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Dezembro, 2020
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tudo me é imortal

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Foi-me um ano de mortes. Todas elas reais, mesmo as que não foram. Deixei de ter gente, lugares, até silêncios, mas não perdi ninguém. As memórias, todas elas boas, mesmo as que não são, fazem viver em mim tudo o que me morreu. Tudo me é imortal, menos eu. Tenho o infinito no meu pequenino lugar de dentro onde nem eu caibo. E ter o que não acaba, sem espaço para o ter, aperta, esmaga e faz doer. Nunca me doeu tanto. Bati todos os recordes de idas ao psicólogo, ao psiquiatra e ao chão. Quis fugir, encharcar-me em comprimidos para me adormecer, mas fiquei e os comprimidos lá foram deixando de ser. Refugiei-me em amigos, em família e em palavras. Menos em mim. Tinha medo, ainda tenho. Mas, talvez pela necessidade causada pelo fim, tentei deixar de me ser um estranho, e entrei. É lá, aqui, que me tem custado estar. Por encontrar o que escondo, ou tento esconder, por dar de caras com o que sou e não queria ser. Mas também tenho encontrado coisas bonitas, acho eu. Também acho que as tenho, que as sou. Mas eu, por crença ou ilusão, teimo em não acreditar que elas existem, que elas são. Mas vou escavando, e percebendo que, mergulhando neste ser, é a forma mais verdadeira de me ir sendo e de aceitar o que encontro, o que sinto, o que sou. Dar-me a mão, pegar-me ao colo, dizer-me que está tudo bem assim, que nem sempre sou não, e que o consolo pode, e deve, vir de mim. Tenho tido, também, muita sorte na gente que eu vou tendo comigo. Não foi apenas a morte, e ainda bem, o ingrediente do que digo. Conheci gente que me levantou, me abraçou e me foi levando pelo abominável desconhecido da vida. E o escuro clareou um bocadinho. Que bonito, o acaso também ajuda quem se julga sozinho. E, apesar de todas as escuridões, lá fui conseguindo iluminar alguns corações. Falta o meu. É só arranjar um jeito de não me olhar como se estivesse sempre a cair. Ou a sufocar com a imortalidade de quem me tem morrido. Sim, é o segredo, não viver o teria sido. Mas eu tenho medo e o medo está comigo. E não basta querer que ele vá embora. Sim, tenho de viver o agora. Não consigo, por enquanto. Preciso ser meu amigo, gostar de estar comigo, ser o André. Mas tudo o resto é tanto, mesmo o que não é.

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quem está sempre

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Nestes dois dias, só família, somos mais de cem. Ontem e hoje, só família, somos quatro. Mas não falta quem não está. Falta quem está sempre. O meu primo Henrique, o meu avô Zé Pereira, a minha avó Maria José, o meu avô Álvaro, a minha avó Maria Augusta, o meu tio António, a minha tia Nhanha, a minha tia Carminda, o meu cão Freud. Estar, lembrando, é uma forma de ter. Estar, não estando, é uma de viver.

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o meu pai

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O meu pai é o pai que eu gostaria de ser. Não sou ainda, falta-me ser pai, falta-me ser bom, falta-me ser feito do jeito que ele tem para estar, sorrir, brincar e sorrir, já disse sorrir? já disse brincar? Gostaria de ter a alegria que ele tem em tudo o que é. Mas sou o André, não sou o meu pai, Manuel José. E ainda bem que ainda não sou, assim terei o meu pai para sempre, sempre que fico, sempre que vou, e ele sempre comigo, que me é pai, que me é amigo, que me é tudo o que não consigo escrever. Não fosse o meu pai e eu não seria metade. Não fosse o meu pai e eu já teria perdido a vontade de ser feliz, de acreditar que a felicidade tem a sua raiz no nosso comportamento. Eu tento, o meu pai consegue. E a minha vida segue com a vida dele. É do meu pai que eu herdei aquilo que eu ainda não sou. Diria que a felicidade não me calhou. Mas digo que sim, que a felicidade já me aconteceu, a mim, e ela insiste e já não me sai. Tenho quem me fez eu, quem me existe, tenho o meu pai.


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a nossa morte

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Não é por ser famosa, por ser filha deste ou daquela, por ser talentosa, por ser bonita, por ser jovem. Não é por isso que devemos chorar. Mas também é. Há gente anónima que morre todos os dias, de acidente, de doença, jovem, velha, sem fama e filha de ninguém. Há. Mas, por ignorância, despreocupação ou sobrevivência mental, não nos interessa. Não nos incomoda, não nos faz pensar, não nos faz chorar. A morte de uma figura pública, seja ela quem for, com o talento que tiver, é a morte de uma pessoa. Mas mais. A morte de uma figura pública é a morte de pedaços de várias pessoas, porque nós também morremos um pouco quando damos de caras com o fim de alguém. Mais ainda quando esse fim nos enche os jornais, a televisão, as redes sociais e, por consequência, o coração. Não é por ser famosa que o choro é mais forte, mas é por ser famosa que o choro é diferente, porque olhamos de frente a nossa própria morte.

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plano de treino

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Vou ao ginásio e treino bíceps, tríceps e peito. Mais peito, na verdade, que, para mim, ir ao ginásio tem sido tão terapia como a que faço todas as terças-feiras às duas no consultório. Costas, abdominais e peito. Sempre peito, que, às vezes, o treino é tão forte que todo o suor sai de lá pela foz que nos há nos olhos. E levanto halteres, com pesos de fantasmas, medos e sentimentos de culpa, mas de forma perfeita, sem pressionar a lombar nem compensar com os ombros. E corrida, corrida, muita corrida, para trabalhar o cardio, que o coração corre, corre, corre, e faz bem em correr, se não, morre, e não é bom morrer. E, por fim, alongamentos. Do peito, sempre do peito, para ver se há jeito de queimar os pensamentos.

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