passos em volta
A poesia tem forma. Braços, bocas, pernas, costelas, línguas, pés, cabelos, dentes. A poesia tem forma. E transforma e transgride e transporta a vida para as veias e vozes e vazios de quem a morde, trinca, saboreia e engole. O Herberto Helder fez poesia. O João, o Duarte, o David e a Beatriz deram-lhe forma. Materializaram-na, deram-lhe um corpo que ela usou que era o seu mas que não era. Era dela, claramente. Às escuras, aos saltos, às danças, às merdas puras que têm só quem sente. O João foi riso e verdade. O Duarte foi corpo, arte e loucura. O David foi puta, crueldade. A Beatriz foi, mesmo calada, apenas dançando sem voz, o grito aflitivo do nada, a vida quieta dançada, foi todos nós. Só agora voltei a ter respiração. Sinto que estive morto a viver. Quieto, no meu lugar. Corre-me o coração. A poesia também é ser. A forma é o seu estar.
“Passos em Volta”, encenação de João Garcia Miguel.
na comuna, aconteci
Fui eu, fui outro, fui outros, aprendi, sorri, chorei, sofri, agradeci, quase morri de vergonha, quase me vim de alegria, abracei, fui abraçado, gritei, cantei, caí, amei, fui amado, vi gente que me amava, amei gente que me via, fui às nuvens, fui à lama, fingi e fui sincero, tive medo e tive medo e tive medo e tive medo e superei o medo e vi luz depois do escuro e vi tudo e ganhei tudo e perdi tudo e senti tudo. Aqui, na Comuna, aconteci. Aqui, na Comuna, fui vida. No palco como aqui deste lado em que me encontro agora. Atrás das cortinas. Com tudo e tanto, apesar de tudo e tanto, e dói e dói e dói e amo e vivo. Vivo vida que, para mim, é palco. E vivo palco que, sendo vida, é este. O da Comuna. Um aniversário que também é meu. E nunca viverei o suficiente para o agradecer. Por muito que doa. Foda-se, e dói.