sozinha, a velhinha
Não está sozinha, a velhinha – está com o medo. Acompanhada por esse morte-certa-ou-talvez-nada que é o medo. Companheiro o dia inteiro que a faz estar, não sozinha, mas sem gente que se sente onde a velhinha tem a mão. Ninguém – talvez por ter medo, também. Ou é o medo que tem a gente, e a velhinha não sente e julga ser a multidão?
ele que vai
Não sei o que é, mas diria cancro. Ou solidão, que me parece pior. Pode ser uma união de ambos, como o uísque e o cigarro que devora todos os dias à mesma hora naquele café. Os olhos estão sempre longe, nem sequer olham o que leva à boca. A boca tem a abertura exacta para a dimensão do ponta do cigarro e da ponta do copo. E a sua vida, não sabendo eu o que é, parece-me andar na ponta do fim. Sendo uma coisa ou outra, nunca deixa de parecer uma coisa e outra. Que lhe devoram a vida.
ela à janela
Sábado de manhã, àquela hora, naquela rua, nesta posição, ela está à janela. Tem roupa lavada a esconder-lhe a curiosidade, estendida – ela, a roupa e a curiosidade – à janela. Quieta nos braços, inquieta na vigilância, ela ronda certeira a rua inteira, de uma ponta à outra, quem entra, quem sai, quem passa e quem fica. Fica ela ali, sossegada, escondida, alerta da vida. Nada passa sem que ela saiba, nada acontece sem que os seus olhos registem. Sábado de manhã, àquela hora, naquela rua – ela escondida – aconteceu isto assim assim, passou fulano, ficou beltrano e bateu o sol na roupa estendida.
mulher antes da partida
Compra o tempo com um cigarro. Vai às compras mas, antes de entrar, já está a comprar. Sacos vazios no carrinho, olhos vazios atrás dos óculos. A preparação passa pela tranquilidade de um cigarro ao sol, a olhar sabe-se lá para onde, talvez para dentro, que é dentro que temos a necessidade de um bafo de cinco minutos que nos ajude a acalmar a vida. Bem vestida, ela – não a vida, chega de tarde, não todas, mas sempre às quatro e vinte. Encosta-se à parede para ser desenhada ou para estar mais perto do cinzeiro, não sei, talvez ela saiba que a olham olhando sabe-se lá para onde, talvez para dentro, talvez não saiba e só quer é facilidade neste processo de queimada. Nunca a vejo no regresso, sempre na partida, ou melhor, no que lhe antecede a partida, no cigarro e na pose, nos sacos vazios e nos olhos que, para dentro, olham cá fora, neste processo de vida, mulher antes da partida.
a senhora que demora
Os meus primeiros brinquedos foram comprados aqui. Não sei se era esta a senhora que atendia a minha tia Nhanha, a tia que me mimava a infância, mas era aqui, nesta papelaria, que os meus primeiros brinquedos ganhavam dono.
Esta senhora seria a mesma, hoje parece ter sido mesmo. Ternurenta, lá de cima e lá de dentro, pelo sotaque com que diz bom dia, cá estamos, graças a deus e obrigado, esta senhora não sai dali porque é ali que ela é. Saindo, deixa de ser, e até o espaço deixa de estar. Acompanhada, muitas vezes, por outra senhora, mais nova mas mais antiga, esta, mais velha mas mais agora, recebe cada cliente de braços abertos no olhar.
Passa os dias à espera que entre alguém e há sempre alguém que passa e que não entra. Entre cadernos, peluches, jornais e porta-chaves, ela existe na demora do tempo que passa, na lentidão dos dias, na espuma das horas. Sempre que lá entro, entro só por entrar. Só quero sentir dentro a alegria de voltar a brincar.
o porteiro de passagem
Eu não o vejo, ele não me vê. Não sei quem é, não sabe quem sou. Mas ele sabe que eu vou, que passo por ele sem parar, ao entrar e ao sair. Não faz, nem faria, sentido ficar. Ele está ali para ver passar, e eu nem chego a estar.
Todas as quartas-feiras de todas as semanas, dois minutos antes das sete, toco à campainha e passo. Digo-lhe boa tarde e espero pelo elevador. Ele responde de volta, como um eco, e espera por ninguém. Está ali, quieto, olhando, quieto, estando.
É sempre, todas as quartas-feiras de todas as semanas, a última, dois minutos antes das sete, e a primeira, oito minutos antes das oito, pessoa que me liga à realidade dos outros. No quarto piso, tenho terapia. Lá, a realidade é a minha, só a minha, escura, sombria e funda de mão dada com quem visita comigo esse meu lugar.
Subo ao rés-do-chão, vindo do quarto piso, e ele lá continua. Não sei quem ele é, não sabe quem eu sou. Mas ele está, sempre, faz parte do processo de entrada e de saída do Inferno. De passagem.
o filósofo da benedita
Ir ao Bigodes é mais do que enfardar uma bifana cheia de mostarda, maionese e gorduras várias. Ir ao Bigodes é mais do que chafurdar numa sopa da pedra carregadinha de tralha boa. Ir ao Bigodes é, também – e essencialmente – sentar-se ao balcão, junto de peludos regos de camionistas e de exagerados tacões de putas, e contemplar. Contemplar os sabores, os cheiros, as coisas e as realidades que roçam as vidas que ali existem na mesma medida que existe quem existe na Nacional 1, de passagem. Como na vida, na verdade.
No Bigodes, há quem contemple eternamente. Não lhe conheço o nome. Pode ser João, Fernando ou Aladino. Pode ser qualquer coisa, que pouco me importa. Mas, podendo ser qualquer coisa, é apenas uma: filósofo. O Filósofo da Benedita. Ele é Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche, Platão, Voltaire e Sartre. Ele serve bifanas e sopas da pedra como quem pensa na morte, serve camionistas e putas como quem olha longamente para o abismo.
É o habitual, por favor. O quê?
o soldado que não voltou
Memória. É ela, parece-me, que lhe comanda a vida. Não é o sonho, como diz a canção. O sonho deve ter-lhe morrido no instante em que lhe morreu um camarada por estilhaços de uma granada no meio do mato. Angola ou Guiné, escuridão de certeza absoluta. Ainda hoje.
A guerra, ou qualquer outra coisa muito pior, fervilha-lhe nos gestos, corre-lhe no sangue que lhe corre pelo corpo inteiro, nas pernas que não falham um passo, nas mãos que não falham uma reza, na boca que não falha uma passa do charuto que chupa todos os dias sentado num pequeno muro de pedra. Tem o batalhão inteiro a caminhar com ele e o dever patriótico de cumprir a missão diária que lhe dá razão aos dias.
Não sai da rotina, não muda o trajecto. Só quando chega a mãe, que lhe pede ajuda com os sacos das compras, é que ele despe a farda e sorri, cospe o charuto e fala, larga o tempo e ganha cor. Ela vai embora, ele volta. E volta às voltas que a memória lhe dá. Angola ou Guiné. Oeiras, 2019. Amor de mãe.