tudo me é imortal
Foi-me um ano de mortes. Todas elas reais, mesmo as que não foram. Deixei de ter gente, lugares, até silêncios, mas não perdi ninguém. As memórias, todas elas boas, mesmo as que não são, fazem viver em mim tudo o que me morreu. Tudo me é imortal, menos eu. Tenho o infinito no meu pequenino lugar de dentro onde nem eu caibo. E ter o que não acaba, sem espaço para o ter, aperta, esmaga e faz doer. Nunca me doeu tanto. Bati todos os recordes de idas ao psicólogo, ao psiquiatra e ao chão. Quis fugir, encharcar-me em comprimidos para me adormecer, mas fiquei e os comprimidos lá foram deixando de ser. Refugiei-me em amigos, em família e em palavras. Menos em mim. Tinha medo, ainda tenho. Mas, talvez pela necessidade causada pelo fim, tentei deixar de me ser um estranho, e entrei. É lá, aqui, que me tem custado estar. Por encontrar o que escondo, ou tento esconder, por dar de caras com o que sou e não queria ser. Mas também tenho encontrado coisas bonitas, acho eu. Também acho que as tenho, que as sou. Mas eu, por crença ou ilusão, teimo em não acreditar que elas existem, que elas são. Mas vou escavando, e percebendo que, mergulhando neste ser, é a forma mais verdadeira de me ir sendo e de aceitar o que encontro, o que sinto, o que sou. Dar-me a mão, pegar-me ao colo, dizer-me que está tudo bem assim, que nem sempre sou não, e que o consolo pode, e deve, vir de mim. Tenho tido, também, muita sorte na gente que eu vou tendo comigo. Não foi apenas a morte, e ainda bem, o ingrediente do que digo. Conheci gente que me levantou, me abraçou e me foi levando pelo abominável desconhecido da vida. E o escuro clareou um bocadinho. Que bonito, o acaso também ajuda quem se julga sozinho. E, apesar de todas as escuridões, lá fui conseguindo iluminar alguns corações. Falta o meu. É só arranjar um jeito de não me olhar como se estivesse sempre a cair. Ou a sufocar com a imortalidade de quem me tem morrido. Sim, é o segredo, não viver o teria sido. Mas eu tenho medo e o medo está comigo. E não basta querer que ele vá embora. Sim, tenho de viver o agora. Não consigo, por enquanto. Preciso ser meu amigo, gostar de estar comigo, ser o André. Mas tudo o resto é tanto, mesmo o que não é.