solidão, uma proposta curricular
A solidão devia ser ensinada na escola. Devia ser uma disciplina, mas das obrigatórias, como Português e Matemática. Talvez até mais obrigatória do que essas. Não, de certeza mais obrigatória do que essas. Antes da primeira letra ou do primeiro número, já o nosso peito fez as contas ao aeiou da solidão. E ela vai-nos existindo ao longo da vida, especialmente em épocas de recurso. Mas sem qualquer ensinamento. Sem nenhum dicionário nem tabuada do ratinho que nos ajude a lidar com ela – uma espécie de tabuada do um, na sua primeira multiplicação, sempre um vezes um, até decorarmos que, de facto, um vez um é mesmo um e que tudo o resto é elevado a ilusão.
A solidão devia ser ensinada na escola. Um módulo em cada semestre: Solidão – Introdução ao Estar Sozinho; Solidão – Ser Sozinho Não é Não Ser; Solidão – Estudo do Meio; Física e Química da Solidão; Educação Visual para Dentro; Educação Física da Memória; Língua Estrangeira I, II ou III (Loneliness, Soledad ou Einsamkeit), e por aí fora. Estas disciplinas seriam leccionadas em pouquíssimo tempo e com um único aluno por turma, no meio de uma única sala, para o aluno se habituar rapidamente ao mercado de trabalho. E sem teoria que, na solidão, a teoria já é prática. Os exames seriam no final de cada aula, sem consulta nem acesso a calculadora (para evitar ser acompanhado por cábulas) e não assim de repente, como nos acontecem ao longo da existência, logo depois de uma qualquer maravilha no recreio. Não devia ser assim. É que nem sequer somos avisados com uma semana de antecedência. Hoje há exame, André. Mas eu nem sequer estudei. Tens ali aquela mesa no meio da sala. Mas… e quanto tempo tenho? O tempo que tu quiseres. A princípio, pode parecer que vai durar uma eternidade mas, se te esforçares, pode ser que dure menos, meia eternidade, vá. E lá vai o aluno, eu, nós, para aquela cadeira sozinha em frente à mesa sozinha numa sala sozinha com um exame cheio de respostas de escolha múltipla, muitas de escolha nenhuma, e nenhuma certa.
Precisamos aprender a solidão. Mesmo que demoremos a outra metade da eternidade a preencher o enunciado da folha de exame – a tentar lembrarmo-nos de quem somos.
já éramos sozinhos
Nós não temos vontade de estar com os outros. Nós temos é medo de estar sozinhos. Os outros, na verdade, na crua e triste verdade, já pouco existiam para nós. Apenas estavam, apenas faziam figura de corpo presente na nossa necessidade primária de aconchego e aprovação. Já éramos sozinhos, mas não estávamos sozinhos. Os outros davam-nos essa ilusão de companhia. Eram eles, não éramos nós. Não precisávamos de nos olharmos dentro para ver quem realmente éramos, somos, virtudes, belezas, maravilhas, mas defeitos, rugas, medos, traumas, guerras e lixo, também. Agora, que nos obrigam à clausura, fechamos a porta, abrimos os olhos e só estamos nós. E só somos nós. E estar, e ser, connosco, dá medo. Não são os outros, somos nós.
no dia seguinte, morreu
Na noite de Natal, ninguém sofre de frio nem de saudade. Na noite de Natal, ninguém sofre de fome nem de solidão. Na noite de Natal, ninguém sofre nem morre. Aqui jaz quem não faz falta no dia seguinte.
Aqui jaz um sem-abrigo. Não se lhe sabe o nome nem se lhe conhece família. Na noite de Natal, abriram-lhe os portões para uma refeição quente e uma noite tranquila. Apareceu na televisão. Agora, aparece no chão. O seu corpo será velado por ninguém porque os portões fecharam depois da ceia e as casas de cartão não dão audiência.
Aqui jaz um animal. Ou o que resta dele, no que resta da berma da estrada. Na noite de Natal, recebeu o quente de quem o queria para aquecer os pés e o ego. Apareceu no Facebook e no Instagram. Agora, aparece na caixa aberta da carrinha da junta de freguesia. Questão de saúde pública. O seu corpo será velado apenas se for feito scroll.
Aqui jaz uma velha. Morreu como viveu desde que lhe foi o marido. Sozinha. Na noite de Natal, abriu a porta para a companhia de voluntárias que lhe aqueceram a casa e a solidão. Apareceu no jornal. Agora, nem no café aparece. Não sai de casa desde esse dia porque ninguém lhe toca à campainha para saber, sequer, se ela está lá. O seu corpo será velado quando o cheiro chegar à casa dos vizinhos.