essa galdéria que me chupa
Raramente estou vivo. Quase nunca. É a puta da ansiedade, acho eu, essa galdéria que me chupa a vida.
Olha o futuro, meu querido, pensa já o amanhã, sente-o, vive-o, estás a pensar?, estás a sentir?, estás a viver?, que merda, não é?, aproveita já para sofrer. Vivo o amanhã, penso o ontem e desprezo o hoje. E isto vai aglomerado em carruagens de ilusão, porque imagino o amanhã sempre horrível, o ontem sempre maravilhoso e o hoje sempre ausente.
Uma estupidez em loop que me dói no peito mais do que me dói o amor. É no peito, esse ninho especial das dores, que as coisas importantes vivem e morrem quase em simultâneo. E depois lá vem o xanax, o valium, a paroxetina e todas as outras merdas pela boca adentro.
Engulo a ansiedade em copos de água e encaro a rua a fingir que a vida é minha e é linda. Não é nem uma coisa nem outra. A minha vida é hoje, e eu nem sequer a vivo.
o medo
O perigoso destes atentados não é a morte, é o medo. Todos morremos, mas nem todos temos medo (ou não deveríamos ter). A morte vem da explosão. Depois da explosão, depois da morte, vem o medo e, com o medo, as palavras. É o medo, com as palavras, a maior doença disto tudo. “Eu sou contra radicalismos, mas era mandar os árabes todos de volta para a sua terra”, “eu não sou violento, mas era matá-los todos”. Para além das feridas da morte, vêm as feridas do medo. As feridas da morte tratam-se sempre depois, com curativos, medicamentos e caixões. As feridas do medo tratam-se sempre antes, com educação e conhecimento. As feridas da morte vão desaparecendo. As feridas do medo nunca deixam de crescer. Não é a morte, é o medo.
1994
Foi em 1994. Havia Neno, Abel Silva, Hélder, Mozer, Veloso, Kulkov, Rui Costa, Vítor Paneira, Schwarz, Aílton, Rui Águas, Silvino, Nuno Afonso, Kenedy, João Vieira Pinto, Yuran e Toni, os meus primeiros heróis que vi serem humanos. De vermelho e branco, de carne e osso, mesmo ali à minha frente. Ao meu lado, o meu pai; em todo o lado, o meu nervo. Não sabia o que dizer nem o que fazer. Olhava em volta e só via sonho. Zero a zero, foi assim que acabou o jogo contra o Gil Vicente a 9 de Janeiro daquele ano e foi assim que começou o amor ou loucura ou paixão ou lá o que se chama isto que eu sinto pelo Benfica.
Digo amor ou loucura ou paixão porque não sei dizer mais, digo amor ou loucura ou paixão porque esta coisa que me tem vai além da definição exacta de uma palavra só e só as definições destas três se aproximam desta assombrosa indefinição maior que sinto pelo Benfica. Nem vida é palavra que se preze. Nem morte. Talvez Benfica. Sim, sinto Benfica pelo Benfica, dizendo amor ou loucura ou paixão. Foi em 1994 e foi para sempre.
a beleza
A beleza da música, como de qualquer outra arte, não está no grito nem na explosão. A beleza da música, como de qualquer outra arte, está no silêncio e no quieto. A beleza da música, como de qualquer outra arte, existe por si mesma, sem artifícios nem malabarismos, sem cambalhotas nem maquilhagens.
A beleza da música, como de qualquer outra arte, é a beleza da vida, que basta sê-la para ser bela. E o difícil é encontrar esta entranha quer na música quer em qualquer outra arte. E o fácil é gritar e explodir. A beleza da música, como de qualquer outra arte, está na simplicidade. Foi ela que deu a vitória ao Salvador e os suspiros a toda a gente que o ouviu e ouve em repeat no trabalho, no carro, no ginásio e em casa. A beleza da música, como de qualquer outra arte, está em ser nada mais do que aquilo que é. Nós é que teimamos, ignorantes da vida, em querer ser sempre outra coisa.
crença, a puta da doença
A morte é o gatilho para a crença, deus é o segredo (só existe no medo), nós somos a doença.
A tríade é simples e a ignorância também. Depois da morte, o que vem? Não sabemos, e, não sabendo, inventamos algo que nos mate (em vão) essa angústia. A invenção chama-se deus que é ilusão, ser todo-poderoso, criador do céu e da terra, nascido do ventre sujo do medo, do nosso medo, do medo da gente crente que é doença, criatura toda-poderosa, criadora do deus e do diabo, nascida do ventre embaciado da incerteza.
Enquanto inventamos o depois da morte, a vida vai acontecendo sem darmos conta. Ela passa e nós passamos por ela morrendo aos poucos e crendo aos muitos.
É a crença que nos faz ser a puta da doença. Nada mais há para além dela, nada mais pode haver, toda a vida é pecado, mesmo que real, toda a morte é real, mesmo que inexistente – a visão de um cego. Se deus existe, já nasceu doente.
caminho da fé
Caminho da fé? Não, caminho da facilidade. É fácil acreditar. É fácil não questionar. É fácil existir quieto do cérebro. É fácil. Houve uma coisa boa? Foi deus. Houve uma coisa má? Foi o homem. É fácil a dualidade. É fácil. Há sempre justificação para tudo. E isso é fácil. Para mim, não, que sou ateu praticante. Para mim, é difícil. Não tenho justificação para tudo, não sei tudo, e isso cria-me angústia. E dói. O crente acredita, mas de certeza absoluta que não tem a certeza absoluta da existência de deus. Só que é fácil. E dá-lhe jeito. Se deus existir, o crente vai para o céu. Se deus não existir, o crente não vai para lado nenhum. Em caso de dúvida, não vá deus existir, é melhor acreditar. Eu é que estou fodido, porque vou para lado nenhum. Quer dizer, agora vou para a cama, que a minha vida não é escrever sobre paragens cerebrais.
o medo
Não é o medo de cair, é o medo de ter vontade de cair. E isso assusta como assusta o terror à noite. Não é a dor do corpo em pedaços lá em baixo, é o orgasmo do corpo em tesão cá em cima.
É como se a puta do abismo me batesse à porta e, de mini-saia e decote, me dissesse: olha lá, fofinho, não queres vir dar uma volta? E eu ali, ébrio de ânsias, sem leis nem moral. Digo-lhe que sim ou que não, mas o que lhe digo é sempre medo.
É o medo, só o medo, nada mais que o medo. Existe-nos mais do que nos existe o sangue. Cabrão do medo. Fosse ele ausente e eu seria morte, é ele presente e nem vida sou.
Olhando o abismo, temendo a vontade, réstia de horror que nos resta a todos, escondida na subterrânea lama louca do inconsciente. É de mim o corpo e é de mim que tenho medo. Sou eu o abismo.