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Agosto, 2017
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a repetição do conforto

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“Nada é mais certo neste mundo do que a morte e os impostos”. A frase é de Benjamin Franklin e vem provar algo de muito evidente: Benjamin Franklin nunca esteve em Portugal. Cá, há duas coisas mais certas do que a morte e os impostos: os incêndios e as cheias.

E, com essa certeza, vem outra: a de que vai continuar a haver portugueses especialistas nos incêndios e nas cheias.

Este ano, os incêndios atacaram o nosso país de forma dramática. Infelizmente, há deles que continuam e outros que talvez venham a atacar. No entanto, esta semana, choveu. Muito. Especialmente em Lisboa, provocando cheias. E claro que este contraste tão temporalmente próximo veio pôr a nu uma das mais vincadas características dos portugueses: o refilanço. Mas fundamentado, claro, sempre fundamentado.

Claro que isto não é exclusivo dos portugueses, mas a nossa queda para o fado e para o drama dá outra graça (e tragédia — que estes andam sempre de mão dada) a isto.

As razões são simples, dizemos nós: incêndios “porque as matas não são limpas” e “porque a floresta foi mal plantada”. Cheias “porque os esgotos estão entupidos” e “porque as ruas estão mal feitas”. Soluções? Mais simples ainda. Para os incêndios: “pôr os militares a limpar as matas” e “responsabilizar os proprietários”. Para as cheias: “obrigar as pessoas a limpar as ruas” e “controlar as barragens”.

Todos os anos, desde o ano de 1143, que Portugal tem incêndios e tem cheias. Não tinha antes porque antes não havia Portugal. E todos os anos, desde esse ano, que há portugueses a elaborarem teses de doutoramento do bitaite sobre os incêndios e sobre as cheias.

Temos todas as razões e soluções na ponta da língua, quase como se já estivessem engatilhadas desde o último evento deste tipo. Depois, é só disparar. E andamos neste círculo vicioso, nesta lenga-lenga de crítica, que nunca muda e que nunca faz mudar.

Mas talvez seja essa a nossa vontade. Que nunca mude. Quase como se precisássemos dos incêndios e das cheias para podermos mostrar que sabemos por que razão acontecem e qual a solução para que deixem de acontecer.

Mas será mesmo (só) isto? Ou estaremos reféns destes eventos por nos darem o conforto da sua previsibilidade? Falar de incêndios e de cheias em Portugal é quase como falar do jogo da nossa equipa. Sabemos tudo. Quem marca os livres, quem põe o fogo e quem entope os esgotos. Golo.

Sair do conforto é que não. Esmiuçar os incêndios e as cheias, sim, por favor, todos os anos. Sabemo-los de cor. Discutir, de forma constante, qualquer outro tema que nos coloque fora de pé é que já não dá jeito. As nossas opiniões repetem-se a cada ano não porque a História se repete, mas porque nós repetimos a História.

Opinar sobre os incêndios e sobre as cheias poderá ser uma espécie de tapar o sol (e a chuva) com a peneira da nossa falta de conversa e de coragem. Evitando silêncios que nos embaraçam e disparando conversas repetitivas que nos tornam seres humanos repetitivos. E, para isto da repetição, já nos bastam os impostos. E a morte.

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o desenho do shéu

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O Shéu fez-me um desenho. Foi em 1998, num convívio da casa do Benfica de Leiria, e o desenho que o Shéu me fez é o que mais me desenha a lembrança.

O pai do Mário foi buscar-nos a um jantar do SCLMarrazes, o meu negro clube onde jogava eu e o Mário. Éramos putos, eu tinha 13 anos. Hesitei em ir, por vergonha de estar com os maiores, mas a amizade pelo Mário e o sorriso do pai do Mário lá me levaram com eles. Era noite e havia pirilampos lá fora, no jardim. Lá dentro, no restaurante, havia estrelas. José Augusto, António Simões, Bento, Mário Wilson, Shéu, Veloso. Ficámos sentados junto do José Augusto e do Shéu. José Augusto, o bicampeão europeu, Shéu, o pés de veludo. Havia mais luz do que no jardim e eu não sabia o que fazer, não sabia para onde olhar, não sabia nada. Sabia, apenas, que estava junto de duas lendas que nunca tinha visto jogar ao vivo, mas que eram parte da linfa que me corre no meu (muito) vermelho sangue.

O Shéu, sempre discreto e sempre tranquilo, olhou para mim, pegou numa caneta, num papel e começou a rabiscar. Desenhou qualquer coisa como figuras geométricas – que era o que ele desenhava em campo – e ofereceu-me. Acho que paralisei. Olhei para aquela folha e vi genialidade que ultrapassava a de Picasso. Os desenhos eram horríveis mas, caraças, eram desenhos que o Shéu fez para mim. Que se lixe a Guernica e As Meninas. Este menino estava numa aguarela de museu e não queria de lá sair. Sou capaz de ter dito obrigado – a minha paralisia não me terá deixado dizer mais nada. Sei que o José Augusto também pegou na folha e assinou. Seguiu-se o Bento, que também lá estava ao lado, o Veloso, o António Simões e o senhor Mário Wilson que me chamou de craque (não me interessa mais nada, o senhor Mário Wilson disse que eu era craque, o número 7 do SCLMarrazes era craque, ponto final, foi o que ele disse e, se ele disse, tinha razão) – e todos sabemos que não se deve contrariar os deuses.

A terminar a noite, depois daquela enxurrada divina, dirigi-me à caça de autógrafos na mesa presidencial. Foi aí que desci à terra. Paulo Madeira, capitão de equipa, José Capristano, vice-presidente, e Vale e Azevedo. “Dá cá a folha que a assinatura de um presidente tem de ficar bonita”. Não há dúvida de que ficou bonita. Mas a anos-luz dos desenhos horríveis que o Shéu me fez.

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a morte do silêncio

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Numa sociedade de movimento, espectáculo e ruído, é difícil termos instantes de silêncio. Raras vezes convivemos com ele — por obrigação ou por vontade. É assim que ele se torna num corpo estranho para nós. E ignoramo-lo. Sem razão. A sociedade é ruído. É por isso que o silêncio é tão necessário.

“Ouve-me, ouve o meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa. Capta essa outra coisa de que na verdade falo porque eu mesma não posso”. A Clarice Lispector fala e nós devemos falar com ela. Mas sem falar, que, falando, acabamos com ele.

Ele é o silêncio e ele está a morrer. Pelo menos em parte das homenagens realizadas em Portugal. Em cada “minuto de silêncio” de louvor às vítimas dos incêndios, dos ataques terroristas ou de qualquer outra tragédia, o minuto é de aplausos, e os aplausos são de tudo menos de silêncio.

Aplaudir é outra forma de homenagem, é certo, uma espécie de levantar a cabeça, de mostrar que nada nos abate, um olhar e andar em frente. Nada contra. Mas tudo errado. Aplaudimos quando deveríamos silenciar. E porquê? Por gosto pelas palmas ou por medo do silêncio?

O silêncio traz a reflexão obrigatória, o mergulho no vazio que nos obriga a estarmos sozinhos connosco, com os nossos pensamentos, com a nossa profundidade. O momento já é delicado — homenagear alguém. Acrescentar, a esse momento, a sensibilidade de estarmos connosco talvez nos deixe desconfortáveis.

Associamos o silêncio à solidão e essa solidão adensa-se no contraste de estarmos rodeados de gente — como sempre estamos nestas homenagens públicas. As palmas, por sua vez, talvez sejam as palavras que não dizemos, as conversas que não temos com essa gente, que preenchem este vazio interior que há em todos os que lá estão.

Silêncio e solidão, dois conceitos e estados dos quais parecemos fugir a sete pés. Não por serem intrinsecamente maus, mas por nos obrigarem à companhia que talvez mais nos atormente hoje em dia, nós próprios. Fugimos de nós. E esta fuga merece um minuto de silêncio, não de aplausos.

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a banalidade do mal

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Quando Adolf Eichmann foi julgado em Israel, Hannah Arendt estava lá – como correspondente da New Yorker. Esperava ver um monstro, mas viu “um homem normal, um simples funcionário público que cumpriu os seus deveres enquanto responsável máximo das deportações dos judeus para os campos de extermínio”.

Eichmann “apenas” agiu segundo o que acreditava ser o seu dever. Nunca reflectiu sobre o Bem ou o Mal que as suas acções pudessem causar. Não foi capaz de fazer um julgamento moral das suas atitudes – se fez, fez o julgamento errado. O Mal tornou-se, assim, banal. É o que diz a filósofa alemã e é o que nos mostra a sociedade.

De certa forma, o Mal continua banal em nós. Uma marcha do Ku-Klux-Klan apoiada pelo Presidente dos Estados Unidos é só mais uma notícia de abertura de telejornal, um ataque terrorista do Estado Islâmico é uma simples nota de rodapé. O constante bombardeamento informativo sobre guerras, doenças, injustiças, fome, assassinatos tornou-nos anestesiados perante o Mal. Não que não o reconheçamos, não que não o sintamos, mas a verdade é que o banalizámos. De tanto o vermos, de tanto o termos à nossa frente, ele acabou por fazer parte da nossa vida.

O Mal entra-nos mente adentro com uma facilidade infantil. E nós deixamos que isso aconteça – até lhe abrimos a porta. Quando nos apercebemos, já ele é mobília. E, ao fazer-lhe isso, estamos a fazer uma única coisa: a faltar-lhe ao respeito.

E essa falta de respeito talvez nasça da falta de seriedade com que o encaramos, da falta de profundidade com que o discutimos – talvez, até, da falta de profundidade com que discutimos a vida toda. Será que nos interrogamos o suficiente? Ou estaremos a engolir tudo o que nos põem no prato sem fazer grandes perguntas?

Agora somos nós que estamos cá, incapazes de resistir às ordens desta sociedade do banal – o que nos torna, também, um bocadinho Eichmann, desumanos e superficiais, meros “funcionários públicos” que cumprem os seus deveres. Sem pensar.

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quando há mundo

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quando há mundo em tudo o que há
vivido, no fundo, do tempo que é pouco
mas parece infinito, tempo bastante
que vai perto do que é distante
mas, num instante, é já sufoco.
quando há mundo em cada detalhe
café, cerveja, alentejo, inferno
que na boca tem o mar
no fado, o teu olhar,
na dança, o não saber dançar
e tudo é terno.
quando há mundo em não ser mundo
quarto escuro, clandestino
praia sem nome, cama suada
vinho, noite passada
multiplicada pelo destino.
quando há mundo em tudo o que há
e tudo o que há nos engana
é lindo (embora ruim) quando há vezes
que deveriam (diz-se assim) durar tantos meses
mas que duram um fim-de-semana.

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antagonista, o nosso herói

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Mais do que de heróis, precisamos de vilões. E o mundo tem-nos dado alguns. De Herodes a Gengis Khan, de Calígula a Hitler, das segundas-feiras a qualquer árbitro de futebol, são muitos os antagonistas que se nos opõem. E isso não deixa de ser estranho.

O antagonista é aquele que se opõe a algo. Não tem de ser uma pessoa, não tem, sequer, de ser um ser. Pode ser uma ideia, pode ser uma emoção, pode ser o que for, desde que represente a força opositora contra a qual o protagonista tem de lutar. E esta luta protagonista vs. antagonista é uma luta de sempre, nascida da luta dicotómica que nos vai existindo ao longo da existência entre o bem e o mal.

Mas isto do bem e do mal existe verdadeiramente? E seremos nós protagonistas ou antagonistas? Estaremos confinados a tais definições? Existindo, sendo ou estando, há sempre um antagonista.

Na ficção, é ele a alavanca que faz o herói ser herói. O que seria do Batman sem o Joker? Qual seria a importância do homem-morcego se o palhaço não fosse tão complexo no poder que exerce? O Batman não seria tão herói se o Joker não fosse tão vilão. E, quem fala do Joker, fala do Darth Vader, do Hannibal Lecter, do Lex Luthor e de tantos outros.

“Quem luta contra nós reforça os nossos nervos e aguça as nossas habilidades. O nosso antagonista é quem mais nos ajuda”. A frase é de Edmund Burke, filósofo e político emblemático do século XVIII, e reforça esta ideia: a de que o antagonista é essencial para o desenrolar da história que, no caso da realidade, se chama vida.

A vida está carregadinha deles. Os Estados Unidos, por exemplo, são exímios na arte da criação de vilões. Rússia, Iraque, Al Qaeda ou Estado Islâmico são apenas alguns do vasto leque que lhes permite manter-se como a maior potência mundial e líder do “mundo livre” – um estatuto que alcançou após um dos momentos mais sangrentos – e de maior desenvolvimento tecnológico – da História Mundial, a Segunda Grande Guerra. Aliás, os EUA não só investem na luta como também – e talvez essencialmente – na manutenção de um alvo a abater.

Ser herói per se não existe, ser herói sem vilão é ser não-herói. É o antagonista que faz o protagonista. Está escrito em todos os (bons) manuais de guionismo – “Numa história, deve ser o antagonista a comandar as operações. O protagonista apenas reage à acção do antagonista” – Robert McKee, um dos gurus da escrita de guião.

Talvez por isso o mundo gire tanto em torno do opositor, do mau, do vilão. Basta ligar a televisão e, mais do que explicações, procuramos culpados. Ter um antagonista declarado ajuda-nos a apontar armas a um alvo específico, tendo um objectivo. A ausência de objectivo deixa-nos ao deus dará. Precisamos do ódio para nos equilibrar o amor. Precisamos do não para nos equilibrar o sim. Precisamos desta certeza de equilíbrio universal.

E o universo português é paradigmático desta importância vital do antagonista. O nosso sangue melancólico talvez ajude, na medida em que nos coloca constantemente em situação de vítima perante o outro, seja ele o governo, o patrão, o árbitro ou a saudade. Não nos faltam antagonistas para combater. Só nos falta sermos heróis. É o nosso fado.

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a realidade e o golfinho

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“O novo bebé-golfinho do Zoomarine promete ser uma das principais atracções do Parque nos próximos tempos. Hoje, mostramos-lhe imagens exclusivas do seu nascimento”. Esta foi a última notícia de um bloco informativo num dos nossos canais de televisão.

A notícia do nascimento de um golfinho é um clássico dos telejornais portugueses. Depois das notícias que nos fazem ter vergonha do ser humano, eis que surge, como luzinha optimista ao fundo do túnel, a informação de que nasceu um golfinho.

Todos estamos a par do carácter jornalístico deste acontecimento e todos estamos a par da raridade deste fenómeno da natureza: o nascimento de um animal. E, por isso, devemos agradecer a todos os intervenientes: ao carácter, ao jornalismo, à raridade, ao fenómeno, à natureza e ao animal.

No entanto, o agradecimento que eu proponho é um agradecimento sincero, sem ironias. Saber do nascimento do golfinho ajuda-nos a lidar com esta coisa da realidade que, muitas vezes, nos envergonha. Esta notícia, não sendo notícia, funciona como uma almofada para a nossa sanidade. “Calma, o mundo não está assim tão mal. O Kim Jong-un está a brincar com mísseis e o Maduro está a torturar gente que não gosta dele, mas nasceu um golfinho! E é tão lindo”…

O golfinho é o airbag que a comunicação social nos dá sempre que batemos de frente com a realidade. E, quem diz golfinho, diz panda, foca, gato ou cão. E, quem diz realidade, diz apocalipse.

Eu digo que isto sempre aconteceu e que sempre vai acontecer. É vital que o ser humano tenha este escape à realidade que se lhe apresenta. Agora, faz sentido esse escape ser proporcionado por um meio de comunicação social cujo objectivo é, ou deveria ser, divulgar uma informação de interesse público? O nascimento de um golfinho é, sequer, uma informação de interesse público? Se sim, é almofada suficiente para nos proporcionar esse escape à realidade? Não faço ideia.

A verdade é que é interesse nosso não nos cingirmos a uma realidade onde se brinca com mísseis e se tortura gente. Essa realidade existe e deve ser encarada, mas há outras realidades que nos são urgentes para que possamos sobreviver com saúde mental. O nascimento do golfinho (ou do panda, da foca, do gato ou do cão) é uma delas. E isso é serviço público.

E não é de estranhar que estas notícias de fuga à realidade sejam, na sua grande maioria, sobre animais. Talvez por uma necessidade de aproximação à nossa origem, talvez por serem eles os representantes de uma pureza e ingenuidade que estamos a perder, talvez por outras razões que se relacionem com a nossa forma de relação com os outros.

“A compaixão para com os animais é das mais nobres virtudes da natureza humana”, disse Darwin. Talvez o jornalismo, cada vez mais criticado por ser uma montra da realidade violenta – tornando-nos apáticos e quase imunes à compaixão -, nos esteja a equilibrar a mente ao mostrar-nos que, afinal, ainda podemos sentir que o mundo não está assim tão mal.

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