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a vulgaridade do génio

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Hoje, tudo é genial. À excepção do génio, que é vulgar. Hoje, ser genial é vulgar, banal, ordinário. Hoje, ser genial é ser o seu contrário. Hoje, é-se genial por um golo, por uma frase ou por uma música. Não é preciso consistência nem talento. Nada é mediano, razoável ou morno – nem mesmo bom. Nada é assim assim. Só assim, genial.

Se cuspimos genialidade a toda a hora a toda a gente que nos surpreende, então estamos a cuspir no verdadeiro génio. Estamos a cuspir no Maradona, no Shakespeare e na Amália. Um puto que mete uma vez a bola no ângulo não é um Maradona, um escritor com likes nas suas frases de Instagram não é um Shakespeare, uma miúda que ganha um concurso de música da televisão não é Amália.

Se dizemos, constantemente, a toda a hora, que aquele é um génio, que palavras nos restam para descrever aquele que, de facto, é um génio? Falha o respeito pela palavra e pelo génio. Se atribuirmos conceitos (que não são delas) às palavras, as palavras perdem força e nós perdemos força com elas. E, sem forças, não vamos a lado nenhum.

Vamos ao extremo buscá-las para lhes dar outros conceitos, outros corpos que vestir. A palavra génio veste o corpo do mediano, do razoável, do morno, do bom e de todas as outras que dizem absolutamente tudo o que simplesmente querem dizer, mas que não dizem nem significam génio. E, assim, pela preguiça de trocar de roupa, ficamos sem saber quem é quem e quem veste o quê. Até as palavras. Essencialmente as palavras.

Tudo é igual, tudo é irrelevante. Não tem nada que saber. É mais fácil assim. É mais simples compreendermos o mundo se o virmos dessa forma. Matam-se as palavras, matam-se os pensamentos. Nivela-se o mundo por baixo e, assim, cabemos todos nele. Aconchegadinhos, inertes e iguais. Sem génios, mas num equilíbrio vulgar, banal e ordinário que nos leva a lugar nenhum.

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belas e feios, ricos e pobres

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O curioso na morte é que, sobre as belas, recorda-se o pior do que foram enquanto vivas e, sobre os feios, recorda-se o quanto eles até nem eram assim tão feios. Marilyn era “toxicodependente” e “conflituosa”; al-Baghdadi era “pacífico” e “envergonhado”.

“Morreu a mais bela mulher do mundo”, escreveu Ruy Belo, assim que se soube da morte de Marilyn Monroe. Morreu o mais feio homem do mundo, escrevo eu, agora que se sabe do fim de Abu Baqr al-Baghdadi.

Nem eu sou Ruy Belo nem al-Baghdadi é Marilyn. Infelizmente para todos. Mas sou capaz de ter razão quando digo que ele era o mais feio homem do mundo.

Abu Baqr al-Baghdadi, um dos mais desumanos líderes jihadistas de sempre, era a cabeça (e a barba) do Estado Islâmico na Síria. Parece que morreu em Maio, num ataque dos russos. No entanto, só agora se confirma o seu fim — é o que diz o Observatório Sírio dos Direitos Humanos, sublinhando a informação que está a ser divulgada pela televisão iraquiana.

Apesar da pouca confiança que devemos depositar no regime russo e, essencialmente, na televisão (seja ela de que terra for), tudo indica que, de facto, Abu Baqr al-Baghdadi morreu. Como morre toda a gente, aliás. Belas e feios, ricos e pobres, assassinos e poetas.

Quando digo feio, não falo de cara nem de corpo, que isso pouco importa para a beleza, mas de alma — ou dessa coisa que faz da pessoa o que ela é de verdade, sem o preconceito básico dos sentidos. Marilyn era a mais bela mulher do mundo por ter a alma — ou essa coisa que faz da pessoa o que ela é de verdade — bela.

O curioso nas mortes das belas e dos feios é que, por uma qualquer tentativa de equilíbrio da percepção que deixam no mundo, sobre as belas, recorda-se o pior do que foram enquanto vivas e, sobre os feios, recorda-se o quanto eles até nem eram assim tão feios (nem tão porcos, nem tão maus).

Basta googlar: Marilyn era “toxicodependente”, “conflituosa” e “fez, pelo menos, 12 abortos”; al-Baghdadi era “pacífico”, “envergonhado” e “o melhor jogador de futebol da mesquita, um Messi”.

Mas há mais. O pacifista Gandhi, por exemplo, era “misógino”, “racista” e “forçava mulheres a dormir com ele”; o tirano Hitler era “sensível”, “vegetariano” e “defensor dos animais”.

Até por cá: a popular fadista Amália era “fascista”, “contrabandista” e “bêbeda”; o ditador Salazar era “um homem bom”, “simples” e “humilde”.

Os bons tornam-se maus, os maus tornam-se bons. Tanto bons (ou belas) como maus (ou feios) continuam numa dimensão quase etérea. Às belas, sabe-nos bem vê-las cair de lá do alto, atribuindo-lhes defeitos maiores do que os que temos — inveja nossa. Aos feios, perdemos o medo quando lhes damos características de gente. Somos nós que os criamos e somos nós que os fazemos cair ou levantar – como se os obrigássemos a serem humanos.

Humanos que são belos e feios, ricos e pobres, assassinos e poetas. E eu continuo sem ser Ruy Belo. Infelizmente para mim.

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