hello@domain.com +00 999 123 456

não é a vida, nem é a morte

Comentários fechados em não é a vida, nem é a morte contos, grotta

Sou eu e não sei quem sou. Apenas sei que não sou este que me mostro aos outros. Também não sei bem se sou este que me mostro a mim mesmo. Sei que sou qualquer coisa de intermédio ou qualquer coisa de absoluto que ainda não descobri. É difícil definir-me quando me sinto bem e mal de tanta forma diferente, como tanta gente. Por isso, a nossa dimensão é ser polivalente nisto das emoções.

Tanto jogo na baliza como no desespero – um homem normal, portanto, com carimbo no passaporte. Feliz e miserável como qualquer homem normal. Insignificante, também. E extraordinário. Tenho um esqueleto que sustenta aquilo que eu julgo ser o meu corpo. Nele, ajeita-se um fato e uma gravata do tempo da outra senhora – a que morava em minha casa mas que, por razões corriqueiras de um tiro nos cornos, deixou de morar (dão-nos tantas coisas, dão-nos beijos, dão-nos pão. dão-nos marujos de papelão, dão-nos balas). Bem amarrados aos ossinhos que compõem os pés, uns sapatos gastos pelas calçadas da existência. Cá em cima, um crânio com dois olhos azuis e um ou outro pensamento que espeta os cornos no destino – a grande maioria deles irrelevante e, até mesmo, ordinária. O meu nariz é grande e a minha boca é pequena. As minhas orelhas são duas orelhas, apenas, nem grandes nem pequenas, nem finas nem gordas, nem fascistas nem outra coisa qualquer. Sei lá o que dizer das minhas orelhas, não vejo grande interesse em fazer-lhes uma descrição. Nos ossos da mão esquerda, nada. Nos da mão direita, gente (dão-nos gente, mas não nos dão o animal).

Gente que há na minha vida e que, por isso, lhe pertence. Gente com quem me cruzo no café, na recepção do edifício onde faço terapia, no caminho para o lixo, em qualquer lugar por onde eu passe. Gente que vive nas entrelinhas da minha vida, nem a meio-campo nem a ponta-de-lança, gente que é falso 9 e baralha a linha defensiva do adversário. Eu sou o adversário, e esta gente, que me existe por acaso, é minha família.

Chama-se Álvaro e é barbeiro. Olhos claros, mãos antigas, um avião e um violino. Pouco cabelo e muita conversa. De dinheiros e de poleiros, de escolas e de vidas. Das muitas que me disse, só me contou a sua. “Dão-nos um nome e um jornal”, diz. Nasceu, cresceu e foi palhaço “do nosso corpo mais adiante, aquele que não se vê e chega longe, percebe?”. “Para organizar já o enterro, deixem-me pôr já o nariz vermelho”. Está bem, senhor Álvaro. Fez rir, andou em terras, aldeias, cidades, países, bem vestidinho, com embutidos de diamante. “Mas o riso é o choro com outra voz, sabe, e eles, que lá estão no camarote, dão-nos aplausos mas angústia, dão-nos um sonho, mas só um sonho, dão-nos um esquife feito de ferro”. Esmurrou o patrão, quis matá-lo, esteve preso. A forma da alma que o procura era ele próprio. Hoje, não procura ninguém. Deixa-se estar, quieto, baixinho, para que o corpo não pareça o que é de verdade. Fez-me a barba, e uma cabeça presa à cintura. À homem.

Dão-nos um cravo preso à cabeça, agora bem fresquinha pelo corte. Eu cortei caminho e cheguei mais cedo do que o previsto. E lá está ele. Eu não o vejo, ele não me vê. Não sei quem é, não sabe quem sou. Mas ele sabe que eu vou, que passo por ele sem parar, ao entrar e ao sair. Não faz, nem faria, sentido ficar. Ele está ali para ver passar, e eu nem chego a estar. Todas as quartas-feiras de todas as semanas, para pentearmos um macaco, dois minutos antes das sete, toco à campainha e passo. Digo-lhe boa tarde e espero pelo elevador. Dão-nos um pente e um espelho, e um pacote de tabaco, e eu penteio-me, e eu fumo. Dão-nos a capa do evangelho, e eu leio. Ele responde de volta, como um eco de personagens de assombro, e espera por ninguém. Está ali, quieto, olhando, quieto, estando. Somos vazios despovoados, é o que é, que adormecemos no seu ombro. É sempre, todas as quartas-feiras de todas as semanas, a última, dois minutos antes das sete, e a primeira, oito minutos antes das oito, pessoa que me liga à realidade dos outros. No quarto piso, tenho terapia. Lá, a realidade é a minha, só a minha, escura, sombria e funda de mão dada com quem visita comigo esse meu lugar. Temos fantasmas tão educados… Subo ao rés-do-chão, vindo do quarto piso, e ele lá continua. Não sei quem ele é, não sabe quem eu sou. Mas ele está, sempre, faz parte do processo de entrada e de saída do Inferno (outra palavra para o medo). De passagem.

Culpa da vida, que me faz isto. O que é isto, sequer? Deixo-me de metafísicas e vou comer. Um bifana e meia-dose de vulgaridade, por favor. Está bem, pode ser sopa da pedra. Sento-me ao balcão, junto de peludos regos de camionistas e de exagerados tacões de putas, e contemplo. Não deveria contemplar, faz mal aos olhos e não nos soa na memória da nossa história sem enredo. Mas contemplo os sabores, os cheiros, as coisas e as realidades que roçam as vidas que ali existem na mesma medida que existe quem está ali. E há um que existe mais, parece-me. Não lhe conheço o nome. Pode ser João, Fernando ou Aladino. Pode ser qualquer coisa, que pouco me importa. Mas, podendo ser qualquer coisa, é um filósofo. Ele é Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche, Platão, Voltaire e Sartre. Ele serve bifanas e sopas da pedra como quem pensa na morte, serve camionistas e putas como quem olha longamente para o abismo. Não deveria contemplar. Volto à estrada, como eles e elas. Dão-nos um bolo que é a história, mas eu como a bifana, ainda. E vou, agora sim.

Encostadinho à direita, mãos nos bolsos e olhos no chão, como mandam as regras de quem sofre. Connosco, quando estamos sós. Os felizes vão na faixa da esquerda e os idiotas na do meio. Na verdade, os idiotas, para jamais nos parecermos, não vão na faixa do meio, estão na faixa do meio, moram na faixa do meio. Tenho a certeza. Têm lá casa, um T2 com garagem e arrecadação. E código postal próprio. Dormem lá, fazem o almoço, o jantar, estendem a roupa na marquise e passam pelas brasas, com as cabeleiras das avós, no sofá da sala. Penteiam-nos os crânios ermos e, ao fim-de-semana, fazem-se uns furos na parede do corredor para pendurar uns quadros e uns grelhados mistos para ver a bola. Pagam IMI e tudo, levado à cena num teatro. Tenho a certeza.

Tenho lá eu a certeza de alguma coisa. Dão-nos bilhetes para o céu e pouco mais. Estou para aqui a enganar-me para quê? Para tirarmos o retrato? Dão-nos um barco e um chapéu. Certeza? Só a de que duvido de tudo, sem pecado e sem inocência. Da roupa que visto de manhã à existência de deus, da mão que devo usar para abrir a porta ao pé que devo usar para enxotar o gato. Dão-nos um prémio de ser assim e eu tenho o prémio tatuado nos cavalos que me galopam o dia inteiro no peito, sim, o sempre, esse cabrão. Refugio-me no sono para dar corda à nossa ausência, mas gostava de me refugiar no vazio. Mas nem conheço o vazio. Dão-nos a honra de manequim, mas sem roupa. Sou sempre tudo em todo o lado e esse ser tudo em todo o lado faz com que eu não seja, faz com que eu apenas esteja. Não decido por dúvida e por medo de errar. Mas vou errando. Não por duvidar, mas por deixar que a dúvida seja a minha corrente. Eu não sou, vou sendo. Talvez.

A dona Fernanda é que deixou de ser. Foi embora, partiu. E, com ela, foram embora, partiram, pedaços da minha infância onde não vem a nossa idade. O bibe, a plasticina, o recreio, a dança, o colinho, a sestinha. Mais um relógio e um calendário. Não sei por que razão me lembrei dela, apenas lembrei, sem qualquer associação, pelo menos consciente, a um sítio, a um cheiro ou a um som. Lembrei, apenas. A dona Fernanda deu-me sorrisos, palmadas e corações. A dona Fernanda deu-me aconchego. Eu pouco lhe dei para o muito que dela recebi. Dei-lhe choros, birras e inquietações. Sem saber, dei-lhe outros tantos corações. Eu não sabia. Ela sabia. Ela sentia. Hoje, sinto eu. Muito. A dona Fernanda chamava-me “olhinho azul”. Eu chamava-a, simplesmente, dona Fernanda. Hoje, ela já não me chama. Hoje, eu ainda a chamo. Mas ela já não me ouve. A dona Fernanda foi embora. Partiu. Mas os corações ficam comigo. Em pedaços.

Fica a memória, que tem a forma de uma cidade. Valha-me isso, essa galdéria que tanto me anima como me cospe. É tramado ter memória. É tramado não ter memória. Dão-nos um mapa imaginário, e é tramado, pronto. Que pessimismo chato. Tenho de parar com isto. Já páro, só mais um bocadinho de memória. É que me parece que é ela que comanda a vida do senhor que me existe à frente todos os dias no mesmo lugar. Lembrei-me dele porque tropecei nele. Agora mesmo, não o vi. Logo ele, que está sempre cá. E digo que é a memória, e não o sonho – como diz o poema – porque acho que ele já não sonha. O sonho deve ter-lhe morrido no instante em que lhe morreu um camarada por estilhaços de uma granada no meio do mato. Angola ou Guiné, escuridão de certeza. Ainda hoje. A guerra, raízes, hastes e corola, ou qualquer outra coisa muito pior, fervilha-lhe nos gestos, corre-lhe no sangue que lhe corre pelo corpo inteiro, nas pernas que não falham um passo, nas mãos que não falham uma reza, na boca que não falha uma passa do charuto que chupa todos os dias sentado num pequeno muro de pedra. Tem o batalhão inteiro a caminhar com ele e o dever patriótico de cumprir a missão diária que lhe dá razão aos dias. Não sai da rotina, não muda o trajecto. Só quando chega a mãe, que lhe pede ajuda com os sacos das compras, é que ele despe a farda e sorri, cospe o charuto e fala, larga o tempo e ganha cor. Ela vai embora, ele volta. E volta às voltas que a memória lhe dá. Angola ou Guiné, mais um letreiro que promete. Escuridão de certeza. Amor de mãe.

Mãe. A minha mãe. É tão bonito dizer “a minha mãe”. É como dizer poesia em apenas três palavras. A minha mãe. Talvez “a minha mãe” seja a única poesia que há no mundo inteiro, a única poesia que realmente interessa dizer, a única poesia que deu origem a isto tudo que nos é e que nos tem. A minha mãe. Eu, que amo palavras mais do que amo a vida, trocaria todas elas para dizer, até à eternidade, “a minha mãe”. A minha mãe é berço e leito, a minha mãe é a minha noite onde me deito. A minha mãe é grito e carinho, a minha mãe é o meu próprio ninho. A minha mãe é luta e choro, a minha mãe é ouro. A minha mãe é Freud e Vitorino, a minha mãe é o seu destino. A minha mãe é terra e verdade, a minha mãe é a mãe da saudade. A minha mãe é beijo e abraço, a minha mãe é mãe de um palhaço. A minha mãe é come a sopa e cuidado com o frio, a minha mãe é tens mesmo o meu feitio. A minha mãe é mãe-galinha, a minha mãe é minha. A minha mãe é preocupação, a minha mãe é exagero do coração. A minha mãe é princípio, meio e fim, a minha mãe é igualzinha a mim. A minha mãe é riso e melancolia, a minha mãe dá-me cabo do juízo, e o que eu lhe dou é poesia. E uma alma para ir à escola.

Não dou mais porque não sei. Continuo o caminho na estrada fria, clarinho por fora, nublado por dentro. Como um palhaço ou uma flor. Extremamente feliz a quem olha, extremamente triste a quem olha um bocadinho mais. Sigo o caminho e só vejo gentes, sigo o caminho e só me vejo a mim, eu e eu. Estas gentes dão-nos um lírio e um canivete, e pouco mais. Estas gentes só existem em mim, em mais lado nenhum, iguais. Dizer-lhes adeus – tem de ser, está a ficar tarde – é dizer adeus a mim mesmo. E eu nunca fui bom a dizer adeus. Por não gostar ou por não ter jeito, não faço ideia. Por não assumir que há fim ou por não assumir que o fim nunca haverá, não sei. Mas digo adeus muitas vezes, por obrigação ou por vontade, tem dias. Hoje, é um dia. Cada adeus, bem ou mal dito, bem ou mal feito, é o princípio de uma outra coisa qualquer, de um poema.

Comentários fechados.