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assentar ilusão

Comentários (0) bloco de notas, cada um é muita gente, contos

Ainda não há sol, e ele já de pé, em frente a uma parede que ele está a construir. Cimento, pedra, betão, tudo lhe passa pela mão enquanto há gente a dormir. Não está sozinho, tem gente que o acompanha naquele trabalho duro. Ouve-se música que vem de um rádio velho, daqueles da guerra que resistem ao vento, à chuva e ao futuro. E ele, este homem, de calças enfeitadas por tinta branca e rasgadas pelo dia, vai tratando da sua parede, vai olhando e orientando as paredes e os chãos dos outros, e vai criando e dando a ver o que dantes ninguém via. É ele, digo eu, que manda ali – não no sentido de ser o dono do que ali está, mas no sentido de dar sentido àquilo que há. Ele constrói e manda construir o que já outros lhe disseram. Talvez esteja ali apenas a cumprir, mas eu acredito que ele faz mais do que existir. Ele é a realidade do que os outros quiseram, sonharam, pensaram, desenharam e lhe deram para fazer. Ele é qualquer coisa como um concretizador – não concretiza dor nenhuma, como diria o da televisão. Ele concretiza o sonho, que, mesmo podendo andar de braço dado com a dor, anda aos abraços e aos beijos com a ilusão. E essa ilusão só deixa de ser quando alguém lhe dá a mão. E, mesmo deixando de ser ilusão assim que é concretizada, nunca deixa de ser a ilusão que foi, que não se perdeu, que não se esqueceu por nada. De vez em quando, passo de carro juntinho à parede que ele está, agora, a construir ou a rebocar ou a polir ou a limar, e ele a seguir o mapa que lhe permite navegar. E ele, quando eu lá passo, para eu passar, deixa de fazer o que faz, encosta-se a um lado e fica a ver, à espera que eu passe e que a vida, para ele, volte a fazer sentido. Diria que ele, este homem, não fazendo o que faz, não concretizando as ilusões de quem as tem, fica perdido, fica sem, fica escondido, fica ninguém. E não deve ser bom ser ninguém, por muito que se seja alguma coisa pequenina. Talvez, para ele, para este homem, a ilusão, não sendo dele, é tudo o que ele tem, e, entre um tijolo que vai e vem, talvez seja essa a sua sina.

Jornal de Leiria

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