henrique
Fazes falta nas festas, nos lugares cheios de gente, nos espaços vazios, nos cantos, nas renúncias, nas canções, naqueles inícios de tarde e fins que não chegavam por tu estares e prolongares a vida, nas noites todas, nas manhãs que não têm nada, nos dias de sol, nos de chuva, nos de tudo. E a noção de que somos pouco.
artista
«Já pedi a conta à menina, mas ela não vem.» Vim eu sem saber como. Parei neste tasco na Nacional. Mesa para um. Pode ser aqui. Boa noite. Bebia vinho, olhava a CMTV e, de vez em quando, lá desenhava. Uma obra de arte. Obrigado. Estava só a passar o tempo. Sou designer, fiz isto em três minutos. Eu nem em três anos. Desculpe incomodar. Obrigado por reparar. Não contava, não esperava. Aconteceu. Um jantar com um artista e um desenho que agora é meu.
sessenta e três
Abraço beijinho copo de vinho branco já para a mesa ansiedade saudade força lareira sofá o que tenho inteira cansaço dores nos ombros dores nas mãos só uma sesta jardim e assim são os sonhos amor canários acordar de manhã ir embora e agora mamã e agora? suspiro ao final do dia hora de almoço sozinha mulher menina também cão gato galinha laranjas pedronhe maninha são pedro nelito cartuxinha tudo é a minha mãe.
oito
Oito anos deste querido, badocha, amigo, vadio, mimoso, malandro, lindinho, sacrista, fofinho, estúpido, gordo, pirata, criança, terrorista, tolo, cavalo, panças, preto, sacana, menino, sapato, pirralho, palerma, compincha, patife, amor.
o meu tio tonito
António Maria Andrino Pereira. António Maria. Tonito. Tio Tonito. O meu Tio Tonito. Olho para ele e vejo, sempre vi, um exemplo de força e de alegria e de liderança e de adulto e de criança que leva para a sua vida e leva para a vida de quem está com ele. Com ele, tudo acontece, tudo tem de acontecer. Não há vazio, não há ausência, não há silêncio de nada. Há constantemente a urgência da vida, das contas, da família, das alfaces, das galinhas, do Benfica. E tudo passa, e tudo fica. E ele, e quem está com ele, passa e fica também. Com ele, a vida acontece. Não por, simplesmente, acontecer. Mas por obrigação, por vontade, por qualquer coisa que ele tem no coração e que faz com que a sua vida seja, acima de tudo, realidade. Ele pega a vida pelos colarinhos e faz com que ela seja aquilo que ele quer que ela seja. Nem sempre é bonita. Por vezes, aleija. Mas o meu Tio Tonito, como por magia, pelo menos para mim, vive o dia. Assim, com a alegria e com a simplicidade que lhe existem naturalmente. Ele com ele, ele com toda a gente. O meu Tio Tonito tem a cabeça nos números e os pés na terra. Tem o coração na família e tem os olhos, quando choram, lá na guerra. Foi da maneira que foi porque foi da maneira que quis. Sem medo. Ele só queria ir, para começar a vida cedo. Foi, lutou, sofreu, chorou, fez o que tinha de fazer. De arma na mão, fez tudo para trazer o irmão – não aguentava vê-lo sofrer. Nem espingarda, nem canhão. Coração. Quando voltou, voltou a ser o que sempre foi desde pequenino: um homem. Embora, por vezes, pareça um miudito, por aí a correr e a brincar como se os joelhos não gritassem e a vida não fosse passando. Os joelhos lá gritam e a vida lá passa, mas o meu Tio Tonito não se importa. Até acha graça. Tem a quem sair. Olho para ele e vejo o meu avô. Ver o meu avô é bonito. No olhar, no riso e na genica do meu Tio Tonito. Vejo a minha avó, também. Vejo o meu Tio Zezito, vejo o meu pai. Vejo a minha Tia Lurditas e a minha Tia Belita. Vejo toda a gente que já lá vai e que ainda existe. Vejo o meu tio contente. Nunca vi o meu tio triste. Não por não o estar de vez em quando. Ele é que não dá importância à tristeza. É que nem lhe marca reunião. Ela pode insistir e ele, a sorrir, diz-lhe sempre que não. António Maria Andrino Pereira. António Maria. Tonito. Tio Tonito. O meu Tio Tonito.
sete, trinta e nove
À minha mãe, ao meu pai. A quem me ouve, a quem me lê, a quem me abraça, tudo passa e eu só vejo passar e eu não sei porquê, a quem me inquieta, a quem me sossega, quem me sossega? se é tudo seta, a quem me diz o caminho, a quem não me sabe dizer, e eu não sei sozinho, só ando a aprender, será esta a vida certa? o que raio quer isto dizer? a quem me aperta, a quem me faz viver, que a vida até que é bonita, mesmo quando quase me mata, à minha escrita que tantas vezes me resgata, aos sonhos que ainda tenho, à dúvida, à crença, a quem me vê como um estranho, talvez eu mais do que qualquer outra pessoa, parece doença, eu sei que consigo, só tenho medo que doa, já dói estar comigo, para onde foi o meu eu antigo? aquele pequenino bebé, eu sei que consigo, só tenho de ser o André, à minha culpa, o meu calvário que eu invento, à minha vontade de sair, de não cair, e eu bem tento, a quem me faz rir, até ao dia, a quem está por vir, a quem me mia, a quem vem ao fundo, a quem me diz que tudo é mundo e que serei feliz, ao meu victan, ao meu irmão, nunca ao presente, sempre ao ontem, ao amanhã, ao coração, a quem? que a vida vai. À minha mãe, ao meu pai.
todas as coisas que há
Ele está sempre feliz – pelo menos, aparenta. E aparentar já é meio caminho andado para estar. (De vez em quando, lá temos de nos obrigar.) Porque ele tenta. Parece que inventa qualquer coisa feliz que lhe diz que a vida não se vive de outra maneira que não desta, na brincadeira. Brinca com as palavras e com as situações, brinca com o que não acontece e com as canções. Brinca com as coisas vulgares e dá-lhes uma importância maior, dá-lhes outros lugares, dá-lhes o mesmo amor que dá à vida em si. Porque, para ele, é isso mesmo a vida – todas as coisas que há. Sempre sem despedida porque a vida sempre está. E é com este amor pela vida sem excepção, ou por esta aparência neste amor, que eu vejo o meu pai como vejo um coração, seja ele o que ele for.
o bastinhos
O meu tio Bastos sempre esteve lá. Mal se dava por ele, mas ele estava lá, connosco. A ajudar nos grelhados, a conversar sobre a escola, a mandar umas larachas sobre o que fosse, ele estava lá. Calmo, atento, simpático, quase envergonhado, quase gozão. Estava sempre tudo bem. Sempre com os olhos felizes e com aquela maneira delicada e escondida lá dele. O meu tio Bastos ofereceu-me esta máquina. Velha, partida, ferrugenta. Mas vinha embrulhada como se fosse uma Bola de Ouro. Cartões e mais cartões, dezenas de cordas, metros de fita-cola e maços de papel de jornal. Nada disto era para não a estragar. Era, sempre foi, para não nos estragar. O meu tio Bastos cuidava. O Bastinhos.
o teatro ambulante chopalovitch – em ti, philippe
Uma peça de teatro que é uma dança entre o teatro e a guerra. Uma companhia teatral leva a ilusão, o fingimento, a alienação, da vida, a vida, para a guerra. Na terra, há gente que não aceita que se viva, que se finja, que se brinque. Não naquele momento. Há gente que rejeita o teatro apenas por este permitir uma fuga à realidade. Mas esta fuga é falsa, é sempre falsa. Ninguém foge da espingarda do soldado nem do nervo de boi do carrasco. O teatro não impede, alivia. Não nas costas, não no rosto, não nos dentes, mas num lugar qualquer que ajuda a suportar isto da vida. Nesta dança, a guerra mata o teatro e o teatro mata a guerra. Mas nenhum dos dois morre. Philippe, o louco que confunde a realidade com as peças que já representou, é o único que, sendo ou não sendo louco – que definição é essa da loucura? – sobrevive a todas as vergastadas da guerra. Só morre quando leva uma rajada de metralhadora. (É difícil resistir a isso.) Todos os outros vão morrendo. Mesmo aqueles que inventam o que levam para o palco. No entanto, chegando ao fim, sobrevivem. Mas sempre morrendo. Talvez esteja a insistir nisto, mas senti isto mesmo, que todos vão morrendo, talvez, até, que todos já estejam mortos – os soldados por só matarem, as gentes da terra por não terem esperança, os actores do teatro ambulante por terem noção da morte que os cerca e por só terem a possibilidade de se refugiar na ilusão, no teatro, nunca se refugiando inteiramente, precisamente por ser ilusão, por ser teatro. Só Philippe, o louco – um dos actores da companhia – é que apenas vive, por não ter qualquer noção do que se passa – nem da guerra, nem do teatro. Só vive quem não tem noção? Talvez não. Talvez a noção da morte até ajude a viver. Mas todos lidam com ela, menos ele. Ele não sabe dela por também não saber da vida e, por efeito, por não saber da ilusão da vida. E é por isso que vive, que não se importa, que inventa, que confunde, que brinca, tudo sem intenção. Por não saber o que faz. Ele é assim e quem é assim, como ele é, vive e não vive, morre e não morre. Ele é o único que morre porque é o único que vive. «Quem és tu? Lear, se tu és Lear onde está a tua loucura?» Em ti, Philippe.
O TEATRO AMBULANTE CHOPALOVITCH
Texto: Lioubomir Simovitch | Encenação: Jorge Silva | Tradução: Rui Duarte | Interpretação: André Nunes, João Saboga, Mariana Lobo Vaz, Miguel Mateus, Marques D´Arede, Nuno Nunes, Patrícia André, Rita Godinho, Sara Azevedo, Sílvia Filipe, Sofia de Portugal e Victor Santos, Daniela Santos, Madalena Graça, Maria João Felino e Susy Ferreira | Cenografia: Rui Francisco | Figurinos: Maria Luiz | Desenho de Luz: Tasso Adamopoulos | Música: Afonso de Portugal e Rui Rebelo | Vídeo: José Ricardo Lopes | Fotografia: Luana Santos | Design Gráfico: João Rodrigues | Consultoria de Comunicação/Assessoria de Imprensa: Sofia Peralta | Direcção de Produção: Daniela Sampaio | Produção Executiva e Divulgação: Marco Trindade | Confecção de Guarda-Roupa: Teresa Louro | Construção Cenográfica: JSVC Decor | Operação Técnica: Gi Carvalho | Produção: Teatro dos Aloés 2023
andré contra andré
Não está nada partido. Quase nada. Talvez uma luxação. Talvez. Não se vê. Não aqui. Bati com a mão fechada numa parede. Ninguém me bateu. Só eu. Tendo a ser violento comigo quando não sei lidar com o que tenho. Esmurro paredes, mordo dedos, dou chapadas no peito. Só isso. Só. Não o deveria fazer, eu sei, tenho noção. Ninguém o deveria fazer. Por nenhuma razão. Mas, por vezes, vai além das sabedorias e das razões. É só vontade, necessidade, urgência de transferir a dor de um lugar, o de dentro, para outro, o da pele. É o André a lutar comigo e eu a lutar com ele. Sem sentido, à porrada. Não está nada partido. Quase nada.
quando morre a imortalidade, ou qualquer coisa assim
Quando o meu avô morreu, o meu pai deixou de ser imortal. A existência do meu avô impedia a inexistência do meu pai. Assim que o meu avô deixou de existir, o meu pai perdeu a protecção, ilusória, bem sei, de que não morreria – não estaria na vez dele, na vez de nenhum filho em nenhum lugar, ir primeiro do que o pai. Quando o meu avô morreu, não morreu sozinho. Morreu, também, a ilusão de uma imortalidade. A do meu pai. O meu pai foi para o lugar que era do meu avô e eu fui para o lugar que era do meu pai. O imortal agora sou eu, e tudo ficou mais assustador, por ser mais vivo, mais real. Quando o meu avô morreu, o meu pai deixou de ser imortal.
marrazes, 87
Foi ontem a Gala de Aniversário do Sport Clube Leiria e Marrazes. Uma vez mais, não sei bem por que razão, voltaram a convidar-me para apresentar a festa. Dar uns bitaites e tal. Claro que não ofendi ninguém – não é a minha cena. Eu só continuo a aceitar fazer isto, obviamente, por aquilo que me pagam. O SCL Marrazes nunca me pagou nada. Eu é que deveria pagar. Por tudo o que este clube me deu, não só como clube de futebol, mas, acima de tudo, muito acima de tudo, como família. Bem, chega de lamechice. A ideia não é chorar, é causar desconforto nalgumas pessoas. Fui para isso que eu fui.
O nosso clube celebrou 87 anos (mesmo celebrando 101). Ora bem, o que é que aconteceu há 87 anos, em 1936 (quando, realmente, nasceu em 1922)? Jogos Olímpicos de Berlim, começava a Guerra Civil espanhola e o Presidente da Junta dos Marrazes prometia que ia recuperar o nosso Parque de Jogos. Estou a ser injusto. Devo, aliás, dizer que o Presidente da União das Freguesias de Marrazes e Barosa, de facto, tem feito um excelente trabalho na requalificação do nosso Parque de Jogos. No ano passado, o nosso campo estava uma vergonha. Mas este ano temos de admitir que está na mesma. Voltei a ser injusto. Está pior. Mesmo não ligando nenhuma ao nosso verdadeiro campo, que não sei se é da Junta ou se é do Clube (mas que, sendo da Junta ou do Clube, é de todos os marrazenses – que não estão a usufruir dele), bem, mesmo não ligando nenhuma ao nosso verdadeiro campo, dizia eu, ouvi dizer que o Presidente da União das Freguesias de Marrazes e Barosa já está a tratar do nosso campo secundário, o de lá de baixo, com um relvado sintético e uma bancada coberta.
Depois de ter subido a palco e confirmado que, sim senhor, haverá sintético e bancada, Paulo Clemente trocou de lugar com aquele que tem sido peça fundamental para o desenvolvimento do desporto na União de Leiria. Perdão, na cidade de Leiria. O Vereador do Desporto da União de Leiria. Perdão, da Câmara Municipal de Leiria, Carlos Palheira. Disse muitas coisas lindas, com muitas frases e muitos apoios.
Depois, foi a vez de Manuel Mendes Nunes, presidente de uma instituição que, além de ter 125 clubes filiados, cerca de 850 equipas e 11.500 jogadores, tem, e gostaria de sublinhar isto, um quadro de cerca de 200 árbitros. Não, não é o Futebol Clube do Porto dos anos 90. É a Associação de Futebol de Leiria. Muito gira, esta piada.
Seguiu-se uma pessoa que é dos Marrazes, vive nos Marrazes e gosta dos Marrazes. A minha sugestão é a de que mude a sede da Associação a que preside para os Marrazes. O Presidente da Associação de Patinagem de Leiria, José Carvalho.
Depois, também de patins, veio o Simão. Conheço muita gente apaixonada pelo SCL Marrazes, não conheço ninguém com a paixão do Simão, treinador dos Seniores de Hóquei e Coordenador da Formação. O Simão é o Simão porque, à paixão do amor, sabe ter o trabalho, a humildade, o profissionalismo, a exigência, a seriedade e tantas outras qualidades, e defeitos, claro, como qualquer ser humano que se preze, que fazem dele quem ele é. Levou a nossa equipa de hóquei à Segunda Divisão. Depois levou à Terceira. Para o ano, estamos novamente na Segunda. Mas isso, em boa verdade, pouco interessa. O que interessa é a paixão que este puto tem e que transmite a jogadores, a técnicos, a massagistas, a dirigentes e a adeptos que, semana após semana, enchem o nosso pavilhão. Com o Simão, no Hóquei, muita gente tem feito mais do que aquilo que pode pelo nosso clube. Além de tantas, duas pessoas: Rui Clemente e Rita Seiça. São estas pessoas que fazem do Hóquei uma modalidade de eleição no nosso Clube. O Simão é uma pessoa que, de certezinha absoluta, não tem sangue vermelho, tem sangue preto. O Simão é uma pessoa que tem um cabelo incrível, mesmo sendo branco.
Depois dos patins, a bicicleta, pedalada por Tó Zé, um homem que tem levado o nome do SCL Marrazes a todo o lado, por todo o terreno. Um homem que não nasceu nos Marrazes, que não vive nos Marrazes, mas que diz em todo o lado que é dos Marrazes. O nosso Responsável da Secção de BTT do SCL Marrazes.
Por fim, foi a vez do Pedro Dinis dizer algumas coisas, entre as quais, outra vez, dizer o arrependimento que teve em convidar-me. Faz sentido, eu compreendo. O Pedro tem um emprego de sonho. Não só por ser Presidente do SCL Marrazes como por, com tantos, tantos, tantos, tantos, tantos, tantos, tantos, tantos, tantos, tantos apoios da Junta e da Câmara, não precisa de fazer praticamente nada.
Quase no fim, foram homenageados alguns heróis que são sócios há 25 e 50 anos. Gostaria, apenas, de realçar os seguintes (segundos) nomes: Miguel JOAQUIM Braz, Gonçalo JOSÉ Seco e, para terminar em beleza, Sandro RICARDO Brito. João Cunha, um dos que recebeu o emblema de 25 anos de sócio, e ex-presidente do nosso Clube, ainda pegou no microfone para destruir o comportamento quer da Junta, quer da Câmara, quer, talvez, também, do Clube, que tem destruído o nosso Parque de Jogos. Aplausos para este senhor.
Ainda houve tempo para um sorteio de umas rifas, com a sedutora apresentação da minha Lenka, André Doc. Cantou-se os parabéns, comeu-se bolo e todos os engravatados ficaram a falar uns com os outros, porque não têm nada que falar com o povo, era o que mais faltava. Deviam estar a combinar os apoios. Foi uma boa noite, mas não deixou de ser triste. Tantos marrazenses em tanto lado, tantos atletas, tantos dirigentes, tantas pessoas que não são uma coisa nem outra, mas que são daqui, e tão pouca gente que esteve no jantar. O SCL Marrazes, para ser aquilo que deve ser, precisa dos outros. Mas, acima de tudo, muito acima de tudo, precisa dos seus. Foi isto. Parabéns.
barbie pantera
Lá vai, lá vem, o baloiço pela mão do pai, a menina pela mão da mãe. A mãe não está ali, apenas o pai a baloiçar a menina que sorri, e a mãe noutro lugar. A mão é só para dizer que a mãe, mesmo não estando, é como se estivesse a ser a menina baloiçando. Mas ela está sem ela, só com o pai, com mais ninguém. Talvez a mãe esteja à janela a ser menina também. Mas não sei dela, não a vejo. No parque, só a criança. O pai dá-lhe um beijo e a menina balança. Para a frente e para trás, para trás e para a frente, o balanço que o pai faz deixa a menina contente. Ela de cor-de-rosinha, ele de preto-escuridão. Uma princesa florzinha, um barbudo mauzão. Calças justas e rasgadas. Tatuagens e pulseiras. Correntes, brincos e espadas. Botas, anéis e caveiras. Leggings coloridas, bandolete nos cabelos. Palavras decididas e feridas nos cotovelos. Não as vejo, mas invento. Ela não pára sossegada. Parece nuvem, parece vento e parece já cansada. Vamos, já é hora, temos de ir almoçar. E a menina parece agora ter mais vontade de brincar. E ele, autoridade, deixa a menina brincar. Ele já teve aquela idade, ele também está a baloiçar. Com sapatilhas de luzes e revista da Barbie na mão. Na pele, desenhos de cruzes. Só falta a distorção. Volta a ser puto feliz, lembra aquilo que ele era. No dedo, um pequeno nariz. Nos ouvidos, Pantera. E toda aquela beleza, que ele lembra com ternura, dá o colinho à princesa enquanto ouve Sepultura. Mas é tudo normal. O baloiço vai e vem. De um lado, as forças do mal. Do outro, as forças do bem. Ali, no mundo inteiro, uma espécie de batalha entre um bonzinho metaleiro e uma rebelde pirralha. Na minha alma há um baloiço que está sempre a baloiçar. E eu vejo e eu oiço o que eu quiser inventar. E uma menina bonita sobre ele sempre a brincar. Se a corda se parte um dia (teria alguma piada), era uma vez a folia, fica a menina sossegada. Cá por mim eu mudo a corda. Ela não cai, não dói, não nada. Se a menina caísse, mais valia não escrever e esperar pela velhice, baloiçar-se sem querer. Mudar a corda era fácil, mas ela tem de crescer.
para além do bem e do mal
Voltei à escola. Por prazer, apenas. Há muito tempo que eu queria voltar. Era um sonho, ainda é, pelo menos até perceber que não percebo nada de Anaxágoras, Xenófanes ou Tales de Mileto e desejar ter ficado na minha caverna, sossegadito, a ver as sombras a passar. Viram o que eu fiz aqui? Incrível. É por isto, também, que voltei à escola. Para ver se aprendo. É conhecer-me a mim mesmo e tal. Penso, logo existo. Para além do bem e do mal.
cortejo de um homem só
Ele sai de casa bem vestido, fato engomado, mãos nos bolsos ao comprido, como se fosse cantar o fado. Não canta, pouco fala, só um bom dia ou um boa tarde de vez em quando, em surdina, e lá vai ele andando, virando a esquina. Sempre muito direitinho e elegante, como se desfilasse devagarinho numa rua de Paris e, durante, assim de mansinho, fosse feliz. Não sei se é, nem sequer sei se parece, não dá bem para dizer, lá vai ele a pé e, quando vai, quase adormece, assim sem querer. Parece que vai num cortejo de despedida, sem caixão, talvez só o corpo que passeia. Lá vai ele pisando o chão, pisando a vida, calçada, terra, estrada, areia. De vez em quando, quando há, pára os passos, vê o que está, gente na escola, outra lá fora a falar, putos a jogar à bola, homens a trabalhar. Faz a vistoria às obras dali, como se fosse um fiscal de capacete amarelo, isso não é daí, aquilo está errado, mais para a esquerda, mais para o outro lado, e ao fundo o castelo. As mãos já não estão nos bolsos, agora atrás das costas direitas, um bocadinho curvadas, sempre estreitas. Por vezes, só imagina, julgo eu. Por vezes, só vê as tais ruas de Paris com as tais pessoas engomadas como ele num passeio que julga ser o seu. E ele feliz ou infeliz, não sei bem, não dá bem para dizer, lá vai, lá vem, lá anda a viver. Ali perto do fim, assumindo que ele vem para toda a gente, lá vai ele vivendo assim, lentamente. Talvez tenha vivido a correr, passando pela vida de raspão, e agora o que sente é só a vontade de ser o que lhe diz o coração. Ele ouve o peito, sorri, sem se perceber, e continua a direito, ali, só a ver. Como se esperasse o que lhe resta, e o que lhe resta é morrer. Mas sem pensar nela, na morte, que pensar nela traz mãos frias e má sorte. E ele assim deve andar, não pensando que ela vem nem sequer que ela existe. O que lhe interessa é caminhar, se ele começar a pensar, começa a ficar triste. Não vejo tristeza no meu vizinho. Vejo só delicadeza num homem que anda sozinho.
o meu pai e o meu avô
O meu pai e o meu avô. Foram eles que fizeram de mim o benfiquista que sou. Ainda são. Eu vou sendo o que me lembro do meu avô de rádio encostado ao ouvido, o que vou tendo do meu pai de abraço dado comigo. Não sou do Benfica por razão, por qualquer motivação ponderada. Sou do Benfica por coração, e o coração é sempre o que nos livra do nada. Sei por que sou assim, mas não sei, não se explica. Por tudo o que meu pai e o meu avô são para mim, e eles são Benfica.
não é um ministro
O João Galamba acalmou a ex-CEO da TAP que, antes da reunião, estava «muito nervosa» e acalmou a sua chefe de gabinete que, quando lhe ligou, estava «muito perturbada, desesperada». O João Galamba não é um ministro, é um Victan.
talvez não seja nada
O César Mourão é muita gente, toda a gente que ele conhece e que não, que lhe aparece de repente na rua, no teatro, na rádio, na televisão. O César sempre cantou, sempre sem querer ter o carimbo de músico ou de cantor, sempre inventou e nessas invenções lá ia criando aquilo que, mesmo não declarando, eram canções. Sempre nos intervalos do que fazia de forma assumida, fazer rir, representar, como se fingir não lhe fizesse parte da vida, como se a sua vida não fosse cantar. Serve toda esta lamechice para dizer que este álbum que o César acabou de lançar é aquilo que o César é, muita gente. Mais do que cantar, ele conta. São canções, mas são histórias. E são as histórias, mais do que as notas e as vozes, que dão vida às canções. Este não é um álbum de conservatório, é um álbum de rua. E é isso que o faz ser de quem é, de um gajo porreiro que usa a sua arte, de representar, de entreter, de cantar, para estar com gente – mesmo que inventada. Chega a ser comovente. Talvez não seja nada.
conhecido por serviços secretos
Com o Caso Galamba (o da porrada do seu adjunto; não o do pedido de demissão), ficámos a saber que houve intervenção do SIS – Serviço de INFORMAÇÕES DE SEGURANÇA, mais conhecido por Serviços SECRETOS. Ora bem, segundo a Comunicação Social, sabemos que o agente dos Serviços SECRETOS fez um telefonema, sabemos a que horas foi feito esse telefonema, sabemos que esse telefonema não foi atendido, sabemos a que horas foi feito um segundo telefonema, sabemos a duração desse segundo telefonema, sabemos o que foi dito nesse telefonema, sabemos que o agente deu um número de telefone e um nome de código ao adjunto, sabemos o nome de código, sabemos a altura do agente, sabemos o tom de pele do agente, sabemos a envergadura do agente (menos de 1.70m, moreno e entroncado), sabemos que houve um novo telefonema, sabemos a que horas foi feito esse novo telefonema, sabemos que o agente e o adjunto marcaram um encontro, sabemos onde foi esse encontro, sabemos a que horas foi esse encontro, sabemos qual foi a duração desse encontro e sabemos o que foi dito nesse encontro. Foi este o trabalho do SIS – Serviço de INFORMAÇÕES DE SEGURANÇA, mais conhecido por Serviços SECRETOS. Está certo.
a bola à frente da baliza
Luís Montenegro, líder do maior partido da oposição, acusa António Costa de querer eleições antecipadas. Sim. Luís Montenegro, líder do maior partido da oposição, está a chorar porque António Costa lhe está a pôr a bola à frente da baliza para ele marcar golo. E ele acusa, lamenta e chora. António Costa tem tanta certeza da incompetência e da incapacidade de Luís Montenegro que nem precisa de guarda-redes para defender um remate que, de certeza, sairá pela linha lateral.
ainda mais perto
António Costa, ao rejeitar o pedido de demissão do ministro João Galamba, está a aceitar a presença e o trabalho de um ministro que não se acha capaz de exercer as suas funções. Por outro lado, tendo em conta a proximidade de João Galamba com Pedro Nuno Santos, António Costa está a cumprir a máxima «Mantém os teus amigos perto e os teus inimigos ainda mais perto». António Costa não é um Primeiro-Ministro, é um jogador.
uma história infeliz
Foi triste ver o senhor Ruy de Carvalho. Não por estar perto do fim, não por estar a perder faculdades, não por ter sido bonito. Foi triste porque o senhor Ruy de Carvalho não estava sozinho em palco. A história era dele, mas o protagonismo não foi. Com ele, a tentar ter o protagonismo que não era seu, Luís Pacheco, um actor que, mesmo não estando em personagem, nem sequer foi capaz de fingir que sabia estar ali, a fazer o que devia e não o que gostaria de fazer. Apenas precisava de ouvir, de puxar, de unir lembranças e conversas que o senhor Ruy tinha para contar. Não o soube fazer. Ou não o quis. E o que poderia, e prometia, ser uma bonita oportunidade para contar e interpretar acabou por ser uma história infeliz. O princípio e o fim, com o senhor Ruy de Carvalho sozinho em palco, foram os únicos momentos que se aproximaram (pouco) da sua história. Houve teatro, criação, fragilidade e coração. Apesar do truque vulgar das luzes e da canção, do texto fraquíssimo carregado de lugares-comuns e da fraca dicção, estava lá, apenas, o senhor Ruy de Carvalho. E isso, apesar de tudo, bastava para não ser uma merda – não lhe dando, no entanto, o estatuto que o teatro e o actor merecem. Mas foi. Assim que o palco foi partilhado, terminou o teatro e tudo o que se poderia, e deveria, dizer sobre ele. Entrou o incómodo, a vergonha alheia, a brejeirice, o embaraço, a aflição, a vaidade, a presunção, a falta de densidade e de noção, a futilidade. Em boa verdade, o título já dizia a qualidade da peça. A HISTÓRIA DEVIDA, brincando com DE VIDA, é algo que arrepia de tão preguiçoso e corriqueiro que é. Indigno de quem pretendia homenagear. Foi triste ver o senhor Ruy de Carvalho porque, apesar de não estar sozinho, é ele quem se mostra, por muito que outros se queiram mostrar. É ele quem dá o nome e o corpo a este espectáculo que deveria ser outra coisa que não aquilo que é e que pareceu, um insulto à sua vida e a tudo o que ela nos deu.
A HISTÓRIA DEVIDA
EM PALCO: Ruy de Carvalho e Luís Pacheco
TEXTO: Paulo Coelho
ENCENAÇÃO E ADAPTAÇÃO: Paulo Sousa Costa
PRODUÇÃO: Yellow Star Company
saio à minha mãe
Saio à minha mãe. Nas olheiras cavadas e na beirinha da tristeza quase permanente, no medo de que algo aconteça, na ansiedade e na vontade de abraçar. Saio à minha mãe naquele jeito preocupado de olhar. Também no aconchego, no apego ao sonho e ao vulgar. Também no medo de acabar, até o fim. Saio à minha mãe, e a minha mãe não sai de mim.
a biblioteca de estaline
Este livro humaniza Estaline? «Humaniza, sim. Claro que há um perigo nisso.» As palavras são de Geoffrey Roberts, autor do livro «A Biblioteca de Estaline».
Ora bem, este livro humaniza Estaline porque Estaline era um ser humano. Tal como Hitler, Mussolini e Putin. Tal como Jesus, Mandela e Gandhi. Todos seres humanos. Nenhum deles monstro, nenhum deles anjo. Nenhum deles feito de outra matéria que não aquela de que também nós somos feitos. Todos. Humanizar é ver, compreender e aceitar quem somos. Por muito que nos custe, não há ninguém que não seja como nós. O perigo é pensarmos que sim.
dentro de uma palavra só
O meu gato tem um talento incrível para fazer asneiras. Ainda agora acabou de atirar um cesto com a minha carteira, os meus óculos de sol e uma caneta ao chão. Foi para cima da mesa na bisga porque eu não recebi com amor aquelas catanadas dos seus dentinhos nos meus braços. E depois deita-se aos meus pés a exigir mimo. Coitadinho do Vitorino, ele só quer brincar, e isso é amor. Sim, Vitorino, é o nome dele. Sim, é nome de gente. E ele é um gato. Peço desculpa por não lhe ter dado nome de gato. Riscas, Pantufas, sei lá… Para mim, ele, sendo gato, é gente. Por isso é que lhe dei o nome de Vitorino. Gosto do nome. Tem canção, não sei. Tem duas vogais que se repetem alternadamente. Vi. To. Ri. No. É como se fosse um poema dentro de uma palavra só. Tão lindo, um poema que, por vezes, parece um Panzer a varrer um campo de flores. Este pequeno búfalo faz hoje sete anos, e já tinha idade para ter juízo. Só tem idade, que juízo nem vê-lo. Amo este sacana.
mais uma memória
1987. Vim para Leiria em 88. Com três anos, ainda não bebia cerveja. Pouco faltava. Com quinze, começava a sair e a beber. Só um bocadinho, mãe. Shots, que estupidez, que saudades. E uma imperial. Outra. Mais outra. Nos Filipes, claro, o lugar mais rock n’roll da minha adolescência que ainda é, com a mesma música que ainda oiço e que ainda me faz regressar àqueles tempos de gel no cabelo e de Pink Floyd na televisão. Another brick in the wall. Mais uma memória. O Alvim a passar discos, os Placebo nos ouvidos e tanta gente de tanto lado que se tornou amiga e que ainda é. O Filipe, o senhor Manel, a Inês, a Joana, a Maria João, o Gil, o André. Com 38, ainda cá estou. Mais uma cerveja, que tudo aquilo de que me lembro é tanto daquilo que me criou.
tudo em todo o lado
Ainda não vi «Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo». Mas vi «Indiana Jones e o Templo Perdido» mais de duzentas vezes. Sem exagero. Quando andava na quarta classe, chegava a casa, pegava na cassete VHS e via o filme. Todos os dias. Todos. Os. Dias. E obrigava toda a gente que estivesse comigo a ver o filme também. Sei as falas de cor. Os gritos, as danças, os sustos, os arrotos, um, de um tipo após chuchar um escaravelho ao jantar, os abraços. Voltar a ver o miúdo a abraçar o Indiana Jones é voltar a ser o miúdo que andava na quarta classe, que chegava a casa, que pegava na cassete VHS e que via o filme. Todos os dias. E tomar consciência de que isto da vida passa rápido como o raio. «Fortune and glory, kid. Fortune and glory.»
não aleija ninguém
O movimento pela linguagem inclusiva, seja lá isso o que for, diz que o O é machismo tóxico, que o A é feminismo liberal as mulheres é que são inteligentes sexo fraco mas no fundo forte coitadinhas e que o E é neutro e não aleija ninguém. A verdade é que, por vezes, o O é feminismo liberal as mulheres é que são inteligentes sexo fraco mas no fundo forte coitadinhas, o A é machismo tóxico e o E tanto é neutro e não aleija ninguém como machismo tóxico como feminismo liberal as mulheres é que são inteligentes sexo fraco mas no fundo forte coitadinhas. E nem vou falar do I e do U. Não por não ter paciência, que não tenho, mas porque é muito provável que este movimento pela linguagem inclusiva não saiba da sua existência. Portanto, este é um movimento inclusivo que não inclui, exclui: letras e inteligência.
um homem vulgar
Vim a Lisboa. Consulta de Psiquiatria, nada de mais. Estacionei o carro e procurei um sítio onde almoçar. Ao pé da Penthouse, onde trabalhei e que já não existe, sim, javardice, havia uma tasca, aonde ia todos os dias. Já não há. Desilusão. Segui pela rua, uma porta aberta, por que não? Tasca, ainda mais tasca do que a outra. Vitela assada e. Eu sei o que o senhor quer. Maravilha. Um jarrinho de tinto, um lugar sozinho num canto. E eu sozinho. Chega o Camané, sim, o Camané. Senta-se ao meu lado. Quero dizer-lhe qualquer coisa. Pensa. Diz algo incrível. Diz que o admiras, diz que escreves, diz boa tarde. E digo, claro. Olá, não lhe posso agradecer a sua arte. Obrigado. Obrigado eu. Raios. Não lhe posso agradecer? Não lhe posso deixar de agradecer. Deixar de agradecer! Não lhe posso deixar de agradecer a sua arte. (E nem sei se o lugar do lhe é ali. Pouco importa.) Palerma. Está dito, está dito. Ele disse obrigado, talvez não tenha percebido bem. Era só eu, uma vulgaridade, a fazer-lhe uma atabalhoada declaração de amor. Como tantas outras vulgaridades, como tantas outras declarações de amor. E ele ali. Um homem vulgar, também, envergonhado, a ajudar uma família francesa a escolher o que comer. Carne de porco à portuguesa e bacalhau à braz. A família não sabia quem ele era. Ele não disse quem ele era. Merci. Aqui tem, senhor Camané, bom proveito. Iscas. Almoçou e foi embora. Antes de ir, olhou para mim e disse-me adeus, como se fôssemos velhos desconhecidos que se conhecem por aí. Eu disse adeus de volta e escrevi. Mais um jarrinho, por favor, se houver. Então não há? Quando acabar aqui o vinho, está o Tejo sem água. E eu ainda sem saber o que lhe dizer.
cativeiro: privação
Uma menor foi raptada por um homem de 48 anos, que a manteve em cativeiro durante oito meses. Para que fique esclarecido, segundo o Dicionário da Língua Portuguesa, «rapto: acto de tirar alguém de casa ou do local onde se encontra, através de violência, de ameaça ou de engano» e «cativeiro: privação da liberdade sem obrigação de servidão».
Para a Comunicação Social, é óbvio quem é o culpado. Não, não é o homem de 48 anos que raptou a menor de idade. Coitado do homem, ele só queria companhia. Aliás, segundo a TVI, «Luana tem uma dependência de jogos online e terá sido isso que a motivou a sair de casa». Ou seja, foi o Jogo Online que a levou a ser raptada. Para a Comunicação Social, o culpado é, claramente, o Jogo Online. É já um Fatality a esse monstro!
uma espécie de âncora
Ligo a televisão apenas para me dar uma noção de tempo. Não vejo o que lá está, mas tenho de saber que lá está. Qualquer coisa, não sei o quê, não me interessa, mas está. E o que quer que lá esteja está a viver o mesmo tempo que eu. E eu preciso de saber que o tempo é o mesmo, que a realidade não parou nem correu. A televisão é, para mim, uma espécie de âncora sem corrente que me prende ao tempo, à vida. Mesmo sabendo que não há outra coisa além dela. Ligo a televisão para ver se eu não me desligo de mim.
a arte tem que ser arte
A arte não tem que ser inclusiva. A arte tem que ser arte. Inclui-se quem sentir a arte como ela, cada uma, é. Não se inclui quem não a sente. A obrigação do que quer que seja na arte é uma contradição da arte em si. Quem diz que a arte deve ser outra coisa que não arte é porque não sabe que coisa ela é.
qualquer coisa e um coração
Fiz 38 anos. Não estava à espera. Ainda ontem tinha 18. O tempo é tramado. Passa e nem damos por ele. Pensando melhor, melhor assim, talvez – ele ir passando sem lhe darmos muita atenção. Gostaria de ter tantas idades outra vez. Ou talvez não. O tempo faz o que tem a fazer e eu tenho a idade que tiver de ter, nunca deixando de ser quem sou. Sei lá eu quem sou. Qualquer coisa e um coração. Saudades, ansiedades e instantes. Uma confusão.
o teólogo inteligente
«Bento XVI, o teólogo inteligente.» Esta frase tem sido dita por toda a gente em todo o lugar. Tem graça. Por um lado, ao dizer-se «teólogo inteligente», está a dizer-se que é invulgar os teólogos serem inteligentes. Por outro lado, ao dizer-se «teólogo inteligente», está a assumir-se que há teólogos inteligentes. A Teologia é «a ciência da religião». A Ciência é «o conjunto de conhecimentos fundados sobre princípios certos». A Religião não é um «princípio certo». A Teologia é uma contradição em si. Um «teólogo inteligente» também. Tem graça (não a divina – se fosse essa, não teria por, simplesmente, não existir).
o meu sonho sempre foi
O meu sonho sempre foi ser o meu pai. Ainda é. Ele ainda está. E eu ainda sonho. Mas o tempo passa e eu, por obra e graça de alguém ou de ninguém ou, sendo de alguém, será de mim, sou tristonho. Talvez por eu ser, talvez de nascença, assim. Qualquer parecença com o meu pai é só coincidência. Ele fica e vai com a mesma urgência de viver. Ele existe, luta, também cai, mas não se deixa vencer. Não por ser super-herói, mas por transformar tudo aquilo que lhe dói em alegria, por vezes aparente, como é vulgar acontecer, mas numa espécie de magia de ficar contente, sem doer. Nem um ai. Nem um André. O meu sonho sempre foi ser o meu pai. Ainda é. E ele ainda está. Um dia, serei. Só não sei quando será. Quando for, que, entre mim e o meu pai, tudo o que há é amor.
nenhum deles voltou
No mesmo avião, foram 26 jogadores. No mesmo avião, voltaram 14. A ganhar o Mundial, para festejar e para receber aplausos e notas, teriam voltado, no mesmo avião, os mesmos 26 jogadores que partiram. Perdendo o Mundial, voltaram apenas os que se sentiram verdadeiramente derrotados, verdadeiramente nobres. Os outros, certamente desolados, coitadinhos, ficaram tristes, tão tristes, a festejar no lugar onde nenhum deles perdeu, porque nenhum deles voltou.
Imagem: Fauzan Saari
sempre só com ele
Não é por não marcar nem por não jogar como jogava. É por festejar e por chorar como sempre o fez: sozinho. Nunca foi pelas equipas nem pela Selecção, sempre foi só por ele. Ronaldo existe sozinho. Sempre existiu. Para ele, os outros não existem. Por muito que tenha contribuído para o sucesso das equipas e da Selecção, ele sempre existiu só para ele. Por isso é que, festejando ou chorando, ele nunca está com os outros. Está sempre só com ele. E ele está como sempre esteve: sozinho.
a tragédia começa no nariz
Tenho o nariz entupido. Tenho medo de morrer. Um clássico, eu sei. Sou homem e os homens não podem apanhar uma gripezinha que ficam logo não sei quê inserir clichê dito por mulheres que são todas muito fortes. Eu não sou. Nem mulher nem forte. Não neste caso que, para mim, é de vida ou morte. E não me ajuda nada falar ou escrever sobre isto porque, falando ou escrevendo, estou a lembrar-me constantemente de que tenho o nariz entupido e de que, ordem natural das coisas, vou morrer. Então falo e escrevo sobre isto, que esperteza. Acho que nunca nenhuma pessoa morreu por ter o nariz entupido, mas eu tenho sempre a forte convicção de que eu serei a primeira. Por isso é que, há coisa de meia hora, depois de ter passado o efeito de umas super gotas, saí do quentinho da minha casa para partir em busca de uma caixa de victans. Se é para morrer por culpa do nariz entupido, ao menos que esteja drogado, a dormir. Também encontrei uma pomada toda ninja. E tenho livros e um gato e um caderno onde aponto o que encontro e me apetece guardar. «”A comédia começa nas pernas”, Jacques Tati». (Só aponto o que encontro no caderno, não no gato, por vezes nos livros.) Sou capaz de morrer um dia destes, nunca se sabe. Já sei. A tragédia começa no nariz, André Pereira.
uma noite e uma tarde
Uma noite e uma tarde no Teatro da Comuna. Sozinha, com tanta gente ao lado, a Maria riu, cantou e chorou. E fez com que tanta gente tivesse rido, cantado e chorado – a toda esta gente eu só posso dizer obrigado. Eu, que apenas escrevi e ajudei a criar, ri, cantei e fartei-me de chorar. Culpa da Neide, Maria sem lugar.
palavra de honra
JÁ NÃO HÁ PACIÊNCIA… para abacate. É abacate ao pequeno-almoço, abacate ao almoço, abacate ao lanche, abacate ao jantar, abacate na torrada, abacate no frango, abacate no soro da quimioterapia… Raios partam o abacate.
DETESTO… ter o nariz entupido e tomar decisões.
A IDEIA… é bastante polémica, não sei se o mundo está preparado para ela, mas cá vai: não sair da zona de conforto. Se é zona de conforto, e se conforto significa prazer, por que raio é que temos de sair de lá?
QUESTIONO-ME SE… é assim tão saudável eu questionar-me. Se não seria preferível eu andar por aí a fazer perguntas aos outros e não a mim.
ADORO… não ter o nariz entupido e tomar decisões.
LEMBRO-ME TANTAS VEZES… de jogar num campo que ainda existe, mas que o Presidente da minha terra diz que não.
DESEJO SECRETAMENTE… nada. Desejo sempre de forma pública. Um beijo, Lúcia Moniz.
TENHO SAUDADES… de ambientes que não são intimistas, de exposições que não são imersivas e de amigos que não são amigos dos seus amigos.
O MEDO QUE TIVE… quando, a 11 de Maio de 2013, vi o Roderick Miranda a aquecer… Confirmou-se.
SINTO VERGONHA ALHEIA… de quem leu este início de frase e disse vergonha alheira.
O FUTURO… a Deus pertence, claro está, visto que nem um nem outro existem.
SE EU ENCONTRAR… a palavra Liberdade no primeiro discurso de Paulo Raimundo como secretário-geral do PCP, inscrevo-me no Partido*. Até agora, ainda só encontrei as palavras Força 18 vezes e Luta 21 vezes. *10 vezes
PROMETO… uma feira medieval e uma cidade sobre rodas todos os fins-de-semana. Votem em mim!
TENHO ORGULHO… orgulho em ser uma vaca. (Assim mesmo, com dois orgulhos.) A frase não é minha. Nem de nenhuma amiga. É da Vaca Glória, da Rua Sésamo. É parte da letra de uma canção que está na minha cabeça desde os anos 90.
dói-dói no menino
O Ronaldo sente-se muito injustiçado, coitadinho. Então, como qualquer adulto que se sente injustiçado, decide fazer birra. Diz que não treina, diz que não joga e tudo o que tem a dizer não diz a quem deve, diz na televisão. Sai de casa, bate com a porta, chora, grita, faz queixinhas e deixa o clube a arder. Esconde-se debaixo das saias da mamã Fernando Santos, pede colinho aos meninos da Selecção e espera que alguém olhe para ele e lhe dê o brinquedo que ele tanto quer: voltar a ser reconhecido como o melhor. O que lhe interessa não é o que ele pensa que é, é o que os outros pensam. E os outros, pelo menos os mais lúcidos, já não pensam que ele é o melhor. E isso faz dói-dói no menino. O Ronaldo, que sempre foi de jogar, lutar e marcar, está, neste momento, a rebolar no chão por uma falta que não existiu. Ele é que tropeçou nele próprio.
Imagem: AFP
a ditadura da ignorância
Toda a gente que vota no Bolsonaro é apoiante do Bolsonaro. Nem toda a gente que vota no Lula é apoiante do Lula. Esta é uma eleição de um só candidato. O outro é só o pouco que se arranjou para impedir a ditadura da ignorância. Triste Brasil que deixa a alegria para o samba.
Imagem: Helder Oliveira
isto não é um campo
«Isto não é um campo.» O Presidente da União das Freguesias da minha terra olha para o Parque de Jogos do Sport Clube Leiria e Marrazes e diz que não é um campo. Ao dizer que não é um campo, o Presidente da União das Freguesias da minha terra está a dizer muito mais. Por detrás destas palavras, como por detrás do muro trancado a cadeado e vedado a tijolos, vejo outras palavras: desrespeito, desprezo, ingratidão. Vejo todas elas por toda a História do clube e da terra, por todas as pessoas que construíram o campo e por todas as pessoas que por lá passaram e que por lá fizeram e deram vida. Por detrás do muro das palavras «isto não é um campo», vejo uma lixeira mais suja do que aquela que o Presidente da União das Freguesias da minha terra deixou alastrar no Parque de Jogos do Sport Clube Leiria e Marrazes. Para ele, «isto não é um campo». Para mim, isto não é um presidente.
santiago, para outro lugar
Há duas velocidades nesta história, a do caminho e a do confronto. Demora até lá chegar. Quando lá chega, vai de repente para outro lugar. Mas, seja qual for a velocidade a que se caminha, há talento. Na ideia e na criação – a de quem não aparece e a de quem dá a cara, a voz e tudo o resto que um actor dá para que tudo pareça real. E para que nós caminhemos com ele. A Lúcia leva-nos pela mão durante este primeiro episódio. Aperta-a com força e não a larga (parece que aperta a mão do Ivo – que também nos leva – mas é a nossa). É uma espécie de encantamento que nos faz ir com ela. É tão leve a ir de um lugar de dentro a outro e tão pesada a parecer o que é em cada lugar. É uma ilusão constante, com aquele ar de menina bonita e frágil que não faz mal a ninguém, e nós ali, a olhar para ela e, num instante, é ela que nos tem. Como a Leonor, a Lourdes da história. Quase não fala, nem tem de falar. Tem um carisma que fala por ela, uma inquietação que passa para quem a vê, mesmo que ela esteja no cantinho do plano. Mais um bonito engano. E, por falar em beleza, César Mourão. (Este elogio tem o patrocínio de mais convites destes.) Faz tudo bem (aqui, fez a ideia e a produção), à excepção de escolher agremiações clubísticas. Desafiou-me a ir e desafiou-me a terminar o texto que eu iria escrever, este, com as próximas palavras sobre o primeiro episódio de Santiago. São estas, mas não são apenas sobre o que estava no ecrã. São, também, sobre ele. (Ainda bem que não é.): «Se é português? É, mas podia não ser.»
| SANTIAGO. Realização: @pedrovarelalx; Criação: @cesartmourao, @diogovbrito e @ines.o.braga; Produção: @313features, @blanchefilmes e @sicoficial; Argumento: @ines.o.braga, @pedrompgoulao e @pedrovarelalx; Elenco: @luciamoniz, @ivocanelas, @_barbarabranco_ , @carla_maciel_strangles, @leonor_vasconcelos e outros que são tantos que eu não os escrevo aqui que não há espaço – encontrem-nos na @opto.sic |
não sou de lugar nenhum
Acho que escolhemos de onde somos pelo lugar onde gostaríamos de morrer. Eu não gostaria de morrer em lugar nenhum. Não sou de lugar nenhum. Nasci onde não estou. Morrerei no lugar onde não gostaria de morrer. Quando lá estou, no lugar onde nasci, sou de longe. Quando estou aqui, sou de longe também. Acho que sou sempre do lugar onde não estou. Nem é estar bem onde não estou ou querer ir aonde não vou. Não é isso. É não estar onde estou, é não ir para onde vou. O meu lugar é sempre lá, longe. Não longe de mim, longe daqui. E aqui é em todo o lugar. E eu sem lá estar.
magia com os pés
Foi bonito voltar. E cansativo como o raio. Já não me lembrava da necessidade de correr para jogar à bola. Em boa verdade, já não me lembrava da necessidade de saber jogar à bola para jogar à bola. A bola estava vazia, era isso. E não tinha as dimensões adequadas para a prática do futebol de elite que se esperava ver no Campo nº1 da Aldeia do Desporto do Sport Clube Leiria e Marrazes. O relvado também não estava em condições, claro que não. Era relvado, eu sou vedeta é em pelado. No entanto, houve rasgos de magia, em particular quando a bola desapareceu uma série de vezes para o pinhal, e rasgos de um ou outro músculo que agora não se acusa mas que amanhã, ao acordar, vai dizer bom dia aos gritos. Foram, aliás, gritos, estes de entusiasmo e de regozijo (bem, talvez tenham sido todos de espanto), que eu ouvi depois de, na sequência de um cruzamento milimétrico vindo da ala direita, eu ter efectuado um exímio movimento técnico de cabeça que fez a bola balançar as redes. Sem hipótese de defesa. Incrível. Primeiro golo de cabeça que marquei na vida. Primeiro golo do primeiro treino do regresso das Velhas Guardas do clube da minha vida. Foi bonito voltar. Obrigado a quem me recebeu – e a quem compreendeu esta minha forma muito peculiar de fazer magia com os pés.
a partícula de deus
O sistema de senhas do Hospital de Leiria é um dos grandes mistérios da Humanidade. E ainda bem. Porque, tendo em conta as horas de espera naquelas cadeiras de plástico viradas para um ecrã a mostrar como lavar as mãos, sempre vamos ocupando a cabeça a tentar decifrar este enigma da ordem de chamada. A minha senha M0288 foi chamada antes da senha M009 e depois da senha M978152726388. A culpa é minha, eu sei. Eu é que ainda não percebi a razão para este complexo sistema de funcionamento de anunciação, anunciamento, anunciamentação, sei lá, estou cansado, do número da senha. Certamente, há uma organização perfeita, funcional, eficiente, produtiva, prolífera, profícua, válida, resumindo, ao calhas que explica isto. Eu é que não percebo – e estava ali para tratar do ombro, não da cabeça. Na verdade, nem eu nem ninguém percebe. E é essa incompreensão de algo que deveria ser facilmente compreendido que faz com que eu aplauda este sistema de senhas todo ninja criado pelos génios da informática hospitalar. As pessoas estão ali sem fazer nada, horas e horas e horas e horas à espera de uma consulta de cinco minutos para ouvirem ah dói-lhe o ombro?, então temos de tratar disso, muito obrigado, senhor doutor, novidade do caralho, ponha gelo e tente não tocar onde lhe dói, vamos fazer análises, a próxima consulta é já em 2025. Bem, já estou a escrever demasiado e o meu ombro já está a gritar, estou velho, mas as pessoas também e estão ali à espera. Então, fazem um sudoku da compreensão do mecanismo inteligentíssimo de senhas. Em vez de tirarem um curso e irem para o CERN tentar decifrar a partícula de deus, arranjam uma tendinite e vão para o hospital tentar decifrar a partícula do totoloto das senhas. Bem, vou aproveitar e tirar senha para Psiquiatria.
fartinho de chorar
Ainda éramos miúdos, ainda jogávamos, cada um na sua modalidade, quando o Simão me ofereceu o seu stick de hóquei – já não o usava, e achou que ficaria melhor nas mãos de quem nunca o iria usar. Eu nunca soube jogar. Nunca soube, sequer, andar de patins. Mas aquele stick que ele me deu, e eu nunca lhe disse isto, foi uma das coisas mais bonitas que recebi. Guardo-a como uma relíquia. Sei do Simão desde sempre. Das brincadeiras, das escolas, das férias, das catequeses, das festas, das ruas, dos Marrazes – da paixão pela terra, da paixão pelo clube. Conheço muita gente apaixonada, não conheço ninguém com a paixão do Simão. Uma paixão que vem do amor imenso, que lhe vem da história, pela sua gente e pela sua camisola – mesmo quando foram outras que vestiu. O Simão é o Simão porque, à paixão do amor, sabe ter o trabalho, a humildade, o profissionalismo, a exigência, a seriedade e tantas outras qualidades, e defeitos, claro, como qualquer ser humano que se preze, que fazem dele quem ele é. A nossa equipa de hóquei garantiu a subida à Segunda Divisão. Ele é o treinador. Ele, um puto da minha idade a ser treinador dos seniores. Estamos velhos. No domingo, eu vi o Simão como poucas vezes vi. Feliz da vida, fartinho de chorar. Ao seu lado, dentro dele, toda a gente – atletas, amigos, dirigentes, adeptos, família – que lutaram por esta alegria com tudo o que tinham, acima de tudo, suor. Pela nossa terra, pelo nosso clube. Com o nosso Simão.
fausto, ninguém dança
“Fausto” é uma peça de teatro que é uma peça de dança. Ninguém dança nesta peça. Mas tudo o que acontece não pode ter outra definição. Dança quem representa, quem entra e sai, dança quem nem sequer tenta, quem vai andando por ali à procura do seu papel na plateia que não há, porque apenas há palco. E todos dançamos como se fôssemos todas as personagens que ali estão. Ninguém dança, é tudo invenção. Mas acreditamos que sim, que dançamos – toda a gente. Culpa e talento de quem nos faz dançar. O Diabo não existe. O Hugo só existe com ele. Não poderia ser outro a vestir-lhe a carne – a que anda, a que corre, a que sorri, a que ri, a que grita, a que fala, a que canta, a que sussurra, a que range, a que beija, a que morde, a que desaparece. “Fausto” tem arte em muitos lugares e em muitas pessoas. O Hugo, sendo este Diabo que não existe, é arte de todos os lugares e de todas as pessoas. Pelo meio de todos eles e de todas elas, lá vai dançando e lá vai fazendo dançar como se esta dança da representação fosse, para ele, uma infantil forma de brincar. O Hugo agarra toda a gente pela boca e não deixa ninguém respirar ao longo de toda a peça. Ele é personagem de dentro e é personagem de fora, de quem representa e de quem não. É uma espécie de encenador em pontas que vai dizendo o que devemos fazer, pensar, temer e venerar. O Diabo não existe e poderia ser outra pessoa, como é em todas as outras representações de “Fausto”. Mas, quando o Hugo dança, ninguém sabe dançar.
| “Fausto”, no Teatro da Comuna. Texto de Goethe, com adaptação e direcção de João Mota. Interpretação de Hugo Franco, Carlos Paulo, Rogério Vale, Luís Garcia, Miguel Sermão, Gonçalo Botelho, Francisco Pereira de Almeida, Ana Lúcia Palminha e Patrícia Fonseca. Cenografia de Renato Godinho |
Fotografia: Bruno Simão
não chorei, claro que não
Não chorei, claro que não. Eu sou lá gajo de choradeiras. Este puto, que este domingo deixou a bola, é o puto que, há mais de trinta anos, me deixou na pré-primária para ir para a escola dos maiores. Naquele dia, eu chorei. Neste, não chorei, claro que não. Nem disfarcei nem nada. Nem me lembrei das futeboladas de rua, com pedras a fazer de baliza. Nem dos passes teleguiados deste menino para os golos deste puto. Há provas. O meu pai filmou alguns jogos ao lado do pai do Miguel. E as mães ao lado uma da outra. Só partilhávamos um ano por escalão. Ele descia a equipa, eu subia. Miguel, sabes que é verdade. Mas também é verdade que ele dava uma magia diferente àquela magia que é o futebol. Mesmo em campos de terra, com linhas tortas, sem relva. À homem. À garoto. Não conheço ninguém que não goste do Miguel. Também não me lembrei da escola. Nem dos copos. Não vale a pena falar disso agora. Felizmente, não há provas. Só tive um clube, o Sport Clube Leiria e Marrazes. O Miguel teve outros, mas só teve um. Este clube deu-nos família. Eu já tinha, e ainda tenho, o Miguel.