarro e, quem sabe, mais tarde, por um café. Lá dentro, do outro lado do portão, está a limpeza das escadas, das janelas, do chão, os pequenos recados que levam da cantina ao pavilhão, da sala dos professores à biblioteca onde estão os livros, os jogos, os computadores, e elas, cada uma na sua luta, vão levando a labuta durante o dia inteiro. Entram de manhã cedo, ainda é nevoeiro naqueles dias que, mais tarde, tendo em conta o sol que arde, são de calor. Saem cedo, também, cada uma será mãe e terá o seu amor. Em casa, segue o dia, à tardinha. Já sem bata, já sem escola, já sem campainha para sair nem para entrar. Uma tábua de passar a ferro, uma sopa ao lume e uma novela a dar. Vem o marido, vem a noite e vem o teria sido se ela, não a noite, a mulher, tivesse tido outra escolha mais cedo. Talvez tudo se repetisse, talvez por vontade, talvez por medo. Talvez ela se deite com saudade do tempo que passou – em boa verdade, só se pode sentir saudade do que voou, do que já não há. O que temos não sabemos e o que teremos nunca será. E, assim, talvez tudo seja passado. E elas, por fim, as duas, lado a lado.

Jornal de Leiria

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balada do chão

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A minha rua não tem quase ninguém, a não ser toda a gente que a minha rua tem. Um só caminho, estreitinho, um ou outro vizinho que ali faz o dia. Os carros só entram de frente, um ou outro adolescente, pequenas porções de gente, e o meu gato que mia. Além de tudo isto, que é poucochinho embora tanto, passa gente e, quando passa, os passos imprime e traça no dia daquele recanto. E, lá de vez em quando, talvez uma vez por mês, passa uma senhora limpando, de pá e vassoura junto aos pés. Veste verde, tem um boné e leva um carrinho, devagarinho, até ao finzinho da rua. Limpa juntinho à minha casa, apanha o lixo que está no chão, e lá vai de casa em casa, assim de grão na asa à procura de um coração – a minha imaginação. No carrinho, de duas rodas, um contentor, uma caixa de metal e um sítio onde pôr a garrafa de água e mais qualquer coisa que dê jeito trazer – talvez a carteira e uma ou outra vontade de deixar de ser o que ela é. Apesar de não haver nenhuma vergonha em ter a profissão que tem, talvez ela não tenha sonhado que o mundo organizado fosse este o mundo de alguém. Mas é o dela, desta mulher que limpa e varre – haja alguém que a agarre, que consiga fazer o que ela faz. Parece não ter ciência, mas há cultura na decência de limpar o que deixamos para trás. Há, até, uma certa beleza nesta coisa da limpeza que deveríamos dizer: limpar é renovar a vida, dar ao fim outra saída, numa palavra, é viver. E esta mulher lá anda, empurrando o carrinho como se empurrasse o futuro. Limpa passeios e calçadas, tristezas e gargalhadas que moram juntinho ao muro. E ela mora ali também. Não só na minha rua, mas em todas as ruas da cidade. São elas a sua casa, o seu lugar. E diria que a sua vontade é por elas continuar. Se não fosse ela, a minha rua não seria assim. Teria gente, os tais carros a entrar de frente, mas estaria, como seria, à beirinha do fim. Se não fosse ela, nem eu por lá andava, nem o meu gato miava, nem teria o que escrever. Ela empurra o seu carrinho e, assim devagarinho, lá nos ajuda a viver.

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os gatos

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Ainda não há noite, e ele acaba de chegar. Ainda há garotos a correr, alguns cá fora, escondidos, a fumar. A maioria dos que estão ainda anda pelo recinto da escola como se estivesse a passear. Ele chega descontraído, camisa de manga curta, como os passos que dá, entra no seu pequeno escritório mesmo ao lado do portão, numa pequena casa, e por lá fica algum tempo. Passado esse tempo, que é sempre algum, abre a porta e começa a sua caminhada pela escola. Caminha devagar, mas com passos certos e seguros do caminho e do lugar. Dá a volta à escola, sabe o que ver, já conhece o que vê. Gordinho, baixinho, lá vai devagarinho fazendo o caminho que já sabe de cor. Não sei já quantas vezes o fez, não sei há quanto tempo anda ali – nunca lhe perguntei. Mas diria que anda há eternidades. Uma, talvez, que basta ser sozinha para já ser demasiada. Cumprimenta os professores, os alunos, as contínuas, as senhoras da limpeza. Até os gatos. Parece dar-se bem com toda a gente – até com quem não é. Mas, para fazer o que ele faz, caminhar e cuidar sozinho daquele lugar tão grande, também tem de dar-se bem com ele próprio. É quando toda a gente vai que ele fica mais acompanhado. Os gatos não vão embora. Mas nem são eles que lhe fazem mais companhia. Diria que é ele, desacompanhado, que se aproxima dele, que fala com ele, que pensa com ele. Até ser dia. A escuridão não o assusta. Eu diria que custa fazer o que ele faz. Mas, enquanto quase toda a gente está a dormir, ele tem o mundo inteiro só para ele. Aquela escola. Aquela cadeira naquele escritório naquela pequena casa. Quase uma casota, um lugar de máquinas, computadores, papéis e talvez uma televisão. E ele um cão de guarda, vigilante. Como um super-herói. Um Rorschach sem a máscara e sem a dor. Atento ao mundo da noite, aos pesadelos, aos bandidos e aos gatos. Tem uma lanterna. De vez em quando, já noite, vejo, da minha varanda, uma luz a dançar nas paredes da escola. É dela, da lanterna, a luz que dança. E ele, o segurança, a mão que a controla.

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a porteira da minha rua

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A minha rua é pequenina, tem lá pouca gente a morar. E, sendo uma rua pequenina, é fácil encontrar a minha vizinha que lá anda sozinha pela rua a passear. Mora quase ao fundo da rua – ou ao princípio, se olharmos de lá – numa casa baixinha, velhinha e que ainda lá está. À porta, protegida por um estore, muitas plantas pelo chão. Lá dentro, qualquer coisa de amor e uma televisão. Imagino que ela, a minha vizinha, se senta no sofá ao final do dia a tricotar. A televisão ligada, só para ela não estar sozinha e ter alguém a acompanhar. O marido também lá anda, mas nunca se deixa ficar por ali. Ele sai de casa bem vestido, fato engomado, mãos nos bolsos ao comprido, como se fosse cantar o fado. Sim, ele já esteve por aqui. E ela lá fica na sua cantoria de quase solidão, arrumando e tricotando o dia que lhe vai passando pelo coração. Quando ela sai, sai devagarinho, sem aleijar. Olha a leste, olha a poente, sente o vento quente e deixa-se levar. A rua é também pequenina para ela que, por ela, caminha toda a manhã. Conhece-a pela janela, cada vaso, cada pedrinha, cada pedacinho de lã que, não sendo, assim parece tal é o jeito que ela, percorrendo, dá aos pés que, no chão batendo, fazem dela guardiã. Ela é como se fosse a porteira daquela rua. Só lá passa quem ela deixa passar. Só à noitinha, quando há lua, ela deixa a rua da sua rua e vai-se deitar. De noite, passa quem quiser. A minha rua não dorme, mas dorme a mulher. E a noite tem gatos e gente e gente que se parece com gatos e gatos que não são menos do que gente. É a mesma rua, sendo tão diferente. De manhã, a minha rua só desperta quando a minha vizinha sai pela porta aberta e faz a vistoria. As plantas ainda lá estão. A lua é que não, que já é dia. E há gente a passar, uns miúdos a namorar e gatinhos e passarinhos e carros – só um ou dois. A minha rua, pela fresquinha, tem sempre a minha vizinha e o fumo adolescente de alguns cigarros. E, depois, quando já não há ninguém ali, a minha rua renasce numa vida diferente. A minha vizinha pouco sorri, mas caminha contente. E anda por ali, como se ela fosse toda a gente.

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ele e ninguém

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Sozinho, com tanta gente. Bebe a cerveja devagarinho, intermitentemente. A vida dele não é poesia. É qualquer coisa rude, amarga, que lhe acontece todos os dias. Vejo-o caminhar pela cidade sempre sozinho, mas sempre acompanhado pelas pessoas que ele vê e com quem fala. Depois, senta-se no café, como se estivesse rodeado de gente. Vem o empregado, ele fala, também, com o empregado, pede uma cerveja e continua a conversa com todos os amigos que tem ali à volta. Não tem amigos ali à volta – pelo menos, eu não os vejo. Mas ele fala como se eles ali estivessem – e talvez até estejam. Tem longas conversas que eu não percebo, sorri, ri, enerva-se, levanta a voz. Mexe os braços e inclina o corpo para sussurrar qualquer coisa a qualquer pessoa que ali esteja. Leva, à boca, a cerveja. Bebe muito. Já tem pouca. Olha para o amigo, olha para a cerveja, e bebe o resto. Continua a conversa com quem ele vê, e encosta-se na cadeira. Levanta o braço, volta o empregado e volta o pedido. Na verdade, ele não diz nada – apenas levanta o braço segurando o copo. O empregado percebe, claro que percebe, todos os empregados percebem, toda a gente percebe, e regressa com um cheio. Coloca o copo na mesa, pega no copo vazio e volta para o balcão. Entretanto, tantas conversas com aquela multidão. Ela não se vê, é um exército de fantasmas que ali está, alinhado, pronto para qualquer ordem de ataque. Bebe mais um pouco, olha em volta, fala para um lado, fala para o outro, fala em frente, vira-se para trás e dá um grito. Volta à cerveja, voltando um bocadinho a si. Já não fala. Olha em frente, como se olhasse para dentro. Fica assim durante uns instantes, parecem muitos, parecem longos, parecem infinitos. Eu olho para ele de longe e vejo que ele, mesmo olhando, não olha para lado nenhum. Mexe os lábios devagarinho, mas não fala – parece dizer qualquer reza que sabe de cor, que lhe silencia todas aquelas vidas que lhe existem ao redor. Volta a parecer um homem a beber uma cerveja. Talvez esta seja a solidão mais só.

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desenho

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Ele anda deambulando, rabiscando em folhas que lhe aparecem à mão. Ora sentado, ora andando, ele vai sendo e vai estando em cada recordação. Porque são recordações aqueles desenhos que ele faz durante todo o dia. São como pequenos corações que trazem alegria a quem passa pelo seu caminho. Desenha o que lhe aparece, o que ele quer. E lá anda sozinho, em troca de um copo de vinho, a percorrer a cidade. Parece não ter idade, mas já é velho – pelo menos, aparenta. E os desenhos que ele inventa estão todos na sua cabeça sem pente. Ele desenha o que vê, ele desenha o que sente. De perna cruzada, sentado na esplanada de um café ou no degrau de uma porta, ele vai desenhando aquilo que ele é – o resto pouco lhe importa. Só quer ter liberdade para desenhar, para se sentar, para parar e olhar com atenção. Ele só se desenha a si mesmo, mesmo só desenhando tudo o que lhe está fora. Não demora quase nada a fazer a sua arte – é só o tempo de um instante. O instante faz parte, a inspiração é constante. Seja Inverno, seja Verão, seja Outono ou Primavera, lá anda ele, de pés colados ao chão, viajando de estação em estação, talvez pensando naquilo que era. Talvez não. Não sei dizer. Não sei se ele é assim por obrigação, se por querer. Mas a verdade é que ele anda sempre de caneta na mão, a tentar viver. E o que se pode dizer de quem tenta viver assim? Ele é o que tem de ser, uma espécie de fim ambulante. Sempre encostado às paredes das ruas que percorre, sempre distante. Às vezes, parece que morre, mas é durante essa pequena ausência que ele faz magia. Como se a noite virasse dia, assim, num repente. E toda a gente vê tudo o que não via, e ele vê toda a gente. De barba branca e de gorro na cabeça, parece esconder-se do mundo. Anda durante o dia, à espera que anoiteça para voltar para a sua casa – seja lá ela o que for. Talvez durma na rua, talvez tenha um amor à espera dentro de quatro paredes e um telhado. Que vida será a sua? Por quem será desenhado?

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ela e a vida

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Ela fica ali a tarde inteira. Parece não se mexer. Sentada, na cadeira, a fumar e a beber. Está sempre naquele café junto à estrada. Eu desço a rua, eu subo a rua, e vejo-a sempre a fazer nada. Só ali a existir, a conversar, a sorrir e a tentar passar o tempo, como se o tempo fosse tudo o que lhe restasse. Não terá trabalho, não terá família, talvez um cão que estará em casa a dormir no sofá velho que ela terá na sala. A casa será velha, arrendada, um apartamento escuro num prédio da cidade. Terá sido casada, uma vida infeliz, triste, amargurada. Decidiu abandonar, não aguentava mais os gritos e as ameaças do marido. Ao início, sonharam com tudo, com uma vida bonita, filhos e uma cabana. Mas cedo o casamento caiu. Foi ele quem a traiu. Olhou para outra, foi atrás dela, mas não fugiu. Foi vivendo duas vidas, assim escondidas, pela tristeza e pela mentira. Foi chegando tarde a casa, foi rejeitando a cama, o coração já não estava em brasa, só berros e lama. E ela foi hesitando, sofrendo, desconfiando e sendo o melhor que poderia ser naqueles instantes de tortura. Já não havia amor, só amargura. Toda a ternura tinha desaparecido, ele já tinha ido embora, não se aguentavam nem um pouco, e agora, ele, louco, já sem ela e sem ninguém, volta de vez em quando para ter o que já não tem. Mas não consegue. Ele vem, mas ela diz sempre que não. Ele insiste, não desiste, mas ela não quer, e fica triste, ali a mulher. Ela tem outra solução, seguir com a vida dela. Já tentou, mas a sacana da depressão não a deixou. E ela por ali ficou. Sentada na cadeira, a fumar e a beber. À procura de nada, só de um sítio onde se proteger. Estão outros sentados noutras mesas à volta dela, bebendo e fumando também, vendo televisão, lendo revistas e jornais, falando das vidas dos iguais a eles que se passeiam por aí. E ela aqui, neste café, passando a tarde com a vida como a vida é. Acorda, faz qualquer coisa pela rua, e lá vai para o café. Desempregada, sem nada para fazer, lá está está ela sentada, a fumar e a beber.

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um passado

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Tem cara de Adelino. É dos olhos, da boca, do nariz, mas, essencialmente, do nada que ele diz enquanto está ali encostado àquela porta. Tem cara de Adelino. Na verdade, não sei bem por que razão. Mas é como se ele rejeitasse todos os nomes, e aquele não. Adelino, um abraço de velho com menino. Um só, eles os dois, ali bem vestido, olhando as pessoas a passar, olhando as pessoas a dançar, mas parecendo olhar o tempo que vê a contar. Em casa, certamente, terá alguém. Uma mulher que o espera vendo televisão ou que não o espera, de todo, sabendo que ele vem, um bocadinho mais tarde, como o Pessoa, p’ra ao pé do seu coração. Ele agora está ali. É de noite, e eu não sei quem é. Olho para ele, e tento descobrir qualquer coisa, ali, de pé. Já é um senhor de alguma idade – como se todos os senhores não fossem de alguma idade, seja ela qual for. É de noite, e ele parece não pertencer. Mas há qualquer coisa de amor, de enternecer. Uma imperial na mão direita e um vazio na mão esquerda, que ora vai ao bolso, que ora fica suspenso no ar. E ele, ali, a olhar. As pessoas dançam, as pessoas falam e bebem. Ele, bem mais velho do que todas elas, como se fosse uma estátua dos que já foram, uma representação dos que já não estão ali, um guardião dos que passam por ele, brincando, rindo, cantando, e ele sereno, como se o seu único propósito fosse ocupar aquele espaço junto à porta, ora do lado de dentro, ora do lado de fora. Quieto, sem ir embora. O Terreiro tem ali a sua gente concentrada, nos Filipes, e ele à entrada. Bem vestido, postura firme, barriga saliente. Ninguém fala com ele, e ele, discretamente, vai ouvindo e vendo o que se passa, fazendo o que eu faço também, inventando histórias das pessoas que aquele lugar tem. De cabelo branco, cara enrugada, olha e vê tanto, olha e vê nada. Mais uma cerveja para entreter o que ele deseja compreender. Tanta gente e ele sem ninguém, certamente em casa o espera alguém. E ele lá há-de ir, assim meio a sorrir, assim meio menino. Não parece fingir. Tem cara de Adelino.

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o velho no muro

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Na esquina, dizendo adeus. Lá está ele, velhote, vivendo enquanto partem os seus. Já não há ninguém da sua idade, da sua geração. Todos partem, ele não. E insiste em ficar, como quem não quer a coisa, como quem nem liga à vida, a observar. Sentado ao sol, num pequeno muro de pedra, vê as vidas dos outros a passar. Ora de carro, ora a pé, muita gente lhe levanta a mão para o cumprimentar. E ele levanta a sua de volta, e volta a vida a passar. O que lhe vai na cabeça, nos olhos que controlam a estrada? Tanta coisa, talvez nada. A sua vida é estar ali, observando o que se passa à sua frente, dando um certo objectivo ao seu dia, dando-lhe que fazer. Se alguém lhe perguntar, ele dirá que está a viver. Tanta gente que ele vê, que passa ali naquele lugar. Tanta vida que ele, ali, deve inventar. Aquela leva os filhos à escola, aquele vai almoçar, aquela vai às compras, aqueles vão trabalhar. Esteja frio ou calor, ele não sai dali durante uns bons infinitos. Sempre que o vejo, ele está lá. Mas não passa lá os dias inteiros, obviamente. Tem a sua vida noutros lugares, em casa, na horta, no café, nos caminhos, na família. Eu é que olho para ele ali, naquela esquina, naquele lugar, e parece mobília. Parece tudo aquilo que nós quisermos pensar. Um velho ali quieto, a olhar. Faz parte da paisagem, fará parte da miragem quando ele deixar de existir. É ele a sua imagem, é ela que nos diz adeus a sorrir. Ora de boné, ora de gorro, o tempo não lhe mete medo. O que será que ele vê além do óbvio? Qual é o seu segredo? Será que conhece mesmo toda a gente? Será que está ali só por estar, indiferente? Talvez sim, talvez não. A verdade é que ele existe naquele lugar, naquele instante, levantando a mão. Por vezes, faz só um aceno com a cabeça. E aquele gesto ameno faz com que tudo aconteça. Se eu o olho e lhe digo olá, todo o seu rosto brilha, e parece que ele sai da ilha onde está. Todo ele sorri, todo ele é dono de si, da sua felicidade. Alguém o viu, alguém lhe disse olá ou disse adeus – é tão difícil distinguir – e ele respondeu do lado de lá, sempre a sorrir.

Jornal de Leiria

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volta a leiria

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Anda vadio pela rua, e lá anda pela estrada. Ele e uma bicicleta. Mais nada. Ele de colete fluorescente, equipamento obrigatório em cada corrida, passando assim pela gente como se passasse pela própria vida. É uma bicicleta vulgar, mas parece um foguetão que o leva sempre a voar sem nunca sair do chão. Já o apanhei a pedalar, já o apanhei ao lado dela. Depende do lugar, parece uma caravela e ele um daqueles marinheiros antigos de cara cansada e postura forte, passando assim por nada como se passasse pela própria morte. Não se deixa abater. Faça chuva ou faça sol, lá está ele a ser o ciclista que tem na sua imaginação. Uma espécie de artista, de camionista de coração. O olhar é inquieto, parece estragado, por estar muito aberto a olhar para todo o lado. E o cabelo aos caracóis, quase inexistente, puxado para trás, por um pente. Assim parece, assim é, umas vezes montado, outras vezes a pé. Mas sempre focado no seu objectivo de andar de um lado para o outro, de fazer um percurso que ele tem na sua cabeça. Sempre, todos os dias, a subir, a descer, lá vai ele a ser, a pedalar. A vida não lhe parece ser mais do que aquilo que ela é, uma pista de corrida. Nunca o vi com alguém. Vejo-o sempre sozinho, destacado do pelotão, o camisola amarela. Talvez a mãe o chame para casa, da janela. Talvez ninguém o chame. Parece-me mais assim. Parece haver pouca gente à volta dele. Pelo menos, para mim, que o vejo todos os dias compenetrado, embora vadio, concentrado, no meio da estrada ou junto ao rio. Será que ele se imagina numa Volta a Portugal? Será que ele sobe a rua como quem sobe a Nossa Senhora da Graça? A verdade é que ele leva aquilo a sério, e aquilo não lhe passa. Fica-lhe na cabeça como se fosse realidade. Por mais estranho que pareça, sim, é mesmo realidade. Tudo o que ele imagina, existe. Mesmo para quem olha de fora, e lhe pareça um cenário triste. Ele pega no guiador e lá vai ele sem destino. Talvez a meta seja o amor, mesmo que pequenino.

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uma série, tantas repetições

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O senhor Alberto vai todos os dias ao ginásio. Acho que é assim que ele se chama. E acho mesmo que vai. Ele diz que sim, sempre que o encontro por lá. E eu só tenho de acreditar. Ele não mente, não tem cara de mentir. Tem cara de lá ir – ou de dizer verdade quando diz que vai. É simpático, está sempre com um sorriso naquela cara bochechuda e pequenina daquele corpo bochechudo e pequenino também. E anda pelas máquinas a experimentar uma e outra, sempre a sorrir e com os olhos pequeninos, de toalha ao ombro e olhar fisgado numa ou noutra conversa que lhe apareçam à frente. Eu acho que ele só vai ao ginásio para poder estar rodeado de gente e de conversas. Na sua horta, que diz que é pequenita, mas com tomates, romãs e batatas, deve sentir-se sozinho. Fala para ninguém. Ali, no ginásio, ainda encontra alguém. Muita gente, até. E ele lá manda uma laracha daquelas que são o que ele é, do estado do tempo ou do cá estamos, tem de ser, cá se vai andando. E nós todos estamos, temos de ser, cá vamos andando. Com ele. Dá-me sorriso olhar o senhor Alberto. Está lá sempre de manhã. Por entre musculados e delineadas, a olhar para um lado, a olhar para o outro, como se estivesse a ver um filme de que gostasse muito e que o levasse às nuvens – qualquer coisa assim muito poética para a visão que tenho de um velhote, ainda não muito velhote, num lugar que não é o seu, a apreciar o que não tem, o que o rodeia. Só gente linda, nada de gente feia. E ele faz parte daquele lugar. Mesmo não lhe pertencendo, é lá que ele deve estar. E é lá que ele faz os seus exercícios de braços, de pernas, de tronco, de cabeça – de imaginação, talvez melhor dizendo. Ele trabalha o coração, e eu vou vendo. O senhor Alberto vai ali só para estar, só para ver e só para falar. Ser ginásio é irrelevante. Poderia ser um talho ou um jardim. Mas sei que tudo é bastante, e que o senhor Alberto também olha para mim. E fala comigo vulgar, como se tudo fosse importante, e o mais importante fosse estar.

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os dois e a noite

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Ele e ela, ali os dois, no mesmo lugar. Um lugar pequenino, sobre rodas, a trabalhar. De noite, lá estão eles. Não todas as noites, só algumas, até às tantas, no estacionamento do mercado. Vendem bifanas, cachorros, hambúrgueres, kebabs. Cervejas, águas e sumos. Oferecem conversas e companhias a quem vem da noite ou a quem só a terá como destino depois daquela bifana especial com todos os molhos. Para beber? Pode ser uma média. Ela, vestida de branco, com a farda quase militar de quem pergunta, organiza, cozinha. Ele, vestido de uma cor qualquer, com uma farda que é uma t-shirt que tem vestida e que tem nódoas de conversa com quem se alimenta ali encostado ao balcão. É ela que orienta, é ela quem manda ali. Ele nem tenta, apenas sorri. À sua maneira, fazem o que têm de fazer. Muito mais do que cozinhar ou de pôr maionese numa bifana à casa. Eles conversam, ouvem lamentos e desejos, vêem abraços e beijos de quem chega ali esfomeado de falar. E de comer, que a noite também dá fome. Como se aquele lugar, àquelas horas, fosse um confessionário da comida, uma espécie de santuário para quem acaba e para quem começa a vida escura. Fala-se da vida e das coisas que a vida tem. A bifana é um pretexto. Há fila como se fosse romaria, existência como se fosse dia. Mas é a noite que existe. E lá está ela, a fazer o cenário para aqueles dois e para todos aqueles que por ali passam. Aos pares, em grupo, sozinhos. E a noite é deles todos. De quem lá vai contente e quase no fim, de quem lá vai triste, de quem lá vai só porque sim, porque faz parte da rotina que leva quando sai. E eles os dois, ali, quase como mãe e pai. Recebem toda a gente, falam com toda a gente, decoram os pedidos de cada um. Por atender? Nenhum. Toda a gente lá acaba por comer. E dar uma palavrinha ou outra. Seja jovem, seja velho, qualquer um é recebido e ouvido por ele e por ela. Há simpatia, simplicidade, alegria, e a cidade ali estendida entre dois dedos de conversa e outros tantos de comida.

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sem pregões

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Duas douradas, uma escalada, outra não. Choco e lula. Corvina e sardinha de mão em mão. Meu amiguinho, obrigada. E lá vai ela agradecendo, enquanto amanha mais uma pescada. Terças, quintas e sábados, lá está ela na sua banca a vender o peixe que lá tem. Sempre bem apregoada, entre gente que vai e gente que vem. E a gente faz fila e espera pela sua vez. Quantos carapaus? Hoje, levo três, vai lá o meu filho almoçar. E lá vão os três carapaus, acabadinhos de pescar. Ela de um lado para o outro, a ouvir, a falar, a sorrir, a escamar. Tem contas apontadas nos azulejos azuis da sua banca por cima de um Santo António, uma Nossa Senhora e um telemóvel. Cento e vinte e quatro mais cento e quarenta e um dá duzentos e sessenta e cinco. Cento e dezasseis mais duzentos e catorze dá trezentos e trinta. Contas certas, rezas feitas, telefonemas atendidos. Diga, diga. Está guardado, não se preocupe. E, por entre toda aquela algazarra que lá vai dentro, lá vai ela fazendo contas, vendendo, rezando. E o tempo lá vai passando. Este é para levar ao forno, aquele é para grelhar, o outro ainda não sei. São todos para levar. Peixe fresquinho, acabadinho de chegar. Tem companhia, a mulher. Outra que a ajuda a atender, a preparar, a receber. Em silêncio, ali na sombra, sem se notar. Cabelo esbranquiçado e apanhado, para não estorvar. Voltemos a ela. Cabelo loiro, um pouco apanhado também, e lá vai ela atendendo a tal gente que vai, a tal gente que vem. Sorri assim quase por vergonha. É tímida – pelo menos, parece. Tem sempre palavras serenas para quem chega. Não faz alaridos, não berra. Destoa, até, um pouco das colegas que lá tem a vender o mesmo peixe, que não é o mesmo peixe, que ela. Ou a fruta. Ou os legumes. Ou as plantas. Ou as ervas. Ou o que for. Melões, cenouras, batatas, tomates, feijão, alecrim. Tudo em torno dela. Ela em torno de mim. Duas douradas, uma escalada, outra não. Choco e lula. Corvina e sardinha de mão em mão.

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rock and roll leiria

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Ele é do rock. Desce e sobe ruas como se subisse e descesse escalas no braço da sua guitarra. A rua, por agora, é sua e é o palco. Sem guitarra e sem escalas. Tudo na sua cabeça. E na minha. De cor e salteado, por aí, por todo o lado, cabelo grisalho e comprido ao vento, sentindo o tempo, marcando o tempo. Batida acelerada, como o passo, andar seguro, mas não severo, com aquela ginga do rock and roll, dos músicos dos outros tempos que agora existem a lembrar e a conversar e a ouvir o que lhes foi a existência. Olho para ele e vejo épicos solos numa Fender ou numa Gibson. Uma maravilha. Também o poderia ver numa Tama ou numa Pearl, sete tambores, quatro tarolas, três bombos, vinte pratos. Outra maravilha. Mas, por qualquer razão da minha visão, lá está ele com uma guitarra amarrada ao pescoço. Parece que procura alguém que o acompanhe no riff que criou para a sua vida. Como se procurasse alguém para o acompanhar na sua despedida. Já não é novo, já tem as suas entradas e as suas conversas de tempos que só ele e outros como ele viveram. Mas ainda está aí para as curvas e contra-curvas que a vida certamente lhe vai apresentando. Como a idade. Filipes, Farmácia, Arquivo, Centro de Saúde. Lá vai ele, mais amiúde. Como os Xutos. Mas sozinho e sem pontapés. Cabelo sempre solto, calças sempre justas, conversas sempre prontas. Quando alguém o pára, ele fala e continua a falar – e parece que se ouve, outra vez, a guitarra a tocar. Antigamente é que era. Os putos não sabem. Era ele e outros tantos, ali, a viver a vida louca das canções. Mas os putos sabem, claro que sabem, e sabe ele também, mesmo sabendo que antigamente também era – tal como é ainda hoje. É o que eu penso que ele pensa – a vida é que já lhe foge. Mas ele é do rock. O que lhe interessa isso da vida, mesmo que, tendo em conta o que ela é, ela já lhe ande fugida? Claro que nada. Ele continua a tocar, guitarra ou bateria, e continua a passear, a ser e a rockar por Leiria.

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flor

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Ele existe nesta cidade como tantos outros como ele existem em tantas cidades. Bem vestido, geralmente de calças de fato, de sapatos e de camisa branca, anda por entre as multidões vendendo flores, tentando, de certa maneira, acordar corações, juntar amores. E algum dinheirito para si e para a sua família, imagino. Não o conheço, não lhe sei a vida. Mas, quando o vejo, soa-me sempre a despedida. Tem um olhar triste que parece não querer ser outro – é aquele que ele tem e é aquele que está condenado a ter para o resto da sua existência, como se fosse um mártir daquilo que faz. Parece que as flores que carrega são pesadas como a consciência que traz ou como a saudade que sente sabe-se lá de quem, sabe-se lá de onde, talvez do pai e da mãe, talvez do país. Por vezes, há quem lhe pergunte. Ele não diz. Guarda as palavras para si, talvez por vergonha do erro ao dizê-las numa língua que não é a sua, talvez, simplesmente, por não as querer dizer – não tem de as dizer. Basta-lhe a rua. Só pergunta à gente se a gente quer flor. Mais nada. Anda vagabundo com vários ramos, como se fosse um chefe de mesa deambulando, vendendo amor. Meia dose, meia dúzia do que for. Vai a festas, vai a ruas, vai a todo o lado desde que haja gente a conversar, a jantar, a namorar. Vai a todo o lado, é de todo o lado, talvez por não se saber encontrar, talvez por não ser deste lugar. Mas, mesmo não sendo, faz parte dele. Este lugar não existe da mesma maneira se ele não existir também. Faz parte da cidade, da calçada, do dia e da noite, das brincadeiras e dos engates. Por vezes, até faz parte das palavras preconceituosas, dos espinhos das suas rosas, e dos ataques. Mesmo assim, talvez ele até seja feliz. Talvez o rosto que aparenta não seja reflexo do que sente. Se calhar ele até tenta ou, para ele, a felicidade é uma coisa diferente. E ele lá anda, sempre discreto, contornando vidas e conversas e bebidas e sem pressas. Devagarinho, fazendo a sua vida ao seu jeito. Pela sua cidade, com as suas rosas ao peito.

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pela vida, cidade

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Anda pela cidade devagar, como se a cidade só andasse se ele andasse também, como se ela não pudesse respirar, como se ele fosse os pulmões que ela tem. E ele fala assim, envergonhado, com medo de falar, vai-se chegando aos outros encurvado, numa forma tremida que parece venerar. Anda pela cidade às escondidas, como se ninguém o visse e toda a gente o encontrasse, como se ele se despedisse e logo depois se mostrasse a quem está aqui e ali, numa esplanada, a quem anda a passear, a quem faz nada, a quem faz o nada durar. Anda pela cidade como se andasse pelos corredores da sua casa, pôr a mesa, mudar de canal, vestir o pijama, ler o jornal, e lá anda ele com os talheres e o comando, a flanela, o papel e o vai-se andando que a vida vai passando, e não é que a vida passa? E nem sempre é alegria, e nem sempre é desgraça. É o dia que ele vê e que ele tem, é o fim de tarde, o fim de dia, o fim de um filho de um pai e de uma mãe. Quem são, por onde andam, e ele por aqui, pelas ruas que desandam, pelo sorriso que, lá de vez em quando, sorri. Anda pela cidade parecendo assim, um caminhante cumprindo uma promessa de quem anda sem fim, sem promessa alguma, só com a crença numa espécie de doença que parece que o aproxima da loucura. Caminha e, por caminhos, vai sendo quem ele é, uma espécie de peregrino, um menino apregoando a fé. Anda pela cidade parecendo pedinte, lotarias, raspadinhas, sendo ouvinte de sins e de nãos, muito mais de nãos, e das ladainhas que ele diz para aceitar uns e outros, não infeliz, também não contente, parecendo assim, por um triz, ser gente. Anda pela cidade parecendo perdido, magrinho, olhar alto e no chão, conhecendo as pedras por onde anda, um homem sozinho numa banda com trombones, tambores, oboés, tudo calado rente aos pés num guarda-chuva fechado, pendurado à espera dela. Mesmo sem previsão, ele anda com ele à mão e não se desfaz da vontade que se acomoda. Ele e ele, a vida, e anda a roda.

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maringá menino

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Há tanto tempo que ele anda por cá, que eu o vejo por aqui a caminhar. A sua casa é o Maringá. É sempre onde ele está, quando o quero encontrar. Nunca fui ter com ele, não sei como se chama, nunca lhe disse nada. Sei que, para mim, aquele lugar, para ele, é morada. Ele faz parte da cidade. Toda a gente o conhece, mas parece que ninguém lhe dá um nome ou uma medalha que ele merece ter apenas por ser. É que ele faz parte dali, ele é ali, mesmo sem saber – julgo eu que ele não sabe. Eu só vejo de fora e imagino. Ele passa por mim, como passou agora, como se fosse um menino. A cara é igualzinha à do Robin Williams – ou eu é que vejo na cara dele a cara de alguém de quem eu gosto para que ele, de certa maneira, se aproxime de mim. A culpa não é dele, eu é que sou assim. E ele é como é, obviamente. Num lugar dele, com tanta gente. Com tantas lojas, tantos corredores, tantas portas, tantos amores que são família. Tudo é casa, ele é mobília. Ele por ali, a cuidar de tudo o que lá está. Vai às raspadinhas ver se alguma tem prémio, na esperança de que alguém a tivesse raspado e, sem atenção, não tivesse reparado e a tivesse atirado para o chão. Se, algum dia, alguma tiver, se ele encontrar os milhões que procura, o que irá ele fazer? Alguma loucura? Ele já é visto como louco. Nenhuma loucura seria maior do que aquela que lhe dão. Ele vive bem com pouco. Nós é que não. Certamente, ele não faria nada. Olharia a raspadinha premiada, sorriria e seguiria com a sua vida. Que vida é essa que ele tem? Sempre cheio de pressa, como quem estivesse muito ocupado a cumprir um horário. Rica vida a deste quase milionário que anda por aí. O rosto diz ternura e o rosto sorri um sorriso leve, a passar por despercebido. Ele vive a vida breve, de cabelo comprido. Parece um fantasma – não lhe ouvimos os passos nem a voz. Os gestos são escassos, o resto somos nós. Faz parte da paisagem, confunde-se com tudo o que nela permanece. E lá anda ele em viagem, a pé, pela vida que lhe aparece.

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ao canto do outono

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À esquina do Inverno, vem o frio e ela também. Ali, junto à rodoviária, bem no centro da cidade que nos tem. Ao fundo da avenida, lá está ela com as castanhas, dando calor à vida. Quem lá passa, lá a escuta. Ali, entre o castelo e o rio, na sua luta. E apregoa como um desafio. Meia dúzia, mais uma ou duas. E, se não mata a fome, mata o frio. As castanhas e as dores? Todas suas. Mas também as alegrias, as vidas e os dias que ela conta e que lhe dão a ouvir. Dos adultos, as coisas banais. Das crianças, palavras a rir. Um carro que se empurra e que fica ali quietinho. E o fogareiro de duas asas, dormindo sobre as brasas, ali quentinho. Naquela curva, junto à passadeira. Vai passando a vida, e ela, de vez em quando, na brincadeira. Sorri e ri tantas vezes, talvez para esquecer ou para enganar o esquecimento. Ela lá sabe, e ele lá arde. Com o tempo. E ela também, a mulher que apregoa ao fim da tarde. Ao pé de um canteiro lá faz o dia, entre gente que passa de compras na mão. Faz parte da moldura que é já poesia, em folhas de jornal com que embrulha o coração. E lá estão as pessoas, acompanhadas, sozinhas. Quem quer quentes e boas, quentinhas? Rosto maroto, cabelo branquinho, parece um garoto, mas já velhinho. Talvez tenha tido a vida que sempre quis, talvez não. Não sei se é feliz, mas as vidas que ela diz ainda cá estão. Carrega-as no carrinho, mas não as diz assim a ninguém – estão num lugar distante. Parece levar a vida de mansinho, ao de leve no seu carrinho, a mágoa que transporta a miséria ambulante. E, quando eu passo por ela, vem aquele cheirinho bom de uma castanha à janela debruçada sobre um naperon. Há casa antiga naquele lugar, naquele cantinho que já é seu. Uma sala de estar, um rádio a tocar e um tecto feito de céu. A porta está sempre aberta, venha quem vier por bem. A rua nunca deserta, há sempre alguém. E eu não sei quem está ali, nem quem lhe passa ali ao lado. Pedacinhos de Ary. Quem sabe a desventura do seu fado?

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ele, alguém, telefonia

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Não sei quem é, nunca o vi – não sei se existe alguém que já o tenha visto. Mas ele existe e, se eu o oiço, também eu existo. Na verdade, nunca o ouvi – o que me leva à dúvida lógica de se alguma vez eu existi. Oiço, isso sim, o que ele põe a tocar. Diria que é para mim, mas é para toda a gente que por ali vai a passar. Ou só para ele – nem toda a gente vive só para os outros, para mostrar. Sábado de manhã e lá está o senhor, ou a prova sonora de que, de facto, o senhor está, com o rádio sintonizado, certamente com amor, algures entre o chuvisco e as canções, entre as palavras e os trovões, mas numa espécie de som bordado que faz daquela manhã, naquele lugar, um espacinho bom onde estar. Olhando a porta, assim do fundo das escadas, um chapéu de palha pendurado e uns pedaços de pano – um Tom Sawyer escondido. E ele em nenhum lado, talvez lá dentro, fechado, desumano. Ou perdido. Como se apenas comunicasse assim, através do éter da telefonia. Lá, do meio do jardim, durante o dia. Nem é bem jardim, é casa velha e um pomar, coisas a chegar ao fim, e o rádio a tocar. Nem sempre é melodia. De vez em quando, é chinfrineira. A vizinhança bem queria mas, naquela manhã daquele dia, parece a feira. Contrasta com o castelo e com o verde que se vê, com os passarinhos que cantam, com o jornal que se lê. E está tudo bem com isso – pelo menos, parece estar. É como se houvesse o compromisso de, naquela manhã daquele dia, o rádio tocar. E não se ouve mais nada. Só, de vez em quando, o cão a ladrar – uma espécie de locutor que mantém o ouvinte no ar. Tudo ali é quase Kusturica, quase Chopin. E tudo ali fica, naquela manhã. É como se fosse uma ilha e, à volta, a cidade que é o mar. Um chinfrim de maravilha logo ao acordar. Eles fazem parte daquela paisagem – ele, que não o vejo, a casa e o barulho. Há também uma garagem, quase de certeza com entulho: ferramentas e pó, tudo ao calhas, um homem só e um rádio com falhas. Uma algazarra, naquela casa deserta. Um grito de garra, com notícias à hora certa.

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todos os nomes daqueles dois

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Um e outro ao lado de um e do outro. Sempre os dois, lado a lado – como na canção, meu amor, mas não tão longe. Sempre perto, um e outro, naquela rua antiga desta cidade, aquela direita que não é, como todas as outras que, sendo assim, não são. Num extremo, o terreiro. No outro, a sé. No meio, quase a meio, mais ou menos a meio, fazendo uma esquina que se inclina para a praça, eles os dois, num lugar aonde se chega pelo cheiro, ou melhor, pelo aroma – talvez dê um ar mais verdadeiro daquilo que aquele cheiro é. Quem chega, entra e vê. Um e outro ao lado de um e do outro, ambos em pé. Bom dia, ou boa tarde, como está, prazer em vê-lo. E parece um regresso a um passado antigo (como todos os passados dignos de serem recordados – como se houvesse falta de dignidade na recordação de outros que acabaram de acontecer), daqueles dos reis e dos cavalos, dos servos e dos rendilhados nas saudações. Serão irmãos, são irmãos, se não forem irmãos, são na mesma, tais são as parecenças em tudo aquilo que mostram: corpo, que tem mãos, pernas, olhos, cabeça, e comportamento, que tem cuidado, reverência, velhice e quase continência em quase submissão. Um e outro ao lado de um e do outro. Sempre os dois. Ali, atrás do balcão. Não os vejo noutro lugar. Também não os procuro – não tenho de os procurar. Mas nunca os vi noutro lugar. Se calhar, eles também não. Eles existem ali, vivem ali, são ali. E aquele lugar, tendo sido de tanta gente, é agora, mais do que deles, eles. Aquele lugar, com tudo o que aquele lugar tem, é um e o outro. Nem sei como se chamam – nem sei se interessa, na verdade. Talvez tenha interesse, isso sim, não saber como se chamam – não lhes saber os nomes é saber-lhes todos os nomes, não lhes saber as vidas é saber-lhes todas as vidas. Eles são eles os dois. Sem tirar nem pôr. Tudo um imenso amor por aquilo que estão a fazer – que é, mais do que acto, potência do que estão a ser. Talvez sejam apenas um. Olho para eles e são dois mas, se um não está, o outro, estando ali, é como se não estivesse. Eles são ali. Pelo menos, é o que me parece.

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barbie pantera

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Lá vai, lá vem, o baloiço pela mão do pai, a menina pela mão da mãe. A mãe não está ali, apenas o pai a baloiçar a menina que sorri, e a mãe noutro lugar. A mão é só para dizer que a mãe, mesmo não estando, é como se estivesse a ser a menina baloiçando. Mas ela está sem ela, só com o pai, com mais ninguém. Talvez a mãe esteja à janela a ser menina também. Mas não sei dela, não a vejo. No parque, só a criança. O pai dá-lhe um beijo e a menina balança. Para a frente e para trás, para trás e para a frente, o balanço que o pai faz deixa a menina contente. Ela de cor-de-rosinha, ele de preto-escuridão. Uma princesa florzinha, um barbudo mauzão. Calças justas e rasgadas. Tatuagens e pulseiras. Correntes, brincos e espadas. Botas, anéis e caveiras. Leggings coloridas, bandolete nos cabelos. Palavras decididas e feridas nos cotovelos. Não as vejo, mas invento. Ela não pára sossegada. Parece nuvem, parece vento e parece já cansada. Vamos, já é hora, temos de ir almoçar. E a menina parece agora ter mais vontade de brincar. E ele, autoridade, deixa a menina brincar. Ele já teve aquela idade, ele também está a baloiçar. Com sapatilhas de luzes e revista da Barbie na mão. Na pele, desenhos de cruzes. Só falta a distorção. Volta a ser puto feliz, lembra aquilo que ele era. No dedo, um pequeno nariz. Nos ouvidos, Pantera. E toda aquela beleza, que ele lembra com ternura, dá o colinho à princesa enquanto ouve Sepultura. Mas é tudo normal. O baloiço vai e vem. De um lado, as forças do mal. Do outro, as forças do bem. Ali, no mundo inteiro, uma espécie de batalha entre um bonzinho metaleiro e uma rebelde pirralha. Na minha alma há um baloiço que está sempre a baloiçar. E eu vejo e eu oiço o que eu quiser inventar. E uma menina bonita sobre ele sempre a brincar. Se a corda se parte um dia (teria alguma piada), era uma vez a folia, fica a menina sossegada. Cá por mim eu mudo a corda. Ela não cai, não dói, não nada. Se a menina caísse, mais valia não escrever e esperar pela velhice, baloiçar-se sem querer. Mudar a corda era fácil, mas ela tem de crescer.

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cortejo de um homem só

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Ele sai de casa bem vestido, fato engomado, mãos nos bolsos ao comprido, como se fosse cantar o fado. Não canta, pouco fala, só um bom dia ou um boa tarde de vez em quando, em surdina, e lá vai ele andando, virando a esquina. Sempre muito direitinho e elegante, como se desfilasse devagarinho numa rua de Paris e, durante, assim de mansinho, fosse feliz. Não sei se é, nem sequer sei se parece, não dá bem para dizer, lá vai ele a pé e, quando vai, quase adormece, assim sem querer. Parece que vai num cortejo de despedida, sem caixão, talvez só o corpo que passeia. Lá vai ele pisando o chão, pisando a vida, calçada, terra, estrada, areia. De vez em quando, quando há, pára os passos, vê o que está, gente na escola, outra lá fora a falar, putos a jogar à bola, homens a trabalhar. Faz a vistoria às obras dali, como se fosse um fiscal de capacete amarelo, isso não é daí, aquilo está errado, mais para a esquerda, mais para o outro lado, e ao fundo o castelo. As mãos já não estão nos bolsos, agora atrás das costas direitas, um bocadinho curvadas, sempre estreitas. Por vezes, só imagina, julgo eu. Por vezes, só vê as tais ruas de Paris com as tais pessoas engomadas como ele num passeio que julga ser o seu. E ele feliz ou infeliz, não sei bem, não dá bem para dizer, lá vai, lá vem, lá anda a viver. Ali perto do fim, assumindo que ele vem para toda a gente, lá vai ele vivendo assim, lentamente. Talvez tenha vivido a correr, passando pela vida de raspão, e agora o que sente é só a vontade de ser o que lhe diz o coração. Ele ouve o peito, sorri, sem se perceber, e continua a direito, ali, só a ver. Como se esperasse o que lhe resta, e o que lhe resta é morrer. Mas sem pensar nela, na morte, que pensar nela traz mãos frias e má sorte. E ele assim deve andar, não pensando que ela vem nem sequer que ela existe. O que lhe interessa é caminhar, se ele começar a pensar, começa a ficar triste. Não vejo tristeza no meu vizinho. Vejo só delicadeza num homem que anda sozinho.

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